A fazenda estava em festa.
Todos celebravam minha aprovação na universidade federal.
Um feito inédito para uma menina da roça como eu.
Mas para mim, Ana Paula, a quietude dentro do peito contrastava com a alegria ao redor.
Porque esta celebração não era uma comemoração.
Era um funeral.
Meu avô, Zé Pedro, com seu sorriso largo, se aproximou com a cachaça na mão.
O senhor Joaquim Silva, o patriarca vizinho, ao lado.
"Parabéns, Ana Paula. Sabia que você era uma menina esperta."
A voz dele era como o raspar de lixa na minha pele.
Minha mão não tremia ao servir os copos de cachaça especial.
Aquela que preparei.
Com veneno, claro.
Enchi o copo de cada um que se beneficiou do meu sofrimento.
Cada cúmplice que fechou os olhos para o inferno que eu vivi na minha própria casa.
O caos começou lentamente.
Corpos se contorcendo no chão.
Gritos substituíram risadas.
Eu observei.
Não senti nada, apenas um vazio gelado.
Peguei o querosene que escondi antes.
Derramei sobre o chão, cortinas e móveis.
Ninguém me impediu.
Estavam ocupados demais morrendo.
Um fósforo riscado.
O fogo subirá com um rugido voraz.
Vinte e nove.
Trinta e dois.
Na sala de interrogatório, o delegado Ricardo Santos batia na mesa.
"Trinta e duas pessoas! Queimadas vivas! E você nem sequer derramou uma lágrima!"
Eu sorri, os lábios chamuscados.
"Ele mereceu mais do que todos."
Minha calma o desestabilizava.
Ele queria remorso.
Eu era só uma paz terrível e resoluta.
"Eu quero ver meus pais."
A menina que ele descreveu havia morrido há muito tempo, naquela fazenda.
No lugar dela, nasce um monstro.
E naquela noite, o monstro finalmente se libertou.