Capítulo 3 III. A Audição

Os finos flocos de neve caiam sobre o jardim principal, poderia facilmente ouvir eles se derretendo antes de tocar ao chão, uma luz de sol fraco deva um brilho místico aos jardins do palácio do inverno, fazendo com que as finas camadas de neve refletissem, as pequenas gotículas de orvalho congeladas refletiam formando pequenos arco-íris ao serem tocadas pela luz solar.

Tanásia não havia nascido em Thornicy e embora achasse que nunca iria se acostumar ao frio não poderia negar o quanto a ilha era bonita, tinha um certo ar místico como se fosse condenada a ser sempre bela e fria. Tanásia olhava para os detalhes da estátua "morte da besta" havia musgo crescendo no topo da estátua e algumas partes estavam com neve que caíra a noite, mas a água fria do Mar Estige corria livre sem um único sinal de congelamento, dizem que água do Estige é mais fria que o próprio gelo, mas que nunca pode ser congelada, também dizem que este mar é responsável pelo inverno eterno em Thornicy, porém Tanásia não achava que seria por isto.

- Pareço bem grandiosa na estátua, não é mesmo?

Rhanessy descia as escadas de mármore vindo em direção a Tanásia, Layka estava ao lado da rainha que estava vestida para a audição que seria em algumas horas. Rhanessy tomara o cuidado de parecer uma rainha, usava um vestido longo e rodado azul escuro, alguns detalhes bordados em azul claro e dourado, usava luvas de cetim douradas, seus cabelos negros como o breu estava solto com algumas tranças envoltas em fio de ouro, usava joias caras e chamativas de safira e sua coroa de cristal reluzia a fraca luz solar do jardim.

- Sempre quis te perguntar como matou a fera, minha rainha - Tanásia disse quando a rainha estava ao seu lado, tão próxima que podia sentir seu perfume adocicado enquanto a ursa-das-neves saiu correndo para brincar com a pouca neve que tinha na grama. - Acho que nunca ouvi a história de você.

- Não a conto porque a verdade tende a ser decepcionante - Rhanessy olhou para a estátua com um certo desdém - Todos esperam uma luta épica e heroica, mas na verdade eu não me lembro com tantos detalhes, lembro de uma dor lancinante na perna e de perder os sentidos, cai no chão como uma corça indefesa e vi a Manticora saltando em minha direção, ergui a espada com o pouco de força que me restou, a fera estupida fez o resto caindo sobre a espada e eu fiquei desacordada, achei que tivesse morrido, mas quando eu acordei estava viva e me chamavam de Ceifadora da última Manticora, acho que enfeitaram de mais a história.

- Às vezes as pessoas vêm o que querem ver, majestade.

- Na maior parte do tempo. - Rhanessy voltou a olhar para sua amiga, seus cabelos cor de fogo estavam livres e os cachos altos e volumosos faziam o rosto de Tanásia parecer mais jovem, usava um vestido simples rosa pastel e um batom preto, seu olho cego a fitava a rainha a fazendo ficar desconfortável.

- Quero que seja minha nova conselheira real - Rhanessy falou de forma curta e fria olhando para Layka rolando sobre o gramado.

- Seria uma honra majestade - Tanásia se ajoelhou de imediato.

- Levante-se - A rainha dizia de forma indiferente - Não é honra nenhuma é trabalho. - É claro, majestade. - Tanásia havia ficado um pouco envergonhada.

- Estou te pedindo para governar ao meu lado - Não parecia haver uma gota de sentimento na voz de Rhanessy - Um trabalho chato, cansativo e pode ter certeza que não é gratificante, você aceita?

- Sim, minha rainha - Tanásia abaixou a cabeça em sinal de respeito - Juro que irei...

- Guarde seus juramentos para o dia da celebração - Rhanessy a interrompeu - Estarei ocupada com os preparativos da viagem a Goldencrown, significa que organizara tudo sozinha, deve ser antes da viagem então o prazo é curto, envie convites para todos os malditos nobres, mas os portões do castelo devem ficar aberto para todos e organize da forma que quiser.

- Certo, Majestade.

- Mais uma coisa. - Rhanessy olhou bem para sua nova conselheira real - Estamos sozinhas, não precisa me chamar toda hora de majestade. - Talvez prefira Nessy - Tanásia disse com um sorriso amigável.

- Só se quiser ir a seu baile sem cabeça. - Rhanessy deu uma leve gargalhada, mas seu coração apertou um pouco, não via Colin a uns dias, desde aquele dia que Sir Arthur lhe deu a rosa. - Layka, aqui.

A ursa parecia relutante em sair do jardim, mas quando viu com seus grandes olhos dourados Rhanessy se afastar correu para acompanhar sua humana. Tanásia acompanhou as duas adentrarem no palácio, com seu olho cego conseguia ver a ligação de afeto que unia a rainha e sua ursa e estremeceu ao lembrar-se do lorde que viria para as audições para exigir a cabeça de Layka.

