"Seja uma boa menina, Ana. Nós te amamos muito."
Eu não queria ir.
Eu queria ficar com eles, mesmo no meio da bagunça. Mas eu era só uma criança, então eu obedeci.
No começo, a fazenda parecia um paraíso.
Meu avô, Zé Pedro, era a imagem do avô de comercial de margarina.
Ele me recebia com um sorriso, me fazia ovos mexidos no café da manhã e me levava para passear a cavalo.
Os vizinhos, a família Silva, também eram gentis. O senhor Joaquim Silva sempre me dava um torrão de açúcar quando eu passava por sua propriedade, e sua esposa me oferecia bolo de fubá.
Eles me tratavam como uma neta.
Era uma ilusão de paz e segurança.
Uma armadilha bem montada.
A primeira vez aconteceu numa noite quente, cerca de um mês depois da minha chegada.
Eu já estava deitada, quase dormindo, quando a porta do meu quarto se abriu.
Era o vovô Zé Pedro.
Ele entrou em silêncio, fechou a porta e se sentou na beirada da minha cama.
Eu achei que ele tinha vindo me dar boa noite.
Mas ele não disse nada.
Apenas ficou me olhando no escuro, com um sorriso estranho no rosto.
Então, ele estendeu a mão e tocou na minha perna, por cima do lençol fino.
O toque dele não era o toque de um avô.
Era diferente.
Eu senti um arrepio de medo, mas não sabia o porquê.
Ele subiu a mão lentamente, e eu congelei.
Naquela noite, ele roubou a minha infância.
A dor foi aguda, rasgante.
Eu sufoquei um grito contra o travesseiro, meu corpo pequeno e indefeso debaixo do peso do dele.
Minha respiração parou, meu mundo se despedaçou em um milhão de cacos.
Quando ele terminou, levantou-se como se nada tivesse acontecido.
Ajeitou as calças e disse, com a voz calma de sempre: "Boa noite, netinha."
Eu fiquei encolhida na cama, tremendo, o corpo doendo, a alma sangrando.
Na manhã seguinte, eu não consegui olhar para ele.
Eu queria contar para alguém, mas para quem?
Eu estava sozinha.
Naquela mesma tarde, vi uma cena que selou meu destino.
Da janela da cozinha, vi meu avô conversando com o senhor Joaquim Silva perto do curral.
Eles riam.
Meu avô falava alguma coisa, apontando para a casa.
Então, eu vi.
O senhor Silva tirou um maço de dinheiro do bolso e entregou para o meu avô.
Meu avô pegou o dinheiro, contou as notas e as guardou no bolso da camisa, dando um tapinha satisfeito.
Meu estômago gelou.
Eu entendi.
Eu não era uma neta.
Eu era uma mercadoria.
Mais tarde, o senhor Silva me encontrou perto do riacho.
Ele se agachou na minha frente, o mesmo sorriso oleoso no rosto.
"Seu avô me contou que você é uma menina muito especial" , ele disse.
E então, ele tirou algo do bolso.
Não era um torrão de açúcar.
Eram fotos.
Fotos dos meus pais, saindo do trabalho.
Uma foto do meu irmão mais novo, Lucas, brincando no parquinho da escola.
"Seus pais parecem pessoas trabalhadoras" , ele disse, a voz baixa e ameaçadora. "E seu irmãozinho... tão pequeno. Seria uma pena se acontecesse um acidente com eles, não é? Um freio que falha, um assalto que dá errado... Acidentes acontecem o tempo todo."
Ele me olhou nos olhos, o sorriso sumindo.
"Se você abrir a boca para contar qualquer coisa para qualquer pessoa, sua família vai pagar o preço. Você entendeu, Ana Paula?"
Eu apenas assenti, lágrimas silenciosas escorrendo pelo meu rosto.
O medo era como uma mordaça, sufocando qualquer grito de socorro.
Naquela noite, meu avô entrou no meu quarto de novo.
Eu estava chorando baixinho.
Ele se sentou na cama e, com uma gentileza nojenta, enxugou minhas lágrimas com o polegar.
"Não precisa chorar, netinha. O vovô está aqui para cuidar de você. Você só precisa ser uma boa menina e fazer o que a gente mandar."
A voz dele era anormalmente suave.
Era a voz do diabo disfarçado de anjo.
A partir daquele dia, minha vida se tornou um inferno vigiado.
Meu avô trancava meu celular em uma gaveta.
Eu não podia mais sair da fazenda sozinha.
Toda noite, eu via a brasa do cigarro dele queimando na varanda, me observando.
Eu comecei a contar os dias, rezando para que meus pais viessem me buscar logo.
Mas os dias se transformaram em semanas, e as semanas em meses.
E a cada dia que passava, um pedaço de mim morria.