"Vou abastecer e pegar alguma coisa pra gente comer," ela anunciou. "Pedro, fica de olho nela. Se ela tentar qualquer gracinha, você sabe o que fazer."
Ela saiu do carro, me lançando um último olhar de aviso.
O silêncio dentro do carro era pesado. Finalmente, Pedro se virou para mim, seus olhos cheios de desprezo.
"Tá feliz agora?" ele cuspiu as palavras. "Por sua causa, eu tive que morder a isca dessa velha nojenta. Era pra gente fugir por conta própria, mas você estragou tudo!"
"Eu estraguei tudo?" A incredulidade me deu forças para responder. "Você me sequestrou, Pedro! Você e a Ana me jogaram dentro de um carro com uma estranha!"
"Eu te dei uma chance de vir por bem! Você que não quis!" ele rosnou. "Agora você vai ver o que é bom. Quando a gente chegar na cidade, eu vou me livrar de você e da velha e vou achar alguém que me ajude de verdade. Alguém rico. E você vai ficar sozinha, sem ninguém."
Tia Joana voltou, trazendo um saco de papel pardo. Dentro, havia três sanduíches de pão com mortadela e três garrafas de refrigerante barato.
Ela entregou um sanduíche e um refrigerante para Pedro, e ficou com o mesmo para si. Eu estendi a mão, esperando o meu.
Ela me ignorou completamente.
"Ué, e eu?" perguntei, a voz fraca pela fome.
Tia Joana deu uma mordida generosa em seu sanduíche antes de responder. "Você? Você não come. Menina que dá trabalho e morde os outros não merece comida."
Pedro devorou seu sanduíche sem sequer olhar para mim, o egoísmo dele era uma coisa física, palpável.
A fome e a injustiça acenderam uma chama dentro de mim. O desespero deu lugar a uma clareza gelada. Eu não podia usar a força. Tinha que usar a cabeça.
Lembrei-me de como a sociedade funcionava, especialmente em lugares pequenos e tradicionais como aquele. A aparência era tudo.
Esperei Tia Joana terminar de comer e ligar o carro novamente. Quando já estávamos na estrada há alguns minutos, comecei a chorar.
Não era um choro alto, de desespero. Era um choro baixo, sofrido, de partir o coração. Soluços que sacudiam meu corpo magro.
"Que barulheira é essa agora?" Tia Joana reclamou, olhando pelo retrovisor.
"Eu... eu tô com fome," eu disse entre soluços. "Por favor, eu não como nada desde ontem. Eu vou desmaiar."
"Problema seu," Pedro retrucou.
Continuei chorando, cada vez mais alto. Minha performance era digna de um prêmio. Eu estava usando a única arma que tinha.
Alguns quilômetros à frente, fomos parados em uma blitz policial de rotina. Meu coração disparou. Era a minha chance.
Um policial se aproximou da janela de Tia Joana.
"Boa tarde, senhora. Documentos do veículo e habilitação, por favor."
Enquanto Tia Joana procurava os papéis no porta-luvas, eu intensifiquei meu choro. O policial notou.
"Tá tudo bem aí atrás?" ele perguntou, se inclinando para olhar dentro do carro.
Antes que Tia Joana ou Pedro pudessem inventar outra mentira, eu falei, a voz embargada pelas lágrimas forçadas.
"Senhor policial... a minha tia... ela não quer me dar comida. E o meu primo... ele me bateu."
Eu levantei o braço, mostrando as marcas vermelhas dos dedos de Tia Joana de quando ela me agarrou.
O rosto do policial mudou. A expressão dele ficou séria.
Tia Joana empalideceu. "Isso é mentira! Ela é uma menina problemática, policial! Ela tá inventando coisas!"
Pedro entrou em pânico. "Ela é louca! Ela me mordeu! Olha aqui!" Ele mostrou a mão para o policial.
Eu usei a tática deles contra eles mesmos.
"Ele tentou me agarrar à força, por isso eu mordi pra me defender," eu disse, chorando ainda mais. "A gente tá viajando há horas e eles não me deram nem um copo d' água. Eu sou só uma criança. Por favor, me ajuda."
O policial olhou para Pedro, um adolescente forte, e para mim, uma garota magra e chorando. Olhou para a mão mordida de Pedro e para as marcas em meu braço. A balança da credibilidade pendeu para o meu lado.
"Senhora, por favor, encoste o carro. Todos vocês vão descer," o policial ordenou, em um tom que não admitia discussão.
O pânico nos olhos de Tia Joana e Pedro era a minha vitória. Eles foram forçados a sair do carro. O policial chamou um colega pelo rádio.
No fim das contas, a blitz não deu em nada criminal. Tia Joana tinha uma história convincente sobre ser minha tia de verdade e estar me levando para um tratamento. Mas o policial foi muito claro.
"Eu não sei qual é a história de vocês, e não vou me meter em briga de família," ele disse, olhando duro para Tia Joana. "Mas essa menina vai comer. Agora. Vocês vão naquela lanchonete ali, e vão comprar uma refeição decente pra ela. Eu vou ficar aqui olhando. Se eu souber que vocês maltrataram ela de novo, eu mesmo levo vocês pra delegacia por maus-tratos."
Derrotados, Tia Joana e Pedro me levaram para a lanchonete. Ela me comprou um prato de arroz, feijão e frango, seus olhos fuzilando ódio a cada garfada que eu dava.
Eu comi devagar, saboreando não só a comida, mas a pequena vitória. Eu tinha mostrado a eles que não era mais a mesma Maria. Eu não era indefesa.
Enquanto comia, eu mantinha meu corpo alimentado e minha esperança viva. Eu sabia que a guerra estava longe de acabar, mas eu tinha ganhado uma batalha importante. Eu os fiz sentir medo. E isso era um começo.