Coração Partido, Alma Endurecida
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Capítulo 2

Os dias se transformaram em um borrão de sobrevivência. Eu me movia pelas ruas como um fantasma, meu rosto sempre coberto, meus olhos sempre alertas. A dor da perda da minha família era uma ferida aberta, mas a raiva pela traição de Mateus a impedia de me consumir por completo. Ela me alimentava.

Eu precisava de provas, algo concreto para expor a verdade. Voltei para a favela, disfarçada, arriscando tudo. A comunidade estava assustada. A versão oficial era que minha família era uma quadrilha perigosa, e a operação policial tinha sido um ato de heroísmo. Mateus foi promovido, exatamente como ele planejou. Ele dava entrevistas na TV, com um rosto triste, falando sobre a "perda" da namorada que ele acreditava ter sido "levada pelo mau caminho".

Um velho amigo da minha família, seu Zé, um curandeiro que conhecia as histórias antigas, me encontrou. Seus olhos gentis viram através do meu disfarce.

"Menina Júlia," ele sussurrou, me puxando para a segurança de sua pequena casa. "Eu sabia que você estava viva. O que eles fizeram com sua família... foi uma injustiça. Uma maldade."

Contei a ele o que descobri. Ele ouviu em silêncio, seu rosto se tornando mais sombrio a cada palavra.

"O artefato que eles roubaram," ele disse, a voz baixa. "Não é apenas um colar bonito. É o Olho de Anhangá. Um objeto de poder, sagrado. Ele protege a tribo a que pertence. Mas nas mãos erradas, ele pode ser usado para o mal. Ele pode criar laços, amaldiçoar."

Seu Zé examinou meus braços, meus pulsos. Ele parou, seus dedos tocando uma pequena marca avermelhada na minha pele que eu não tinha notado antes.

"Ele fez algo com você," seu Zé disse, o rosto sério. "Ele usou um pedaço do poder do artefato para te prender. Uma espécie de feitiço. Para te causar dor, para te controlar, mesmo de longe. É por isso que você sente essa angústia constante, essa fraqueza que vem e vai. Ele está te vigiando através disso."

Medo e raiva se misturaram dentro de mim. Mateus não apenas me traiu, ele me marcou, me acorrentou com uma magia sombria que eu não entendia. Aquela marca era um lembrete constante de seu controle sobre mim.

Seu Zé me deu um amuleto de proteção.

"Não vai quebrar o feitiço, mas vai enfraquecê-lo. Vai te dar um pouco de paz."

Antes de eu ir embora, ele me entregou um pequeno pacote.

"Isto estava na sua casa. Mateus deixou para trás na pressa. Acho que ele não queria que ninguém visse."

Dentro do pacote, havia uma caixa de veludo. Meu coração afundou quando a abri. Era um porta-retratos de prata, caro, algo que nunca teríamos em casa. E dentro dele, uma foto. Não de mim e Mateus, mas de Mateus e Camila.

Eles estavam em um iate, sorrindo. O braço dele estava em volta da cintura dela, de uma forma possessiva e íntima. Ela usava um biquíni caro, e ele a olhava com uma adoração que me revirou o estômago. No verso da moldura, uma gravação: "Para minha rainha, C. Com todo o meu amor, M."

A dor foi física. Todas as dúvidas, todas as pequenas esperanças que eu ainda pudesse ter, foram esmagadas. Aquela foto era a prova. O relacionamento deles não era novo. Ele estava com ela o tempo todo, me usando, rindo de mim pelas minhas costas. O amor que ele jurou para mim era uma mentira, uma ferramenta para conseguir o que ele queria.

Lembrei-me das noites em que ele chegava tarde, dizendo que estava de plantão. Eu preparava sua comida, massageava seus ombros cansados, acreditando em seu sacrifício. Agora, a imagem dele com Camila naquele iate se sobrepunha a todas as minhas memórias. Ele não estava trabalhando. Ele estava com ela. Vivendo uma vida dupla, uma vida de luxo e mentiras, enquanto eu sonhava com um futuro simples ao seu lado.

A ironia era doentia. Ele, que veio de uma família humilde como a minha, que dizia odiar a arrogância dos ricos, tinha se tornado exatamente aquilo. Ele vendeu sua alma, e a minha família pagou o preço.

Eu guardei a foto. Ela era mais uma peça do quebra-cabeça, mais um combustível para o meu fogo.

Eu precisava sair da cidade, me reagrupar. Mas antes, eu queria ver com meus próprios olhos. Fui até o bairro nobre onde Camila morava. Fiquei do outro lado da rua, escondida nas sombras. E então eu o vi. Mateus.

Ele saiu da mansão de Camila, vestindo roupas de grife, parecendo um homem que nunca tinha pisado na poeira de uma favela. Camila o seguiu, e eles se beijaram. Um beijo longo e apaixonado, bem ali, na frente de todos. A cena era tão diferente do jeito que ele agia comigo, sempre discreto, sempre com medo de que alguém nos visse.

De repente, ele parou. Ele olhou diretamente para o beco onde eu estava escondida. Seu sorriso desapareceu. Ele sentiu alguma coisa? A marca no meu pulso ardeu, uma dor aguda e repentina. O feitiço. Ele sabia que eu estava perto.

O pânico me dominou. Virei-me e corri, sem olhar para trás. Corri mais rápido do que nunca, o coração batendo na garganta, a dor no pulso se espalhando pelo meu braço. Eu precisava desaparecer, antes que ele me encontrasse e terminasse o que começou.

            
            

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