Coração Partido, Alma Endurecida
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Capítulo 3

A dor no meu pulso era um alarme constante. Ele sabia. Ele me sentiu. Eu não podia mais ficar em campo aberto. Usei o resto do dinheiro que tinha para entrar em um ônibus, qualquer um, que me levasse para longe daquela cidade amaldiçoada. Acabei em uma pequena cidade do interior, um lugar esquecido onde ninguém me conheceria.

Mas a paz não durou muito. Uma noite, enquanto eu trabalhava lavando pratos em um restaurante de beira de estrada, ele me encontrou.

Mateus entrou no lugar como se fosse o dono. Seus olhos me encontraram imediatamente. O pânico gelou meu sangue. Tentei correr, mas seus homens já estavam bloqueando a saída.

"Juju," ele disse, com aquele tom suave e falso que agora me dava nojo. "Eu te procurei por toda parte. Fiquei tão preocupado."

Ele se aproximou, e a marca no meu pulso queimou como fogo. A dor me fez recuar.

"Não me chame assim," eu disse entre dentes.

Ele viu a raiva nos meus olhos. Ele viu que eu sabia. Mas ele era um mestre da manipulação.

"Eu sei que você está confusa, assustada," ele disse, ignorando minha raiva. "Mas tudo o que fiz foi para te proteger. Você não entende a situação. Eles iam te matar."

Ele agarrou meu braço. Eu tentei me soltar, mas seu aperto era de ferro. Ele me arrastou para fora, para um carro preto que esperava.

"Para onde você está me levando?" eu gritei.

"Para um lugar seguro. Um lugar onde eu possa cuidar de você," ele disse.

O "lugar seguro" era uma casa isolada no meio do nada. Era mais uma prisão do que um refúgio. Ele me trancou em um quarto, com guardas na porta. Ele levou meu amuleto, o presente de seu Zé. Sem ele, a dor da marca era constante, uma dor surda que me lembrava de quem estava no controle.

Eu tinha escondido o porta-retratos com a foto dele e de Camila. Era a minha única arma, a minha única prova. Numa noite, quando ele veio me ver, fingindo trazer comida e conforto, eu o confrontei. Joguei o porta-retratos na cama, entre nós.

"Para minha rainha, C. Com todo o meu amor, M," eu li as palavras em voz alta. "Que bonito, Mateus. Que romântico."

Ele olhou para a foto e seu rosto não mudou. Não houve choque, não houve culpa. Apenas um frio cálculo em seus olhos.

"Onde você conseguiu isso?" ele perguntou, a voz sem emoção.

"Isso importa? É mentira, então? Você não a ama?"

"Amor é uma palavra complicada, Júlia," ele disse, pegando o porta-retratos. Ele olhou para a foto com uma expressão que eu não consegui decifrar. "Camila é... útil. Ela é meu passaporte para um mundo que você nunca entenderia. Um mundo onde eu não sou mais o garoto da favela."

"E a minha família? E eu? Éramos o preço do seu passaporte?"

"Foi um sacrifício necessário," ele disse, com uma frieza que me gelou até os ossos. "Eles estavam no caminho. Você também estava. Mas eu não quis te matar. Eu ainda tenho um carinho por você."

Carinho. A palavra era um insulto. Ele falou da morte da minha família como se fosse um negócio.

Eu tive que engolir minha raiva, meu ódio. Eu estava presa. Se eu mostrasse a ele o quão perigosa eu poderia ser, ele não hesitaria em me eliminar. Então eu fingi. Fingi estar quebrada, derrotada. Chorei, implorei por seu perdão, disse que entendia.

Ele sorriu, satisfeito.

"Eu sabia que você entenderia, Juju. Você sempre foi uma garota inteligente."

Ele me deixou sozinha no quarto, acreditando que eu era sua prisioneira dócil. Mas a cada palavra sua, a cada gesto de falso carinho, meu ódio se solidificava, se transformava em uma armadura.

No dia seguinte, o inferno chegou pessoalmente. Camila apareceu na casa. Ela entrou no meu quarto sem bater, com um sorriso arrogante no rosto. Ela usava roupas caras e jóias que valiam mais do que minha casa inteira. E no seu pescoço, brilhando com uma luz sinistra, estava o Olho de Anhangá.

"Então essa é a famosa Juju," ela disse, me olhando de cima a baixo com desprezo. "Mateus fala tanto de você. A garotinha assustada da favela."

Mateus estava atrás dela, com uma expressão desconfortável.

"Camila, talvez não seja uma boa ideia..."

"Cale a boca, Mateus. Eu quero ver a pessoa por quem minha família arriscou tanto," ela o cortou, sem nem mesmo olhar para ele.

Ela se aproximou de mim. O artefato em seu pescoço pulsou, e a marca no meu pulso respondeu com uma onda de dor tão intensa que me fez cair de joelhos.

"Veja só," Camila riu, um som cruel. "Ela até se ajoelha para mim. Que bonitinho. Você sabe, eu quase senti pena de você. Mas então eu lembrei que, se não fosse por você e sua família nojenta, Mateus não teria tido a chance de me dar este presente maravilhoso."

Ela segurou o colar, exibindo-o.

"Ele me disse que era de uma tribo extinta. Que sua família o roubou. Ele limpou o nome do artefato, assim como limpou a favela da sua família. Ele é um herói, não acha?"

Cada palavra era um soco. Ela não era apenas cúmplice; ela era a força motriz por trás de tudo. O roubo foi ideia dela.

Ela se inclinou, seu rosto perto do meu.

"Sabe o que mais ele me disse? Que o tempo que ele passou com você foi o preço que ele teve que pagar. Um investimento. E olhe só, o investimento deu um ótimo retorno."

Ela me deu um tapa no rosto. A dor física não foi nada comparada à humilhação. Eu olhei para Mateus, procurando por qualquer sinal de humanidade, qualquer traço do homem que eu pensei que amava.

Ele não fez nada. Apenas desviou o olhar, como um covarde.

"Camila, já chega," ele disse, a voz fraca.

"Não se preocupe, querido," ela disse, se afastando de mim. "Já me diverti o suficiente. Vamos embora. Este lugar cheira a pobreza."

Eles saíram, me deixando no chão, humilhada, quebrada. Mais tarde, Mateus voltou. Ele não pediu desculpas.

"Camila pode ser... intensa," ele disse, como se estivesse falando do tempo. "Ela está sob muita pressão."

Eu olhei para ele, para o homem que permitiu que eu fosse torturada na sua frente. A última centelha de qualquer sentimento que não fosse ódio morreu naquele momento. Não havia mais nada a ser salvo. Não havia mais nada a ser entendido.

"Eu entendo," eu disse, a voz vazia.

Ele pareceu aliviado.

"Bom."

Naquela noite, enquanto ele dormia em outro quarto, acreditando que eu era sua prisioneira controlada, eu comecei a planejar. A humilhação que sofri nas mãos de Camila, a covardia de Mateus... eles não me quebraram. Eles me forjaram.

Peguei um pedaço de vidro solto da janela quebrada. Com a mão tremendo de raiva e determinação, comecei a cavar a marca no meu pulso. A dor era excruciante, mas era uma dor que eu escolhi. Uma dor que me libertaria.

Eu não ia apenas escapar. Eu ia voltar. E eu ia destruir os dois. Eu ia arrancar aquele colar do pescoço de Camila e fazê-la engolir cada palavra arrogante. E eu ia fazer Mateus se ajoelhar, não por poder, mas por desespero. Eles me mostraram o quão cruéis podiam ser. Agora, eu mostraria a eles o monstro que eles criaram.

                         

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