Olhei para a mulher que, de todas as pessoas que já passaram por minha vida, foi a única a me oferecer afeto sem pedir nada em troca. Ela parecia menor hoje, como se a despedida tivesse encolhido seus ombros.
- Eu... - minha garganta fechou. Não sabia o que dizer. Como se despede de alguém que foi mãe, amiga e irmã ao mesmo tempo?
- Você é forte, menina - ela falou, e seu sorriso era um disfarce para os olhos molhados. - Mas não precisa ser o tempo todo. Não tenha vergonha de pedir ajuda quando precisar.
Assenti, apertando os lábios para não chorar.
Eu odiava chorar.
Talvez porque, quando criança, chorar nunca resolveu nada.
A Irmã Clara me abraçou, e eu senti seu cheiro de sabonete simples e café fraco. Aquele cheiro que, por anos, me fez acreditar que ainda havia coisas seguras no mundo.
- Não olhe para trás, Lua. - Ela afastou-se, segurou meu rosto com as mãos frias. - O futuro é seu.
Meu olhar se desviou para o jardim do orfanato. A grama malcuidada escondia lembranças que eu queria enterrar de vez. Noites inteiras sem dormir, o colchão fino rangendo a cada movimento, o medo constante de acordar e encontrar a sombra do jardineiro parada ao lado da minha cama.
Eu ainda sentia o cheiro dele às vezes. Um cheiro rançoso, de suor velho e fumaça de cigarro.
E, nas noites mais silenciosas, ainda ouvia o rangido da porta que ele abria devagar.
Pequena demais para entender tudo, mas suficiente para sentir nojo e pavor. Ele nunca conseguiu o que queria, mas o medo... o medo ficou. Sempre ficou.
As lembranças me torturaram , a fumaça. As
chamas subindo rápido, o crepitar queimando meus ouvidos.
O peso do garoto em meus braços , ele era quase do meu tamanho, mas estava mole, fraco, com a boca espumando, o corpo quente demais.
Eu não lembro do rosto dele. Nunca consegui. É como se minha mente tivesse apagado essa parte de propósito.
Mas lembro das mãos dele tentando se segurar em mim.
E do gosto amargo da fumaça entrando pela minha boca enquanto eu o arrastava para longe do fogo.
Eu tinha sete anos. E, mesmo depois que todos disseram que foi coragem, que foi um milagre... ninguém nunca perguntou como eu me sentia por ter quase morrido naquele dia.
- Lua? - A voz da Irmã Clara me trouxe de volta. - Você precisa ir, filha.
Olhei para a rua. O mundo parecia maior do que eu lembrava.
O ar de fora tinha um cheiro diferente, mais vivo, mais perigoso.
Meus dedos apertaram a alça da mala. O coração batia rápido, como se eu estivesse prestes a entrar em uma casa pegando fogo de novo.
- Obrigada... - foi tudo o que consegui dizer.
Ela sorriu.
Os portões se fecharam atrás de mim com um estrondo que ecoou no meu peito.
Pela primeira vez na vida, não havia muros ao meu redor.
E, pela primeira vez, não havia ninguém para me proteger.
Dei alguns passos e, a cada passo, sentia um misto de euforia e medo.
O sol batia no meu rosto, mas era como se parte de mim ainda estivesse nas sombras do orfanato.
A liberdade tinha um gosto estranho: doce e salgado ao mesmo tempo.
Doce porque eu estava fora. Salgado porque, agora, tudo dependia só de mim.
Enquanto caminhava pela estrada de terra que levava até a cidade, percebi que não tinha um plano.
Nenhum lugar para dormir, pouco dinheiro e nenhum amigo .
Tudo que eu tinha era uma mala, um caderno e memórias que me perseguiam como fantasmas.
Mas, mesmo assim, continuei andando.
Porque, se eu parasse, talvez descobrisse que a liberdade não era tão bonita quanto eu imaginava.
O vento da manhã batia no meu rosto, trazendo o cheiro de terra molhada, como se o mundo estivesse lavando o passado para eu poder começar de novo. Segurava minha bolsa surrada com tanta força que meus dedos doíam.
A rodoviária da cidade pequena era quase uma sala grande com alguns bancos de madeira e uma lanchonete com cheiro de café queimado. Paguei a passagem para Belo Horizonte depois de perguntar duas vezes o preço, para ter certeza de que não tinha entendido errado. Era caro para mim, mas não havia opção. Eu queria a cidade grande, os prédios altos, as ruas iluminadas , queria um lugar onde ninguém me conhecesse, onde meu passado não tivesse peso.
Enquanto esperava o ônibus, observei um casal se despedindo com beijos demorados. Eu não sabia o que era ter alguém esperando por mim, ou alguém para sentir minha falta. Sempre fui eu por mim mesma, desde que me entendo por gente.
Quando o ônibus chegou, subi devagar, escolhendo um assento junto à janela. A estrada começou a se desenrolar diante de mim.
Colinas verdes, plantações, casas isoladas. Aos poucos, as cores do interior foram ficando para trás e os sinais da cidade foram surgindo, primeiro postos de gasolina mais movimentados, depois viadutos, placas grandes, fachadas de lojas que eu nunca tinha visto.
No meio do caminho, encostei a testa no vidro e fechei os olhos. A vibração do motor me embalava
Um sol forte estava no alto quando o ônibus finalmente entrou em Belo Horizonte. Meu coração bateu mais rápido. A cidade parecia enorme, viva, barulhenta. Carros para todos os lados, pessoas apressadas, vendedores nas calçadas. Havia tanto para olhar que fiquei perdida. Desci na rodoviária com minha bolsa no ombro e um nó no estômago.
Eu não tinha para onde ir, mas sabia que precisava encontrar um lugar barato para passar a noite. Andei pelos corredores da rodoviária, perguntando em dois guichês de informação, até que uma atendente me indicou algumas pousadas simples ali perto. Segui o caminho com passos rápidos, mas mantendo a atenção. Na cidade grande, eu não podia me dar ao luxo de ser ingênua.
Depois de alguns minutos, encontrei uma pousada de fachada modesta, mas limpa. O letreiro dizia "Pousada Horizonte Azul", e uma senhora de cabelo preso num coque me recebeu atrás do balcão.
- Boa tarde, moça. Vai querer quarto por diária ou semana? - ela perguntou, enquanto folheava um caderno de registros.
- Por diária... por enquanto - respondi, tentando manter a voz firme.
O valor me fez engolir seco, mas entreguei as notas contadas. Ela me deu uma chave com um número gravado e apontou para uma escada estreita. Subi até encontrar meu quarto
Pequeno , com uma cama de solteiro, um armário velho e uma janela que dava para a rua movimentada.
Larguei a bolsa no canto e me sentei na cama, sentindo a vibração do trânsito subindo pelas paredes. Por um instante, pensei na irmã Clara. Ela teria adorado ver a cidade, mas também teria me lembrado de rezar antes de me aventurar nela.