Rhanessy sentiu todos os olhares em si enquanto descia cuidadosamente a escadas que levariam a sala do trono, Layka caminhava ao seu lado silenciosa como sempre abrindo caminho entre todos ali presentes que faziam reverencia para a rainha quando ela passava por eles, havia pequenos degraus até o seu trono e ela esperou que Lorde Harris a anunciasse.

- Estão perante Rhanessy herdeira da família Miraclyn, rainha de Thornicy e do mar Estige, protetora da Campina Cintralis e Ceifadora da última Manticora.

- Seu tio fez uma pausa e continuo após Rhanessy sentar em seu trono de espinhos de cristais, Layka deitou no chão próximo ao trono. - Estão todos aqui livres pera pedirem o que quiserem sua majestade, ela os ouvira e avaliara, lembrando que estão sobre juramento de dizer a verdade é um grande crime mentir para sua rainha.

Stevan Harris chamou o que seria o primeiro caso: Lorde Davies era dono de uma mina importante e senhor do Vale da lua, começou a bajular Rhanessy, mas ela não deu importância, seus olhos estavam em outra pessoa.

- Onde você estava? - Rhanessy sussurrou delicadamente de forma que só Colin que estava ao seu lado direito ouviu.

- Onde sempre estive, Majestade - Colin não olhou para a rainha quando falou.

- Faz três dias que não te vejo! - Rhanessy acenou com a cabeça para parecer que prestava atenção na acusação de Davies contra seus vassalos.

- No entanto não faz tanto tempo assim que eu te vi, minha rainha. - Colin sorriu e Rhanessy teve que apertar bem forte os cristais de seu trono para manter-se imparcial - Mas se soubesse que vossa majestade sofria tanto com minha ausência jamais a teria torturado desta forma tão cruel.

Rhanessy sorriu involuntariamente e fechou o rosto de imediato quando viu que Lorde Davies a olhava estranho, voltou a prestar atenção em seu dever.

- Longe de mim duvidar de sua palavra Lorde Davies - Rhanessy tentava não parecer sarcástica, mas não havia se afeiçoado pelo senhor do Vale da Lua - Mas não espera que condene seus vassalos só porque o senhor diz que são culpados né?

Lorde Davies a olhou como se a rainha o tivesse insultado, talvez a rainha antes de Rhanessy teria condenado vassalos camponeses apenas por um lorde dizer que são culpados, mas a rainha atual precisava de um pouco mais que isso.

- Tenho certeza que alguns dos vizinhos próximos devem ter visto algo, interrogue-os e terá sua prova, majestade - Lorde Davies disse de forma confiante.

"Terei testemunhas manipuladas, você quer dizer" Rhanessy teve vontade de falar, mas achou que talvez não seria próprio de uma rainha.

- Majestade, poderia dar meu depoimento em minha defesa? - Uma mulher deu um passo à frente, parecia ter uns cinquenta anos e usava roupas maltrapilhas, sua pele parecia ressecada e a mulher parecia cansada - Meu nome é Marisa, peço desculpas pela ausência do meu filho mais velho responsável pela fazenda, mas sua noiva esta gravida e não deve demorar muito a ter o bebê, e meu filho mais novo esta doente com uma febre terrível, de forma que eu vim defender minha família da acusação de Lorde Davies.

- Como você declara sua família, Marisa? - Rhanessy perguntou, tentando não demonstrar a pena que sentira da mulher.

- Inocente, Majestade - Marisa olhou para Lorde Davies e depois para o chão de mármore desprovida de coragem - Minha família tem tido um lucro a mais nos últimos meses, mas não é grassas ao roubo, isto eu lhe juro. Meu filho mais velho está dirigindo muito bem a fazenda, neste caderno tenho anotado todas as nossas financias, trouxe para vossa majestade ver que somos inocentes!

Marisa estendeu a mão que segurava o caderno de couro curtido e Rhanessy fez um sinal para ela se aproximar, quando a rainha pegou o caderno da mão da mulher viu que ela tremia e suava muito.

- Pedirei ao meu próprio contador real para avaliar suas finanças, Marisa - Rhanessy entregou o livro ao tio - Também mandarei alguém falar com os moradores das proximidades e um medico para avaliar a doença de seu filho mais novo. Tomarei um veredito sobre o caso quando for possível.

- Muito obrigada, Majestade - Marisa se ajoelhou e tinha lágrimas nos olhos, provavelmente pelo seu filho mais novo doente. Seu tio trouxe o próximo caso: Uma mulher vinda do Norte com um recém nascido no colo, era muito pobre e veio em busca de uma vida melhor em Thornicy, Rhanessy pediu a Madame Alene, governanta do palácio, para arrumar um emprego e um quarto para a moça no palácio. Rhanessy sempre perdia a conta dos casos que resolvia ou prometia resolver, de modo que sempre ficava impaciente para terminar logo, mas ouvia sempre com atenção e tentava aplicar seu senso de justiça sempre, mesmo com Colin tentando distrai-la. Estava exausta quando seu ultimo caso foi anunciado. Mett Hughes lorde do Vale da Aurora, buscando justiça pelo ataque da fera selvagem Layka. A ursa rosnou quando viu o homem e a rainha fez carinho atras das orelhas para acalma-la, Rhanessy pediu para que ele contasse como tudo aconteceu.

