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Na manhã seguinte, Mila acordou com o som de passos do lado de fora. Levantou devagar, com o corpo dolorido de tanto carregar caixas e dobrar lençóis velhos no dia anterior.
Olhou em volta: o quarto improvisado ainda parecia um depósito, mas pelo menos havia uma cama sem manchas e uma tomada funcionando onde pôde carregar o celular.
Blerim tinha cumprido a promessa. No final da tarde anterior, ele reapareceu com um eletricista e um encanador locais. Ficaram horas falando em albanês, apontando para fios pendurados no teto, mexendo nos canos enferrujados que saíam da parede do corredor. Mila não entendeu metade da conversa, mas no fim, ouviu a notícia que não sabia que desejava tanto:
- Luz e água funcionando. - Blerim dissera, limpando as mãos num pano sujo. - Não recomendo confiar muito no aquecedor, mas pelo menos pode tomar banho quente.
Naquele instante, ela quase sorriu. Quase.
Agora, enquanto calçava o tênis, sentia o frio do piso subir pelas solas dos pés. Era julho, mas ali dentro tudo parecia guardar um inverno antigo.
Passou pelo corredor devagar, observando como a claridade filtrada pelas cortinas empoeiradas desenhava formas no chão - sombras alongadas que se mexiam conforme ela caminhava. Ao fundo, ouviu Blerim falando ao telefone, a voz baixa e firme. Quando se aproximou, ele desligou e virou-se para ela.
- Dormiu aqui mesmo? - perguntou, erguendo uma sobrancelha.
- Dormi. - disse Mila, tentando não parecer insegura. - O quarto está... aceitável.
- E o banheiro?
- Funcional, pelo menos. - ela respirou fundo. - Melhor do que eu esperava.
Ele sorriu de leve.
- A casa agradece a sua indulgência.
Ela cruzou os braços, arqueando uma sobrancelha.
- A casa agradece?
- É. - ele deu de ombros. - Você não percebeu? Parece mais... viva. Menos abandonada.
Mila balançou a cabeça, mas não respondeu. Porque, no fundo, sentia exatamente isso. Cada cômodo que tocava parecia acordar devagar, como se reconhecesse sua presença.
- Hoje vou continuar pelos fundos. - ele disse, mudando de assunto. - Preciso verificar se a estrutura ali está comprometida. Mas se quiser começar a organizar o que pretende manter, pode usar o quarto ao lado do seu. O piso lá está firme.
- Obrigada.
- E, Mila... - ele hesitou, como se ponderasse se devia falar. - Se sentir que... que não está bem, me avise. Às vezes, essas casas antigas mexem com a gente de um jeito estranho.
Ela prendeu a respiração por um instante. Não sabia se ficava irritada pela condescendência ou tocada pela preocupação. Escolheu não responder nada e passou por ele, indo até o cômodo que decidira transformar num depósito temporário.
O quarto era estreito, com uma única janela alta. Nas paredes, pequenos pregos ainda seguravam pedaços de tecido que deviam ter sido cortinas. Mila empilhou algumas caixas vazias num canto e começou a abrir as que Blerim trouxera da sala.
Dentro, havia tudo: fotografias sem data, livros com dedicatórias em caligrafia antiga, toalhas bordadas, latas de biscoito vazias, lenços que guardavam o cheiro de cânfora e algo que lembrava terra molhada.
Em uma das caixas, encontrou um álbum de capa vermelha. Abriu devagar. As primeiras páginas estavam coladas, mas depois, as fotografias surgiram - retratos de casamento, crianças que ela não reconhecia, rostos que se repetiam em festas, enterros, batizados. Alguns, olhavam para a câmera como se soubessem que seriam observados muito tempo depois.
No fundo do álbum, um envelope pequeno. Nele, apenas uma palavra escrita a lápis: Për të. Para ela.
O coração de Mila deu um salto.
Ela sentou no chão, com o álbum no colo, respirando fundo antes de abrir o envelope. Dentro, encontrou um pedaço de papel dobrado muitas vezes. Quando desdobrou, reconheceu a caligrafia firme da avó.
Mila, se você está lendo isso, significa que já não estou aí para lhe explicar. Talvez eu nunca tenha sido boa com palavras. Talvez tenha feito escolhas que você jamais vai entender. Mas saiba que tudo o que fiz foi para proteger você. A casa guarda verdades que podem ferir e curar ao mesmo tempo. Cuide dela se puder. Mas, acima de tudo, cuide de si.
Ela fechou os olhos, pressionando o papel contra o peito. Uma lágrima quente escorreu, rápida demais para conter. Tentou afastar a voz interior que dizia que talvez nunca descobrisse todas as verdades - e que, no fundo, não sabia se queria.
Mais tarde, encontrou Blerim no corredor dos fundos. Ele estava ajoelhado perto de uma pilha de tijolos soltos, examinando o que parecia ser uma antiga passagem bloqueada.
- Algum problema? - ela perguntou, com a voz ainda rouca.
Ele ergueu o olhar.
- Não sei ao certo. Pode ser só uma reforma malfeita, mas... - Passou a mão pela parede, como quem tenta sentir algo além da superfície. - Pode ser que aqui tenha sido um alçapão. Ou uma ligação com o porão.
- Porão?
- Cada casa antiga dessas tem um. E nem sempre são lugares onde você quer entrar.
Ela engoliu em seco.
- Vai abrir?
- Não hoje. Preciso das ferramentas certas. - Ele ficou de pé, limpando as mãos na calça. - Mas se quiser, podemos lacrar isso e fingir que nunca esteve aqui.
Mila pensou por um instante. E percebeu que não queria mais fingir nada.
- Não. - disse, baixando a voz. - Se há algo aí, eu quero saber.
Blerim a observou por um momento que pareceu mais longo do que deveria. Então assentiu.
- Está bem.
No fim do dia, quando ele já tinha ido embora, Mila ficou sentada no degrau da entrada. O céu começava a escurecer em tons de lilás e ferrugem, e a casa parecia respirar atrás dela - um sopro antigo, profundo, que subia pelas paredes e chegava até o telhado.
Ela olhou para a rua, onde ninguém passava. Berat inteira parecia segurar o fôlego.
Por um instante, pensou em pegar as malas e voltar para a pensão. Mas não conseguiu se mover.
Talvez fosse mais fácil pensar que tudo aquilo era apenas madeira e pedra. Mas algo nela - algo que se recusava a calar - sabia que não era só isso.
Ali, naquele lugar onde o sol se punha devagar, Mila percebeu que não estava apenas abrindo portas. Estava se deixando ficar.