De repente, o som familiar da comunidade foi quebrado por sirenes. O barulho cresceu, ficando mais alto e mais próximo. Helicópteros começaram a sobrevoar, o som de suas hélices abafando tudo. As pessoas começaram a gritar na rua.
Meu pai levantou-se, o rosto tenso.
"O que está acontecendo?"
Antes que alguém pudesse responder, nossa porta foi arrombada. Policiais fortemente armados invadiram nossa casa. Eles usavam máscaras, seus olhos eram frios e impessoais. Eles nos empurraram, gritaram ordens que não conseguíamos entender no meio do pânico.
"Polícia! Mãos na cabeça, todo mundo no chão!"
Minha mãe gritou, agarrando Léo, que começou a chorar. Meu pai tentou protegê-los, mas um policial o atingiu com o fuzil. Ele caiu, o som do seu corpo batendo no chão ecoou em meus ouvidos.
Eles reviraram tudo. Gavetas foram arrancadas, colchões rasgados, a comida da panela jogada no chão. Eles procuravam por algo com uma violência desnecessária.
"Onde está? Sabemos que está com vocês!" um deles gritou para o meu pai, que sangrava no chão.
"Não temos nada," meu pai sussurrou, a voz fraca.
Eles não acreditaram. A violência aumentou. Vi minha família ser destruída na minha frente, em nossa própria casa. Fui jogada contra a parede, minha cabeça bateu com força. A última coisa que vi antes de a escuridão tomar conta foi o rosto assustado do meu irmão.
Quando acordei, a casa estava em silêncio. Um silêncio mortal. O cheiro de sangue e poeira estava no ar. Minha família... eles não estavam mais lá. Em seu lugar, no meio da sala destruída, havia um objeto que eu nunca tinha visto: um artefato indígena, um colar de penas e pedras que brilhava fracamente.
A polícia me arrastou para fora. Os vizinhos olhavam, alguns com pena, outros com medo. Fui acusada de roubo, de associação com o crime. O artefato era a prova. Minha família, disseram eles, morreu em um confronto. Eles resistiram.
Eu estava sozinha, algemada, sendo levada como uma criminosa. O mundo que eu conhecia tinha acabado.
No meio do caos, Mateus apareceu. Seu rosto mostrava preocupação. Ele correu até mim, afastando os outros policiais.
"Júlia! Graças a Deus, você está viva!"
Ele me abraçou. Seu uniforme cheirava a pólvora e a algo mais, algo que não consegui identificar.
"Mateus, minha família..." eu soluçava em seu peito.
"Eu sei, meu amor, eu sei. Foi horrível. Mas eu estou aqui. Vou cuidar de você," ele disse, sua voz era um bálsamo para minha dor. "Eles te incriminaram. Você precisa fugir, se esconder. Eu vou limpar seu nome, eu prometo. Mas você não pode ser pega agora."
Ele me deu dinheiro, um endereço de um lugar para eu me esconder. Ele era meu salvador, minha única luz naquela escuridão. Eu acreditei nele. Acreditei em cada palavra.
Fugi, me escondi nas sombras da cidade, vivendo como um rato. Cada dia era uma luta pela sobrevivência, mas a promessa de Mateus me mantinha viva. A esperança de que ele provaria minha inocência e a de minha família era tudo o que eu tinha.
Semanas se passaram. Uma noite, escondida em um beco sujo, consegui um celular descartável e liguei para um número que Mateus me dera para emergências. Era o telefone de um colega dele, alguém que supostamente me ajudaria. Mas quem atendeu não foi o colega. Foi Mateus. Sua voz estava diferente, relaxada, feliz. Ele não sabia que era eu.
"Alô?"
Eu não respondi, com medo. Ouvi uma voz feminina ao fundo, rindo.
"Quem é, amor?" a mulher perguntou.
"Não sei, deve ser engano," Mateus respondeu. E então, ele disse as palavras que destruíram o resto do meu mundo. "Não se preocupe, Camila. O caminho está livre. A família da favelada já era, e a garota sumiu. Logo serei promovido, e tudo isso será nosso."
Camila. A irmã do chefe de polícia. Uma mulher rica e poderosa que eu só via em revistas.
"E o artefato?" ela perguntou. "É lindo. Ficará perfeito no meu pescoço na festa do meu irmão."
"Eu te disse que conseguiria para você. Qualquer coisa que você quiser," Mateus disse, a voz cheia de uma adoração que ele nunca usou comigo.
Meu coração parou. A traição era tão profunda, tão absoluta, que me deixou sem ar. O roubo. A operação. A morte da minha família. A minha fuga. Tudo tinha sido um plano. Um plano dele. Para subir na vida, para agradar uma mulher rica.
Eu desliguei o telefone, as mãos tremendo. A imagem do rosto preocupado de Mateus, suas promessas, seu abraço... tudo era uma mentira.
Memórias felizes invadiram minha mente, agora transformadas em veneno. Lembrei-me de uma tarde, semanas antes da tragédia. Estávamos sentados no topo do morro, olhando a cidade se acender.
"Um dia, Juju, vamos morar lá embaixo," ele disse, apontando para os prédios de luxo. "Você terá tudo o que sempre sonhou."
Ele me chamava de Juju. Ninguém mais me chamava assim.
"Eu não preciso de tudo isso," eu respondi, encostando a cabeça em seu ombro. "Eu só preciso de você e da minha família."
Ele me abraçou forte.
"Você terá os dois. Eu prometo."
Aquela promessa, que um dia me deu tanto conforto, agora me queimava por dentro. Cada lembrança, cada beijo, cada palavra de amor era uma faca cravada no meu peito. Ele não apenas me traiu. Ele destruiu a única coisa que importava para mim, minha família, e me usou como bode expiatório para seu crime.
A dor era insuportável, um buraco negro no meu peito. Mas de dentro daquele buraco, algo novo nasceu. Uma chama fria e dura. A tristeza deu lugar a uma raiva que eu nunca senti antes.
Júlia, a sonhadora, a ingênua "Juju", morreu naquele beco. A mulher que sobrou era diferente. Endurecida pela dor, movida por um único propósito.
Eles achavam que eu estava derrotada, escondida, chorando em algum canto. Eles estavam errados. Eu iria ressurgir. Eu iria me fortalecer. E eu iria fazê-los pagar. Por minha família. Pelo meu nome. Por tudo o que eles me tiraram. A vingança não era mais um desejo. Era uma promessa.