- Eu estava em um corredor próximo ao salão principal, Majestade - Mett estava ajoelhado e parecia uma ave ferida com o braço todo engessado - Quando o urso selvagem me atacou, eu gritei por ajuda e graças a Lorde Colin estou vivo, mas carregarei as marcas do ataque da fera para toda a vida, os curandeiros dizem que não tenho mais movimentos nos braços.

- Então afirma que Layka o atacou sem nenhum motivo? - Rhanessy perguntou farta dos dramas do Lorde.

- Sim, majestade - Mett parecia tão confiante que qualquer um julgaria ser verdade.

Mas Rhanessy só se importava com o julgamento de uma pessoa, sobre ser verdade ou não. A Rainha olhou para sua conselheira da sabedoria e futura conselheira real que estava a sua esquerda.

- Está mentindo - Tanásia disse de forma dura e fria ao olhar bem na alma de Mett.

- Majestade juro que o que estou dizendo é a mais pura... - Lorde Hughes tentou dizer de forma suplicante.

- Mentira - Tanásia o interrompeu

- Lorde Colin pode nos contar o que viu? - Rhanessy pediu e Colin veio a frente do trono.

- Eu estava fazendo uma ronda quando ouvi os gritos - Colin começou

- Mentira - Tanásia disse sem uma única expressão no rosto, como se estivesse em transe.

- Estava apostando em jogo de carta - Colin corrigiu sorrindo para Rhanessy - quando ouvi os gritos fui ajudar o nosso lorde aqui, acalmei a Layka e vi minha irmã Zarina no local, ela chorava e quando me viu saiu correndo. Rhanessy esperou a confirmação de Tanásia de que era verdade e chamou por Zarina para depor, a jovem estava assustada e tremia, Rhanessy pediu que ela contasse sua versão e sua criada ficou calada por vários minutos, parecia tentar falar, mas sua voz se perdia no enorme salão.

- Eu estava indo para meu quarto - Zarina olhava para o chão e sua voz tremia junto com ela - quando cruzei com lorde Hughes... e-ele pós a mão dentro da minha saia... Disse que não podia gritar... q-que ele acabaria com minha vida... e que ninguém ia acreditar em mim, que era só uma criada. - A voz estridente da jovem misturada com seu choro era de cortar o coração de Rhanessy - Eu fechei os olhos... a-acho que gritei... tinha tanto sangue e a Layka estava em cima dele e eu voltei correndo para meu quarto. Foi tudo tão rápido.

Rhanessy olhou para Tanásia que consentiu com a cabeça, quando Mett viu isto começou a se ajoelhar.

- Majestade, juro que nunca a toquei - Ele estava nervoso e desconsertado, provavelmente sem crer no rumo que sua audição levara.

- Mentira - Tanásia olhava o lorde com nojo.

- Estava bêbada, minha rainha - Parecia ainda mais desconsertado enquanto ajoelhava. - Não tinha intenção de fazer mal a sua criada.

- Mentira - Tanásia olhava para a rainha esperando sua ação, conseguia ver os horrores que ele faria com Zarina se Layka não o tivesse atacado.

Rhanessy levantou de seu trono e começou a descer lentamente os degraus até onde lorde estava.

- Eu imploro por sua misericórdia, minha rainha - Lorde Hughes ajoelhava e chorava completamente apavorado e havia molhado sua calça.

"Você daria misericórdia a Layka ou a Zarina?" Rhanessy pensou enquanto se aproximava do lorde.

- Pelo crime de tentativa de estupro eu o declaro culpado e lhe destituo de todos os seus títulos e terras, passando o Vale da Aurora para seu herdeiro legitimo. - Rhanessy falava baixo e todos no salão se calaram para ouvi-la - Pelo crime de falsa acusa eu o declaro culpado e o sentencio a um ano nas masmorras do Palacio. - Majestade, por favor... - Seu tio tentou intervir, era costume dele defender o interesse da nobreza. - Talvez haja outra forma de punir lorde Hughes, afinal é apenas uma cria...

- Guardas! - A rainha chamou e dois guardas seguraram o então destituído lorde Hughes - Minha espada.

Pieter Harris trouxe a espada da rainha e a entregou. Rhanessy apoiou-se com a espada virada para baixo fechou os olhos e fez uma prece rápida a qualquer deus que a quisesse ouvi-la.

- E pelo crime de mentir para sua rainha eu o sentencio a morte - Com um único golpe da lâmina Rhanessy pintou o chão de mármore antes branco para vermelho.

            
            

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