O sol já começava a se esconder atrás dos prédios quando voltei para a pousada, cansada e com os pés doendo. No quarto, deitei olhando para o teto e senti aquele mesmo nó no peito que carreguei a vida inteira. Mas agora havia algo diferente: a cidade estava ali, do lado de fora, cheia de portas que eu ainda não tinha batido.
E pela primeira vez, a ideia de que meu futuro dependia só de mim não me assustava tanto.
Na manhã seguinte, o sol já entrava pelas frestas da janela quando o despertador tocou, arranhando minha mente ainda meio presa ao sono. Virei para o lado e encarei o teto com vontade de voltar a dormir, mas sabia que não podia. Preciso levantar, pensei, apertando os dentes para ignorar o cansaço que grudava no meu corpo.
O quarto na Pousada Horizonte Azul tinha um cheiro estranho de limpeza misturado com mofo, e o chão fazia barulho quando pisei descalça para descer as escadas. O velho corrimão de madeira rangeu sob minha mão, e eu fiquei olhando para as portas fechadas dos outros quartos , ainda não sabia os nomes nem as histórias daqueles que moravam ali.
Na pequena cozinha da pensão, algumas pessoas já estavam sentadas à mesa, comendo pão e tomando café preto. O cheiro forte do café misturava-se com o perfume barato da senhora que cuidava da pousada. Sentei-me em uma cadeira perto da janela e peguei o pão com manteiga que me ofereceram, tentando disfarçar o nervosismo que me apertava o estômago.
- Você é nova aqui, né? - uma voz animada quebrou meu silêncio.
Olhei para o lado e vi uma garota com olhos grandes e castanhos, cabelos enrolados presos em um rabo de cavalo bagunçado. Ela sorriu, mostrando dentes brancos.
- Sim, cheguei ontem - respondi, tentando parecer confiante.
- Eu me chamo Júlia - ela disse, estendendo a mão. - Trabalho numa empresa aqui perto, cuidando da limpeza. É puxado, mas paga as contas.
Apertamos as mãos, e algo no jeito dela me fez sentir menos sozinha.
- Eu estou procurando emprego - falei baixo, olhando para o pão, meio envergonhada.
- Então você teve sorte - Júlia falou com um brilho nos olhos. - Na empresa onde eu trabalho, estão precisando de gente. Faxineira, sabe? Aquela vaga que ninguém quer, mas que é importante demais.
- Onde é essa empresa? - perguntei, erguendo o rosto.
- É o prédio grande na Avenida Álvares Cabral, perto do centro.
Lá dentro é um luxo, menina, você nem imagina. Tem gente de terno pra tudo quanto é lado, e o cheiro de café é daqueles caros, que só quem vive nesse mundo conhece.
Meu coração bateu forte. Um prédio tão chique parecia um sonho distante, mas também uma chance real.
- Você acha que eu conseguiria? - perguntei, meio sem esperança.
- Claro! - Júlia disse com firmeza. - E eles estão precisando urgente. Se quiser, posso te levar lá hoje.
- Sério? - perguntei, surpresa.
- Sério! - ela riu. - Você vai ver que não é tão assustador quanto parece.
O céu estava azul claro, e o sol iluminava as fachadas das lojas e prédios. Conforme nos aproximávamos do endereço, eu sentia o peso da insegurança apertando meu peito. Tudo ali era tão diferente do orfanato, da pousada e da pequena cidade onde cresci.
Quando chegamos, fiquei impressionada. O prédio era alto, imponente, e as paredes de vidro refletiam o céu, as árvores e as pessoas passando apressadas. A porta automática se abriu com um sussurro quando nos aproximamos.
- Respira fundo - Júlia falou, segurando meu braço. - Você vai ver que é só mais um lugar pra trabalhar.
Entramos no saguão amplo, com piso de mármore brilhante, vasos com plantas gigantes e sofás de couro que pareciam de outro mundo. O som dos passos ecoava pelo espaço, misturado com conversas baixas e o toque constante de teclados.
- Onde você vai? - uma mulher de salto alto perguntou, olhando para Júlia com um sorriso frio.
- Trouxe uma amiga para a entrevista - Júlia respondeu, me apertando o braço para eu seguir.
Fomos até o escritório da gerente de RH, uma mulher elegante com cabelos presos em coque e óculos modernos.
- Boa tarde - Júlia falou, confiante. - Esta é a Lua, ela quer a vaga de faxineira.
A gerente me olhou de cima a baixo, e notei seu olhar avaliando cada detalhe: minha roupa simples, minhas mãos ásperas, meus olhos que não escondiam a mistura de medo e esperança.
- Precisamos de alguém para começar imediatamente - ela disse, abrindo uma pasta no computador. - Você tem experiência?
- Tenho - respondi, tentando controlar a voz trêmula. - No orfanato eu ajudava a limpar... tudo.
Ela digitou algo, depois olhou para Júlia, que sorriu afirmativamente.
- Tudo bem - disse a gerente. - Você está contratada. Amanhã começa às sete da manhã. É um trabalho duro, mas se dedicar, pode crescer na empresa.
Meu corpo estremeceu, e uma mistura de alívio e ansiedade me invadiu.
- Muito obrigada - consegui dizer.
- Amanhã, tudo vai mudar - pensei, fechando os olhos.
Saímos do escritório e eu mal podia acreditar no que tinha acabado de acontecer. Estava ali, num dos prédios mais importantes da cidade, pronta para começar uma nova vida.