Eu só tinha cinco anos. Não sabia exatamente o que ele queria, mas sabia que era errado.
Foi quando a lembrança veio. Como se alguém tivesse acendido uma luz dentro da minha cabeça. Eu não estava mais ali, no quintal. Eu estava numa sala iluminada por um abajur. O carpete era macio debaixo dos meus pés pequenos.
Um homem de cabelos brancos, terno escuro e cheiro de perfume caro se ajoelhava diante de mim. O rosto dele era calmo, mas os olhos.. os olhos tinham urgência.
- Lua, meu anjo - ele me segurava pelas mãos - você vai precisar ficar aqui por um tempo, mas o vovô vem te buscar, eu prometo. As lágrimas ardiam nos meus olhos.
- Eu não quero ficar aqui, vovô! Eu quero ir com você - minha voz ecoou dentro de mim, pequena e desesperada. O cheiro de terra voltou. O muro áspero arranhando minhas costas. A respiração dele perto demais.
- Para de se mexer, menina - o jardineiro apertou meu braço com força. Eu gritei. Alto. Tão alto que senti minha garganta rasgar.
- O QUE É ISSO AÍ ? - a voz da diretora, dona Conceição, cortou o ar como um chicote. O jardineiro recuou rápido, soltando meu braço. Eu deslizei para o chão, engasgada de choro.
Ela se aproximou com passos duros, o rosto vermelho não de indignação, mas de raiva por ter flagrado algo que podia dar problema.
- Vá já para dentro, Lua - ela ordenou, nem olhando para mim direito. Eu corri, tropeçando, as lágrimas turvando minha visão. Atrás de mim, a voz dela se abaixou num tom cúmplice para o jardineiro.
- Você é maluco? Quer que alguém veja? Entrei no dormitório e fechei a porta, sentando no canto da cama de ferro. Meu braço doía onde ele tinha me segurado.
Passei os dedos sobre a marca avermelhada e tentei controlar o choro. Eu queria esquecer, mas a imagem daquele homem de cabelos brancos continuava queimando na minha mente. Quem era ele? Por que me deixou ali? E por que nunca veio me buscar, como prometeu? Nos anos seguintes, aprendi que o orfanato não era um lugar para perguntar.
Quem perguntava demais apanhava, ficava sem comer ou era trancado na "sala escura". Então guardei aquela lembrança como se fosse um tesouro perigoso. A irmã Clara sempre anda rápido, como se o chão fosse quente. Eu preciso dar passinhos apressados para não ficar para trás. Ela segura a caixa com os braços finos, mas fortes ..
- É só entregar para o padre e voltamos, Lua. Não se afaste, entendeu? Eu balanço a cabeça que sim, mas meus olhos estão presos nas ruas da cidade.
Nunca consigo olhar para tudo de uma vez. As casas são coloridas, as janelas têm flores e as pessoas sorriem umas para as outras. É tão diferente do orfanato que parece outro planeta.
Entramos pelo pátio lateral da igreja, e ela desaparece por uma porta pesada de madeira.
- Fique aqui perto! - repete. Eu fico... mais ou menos.
O portão de madeira no canto está meio aberto, e um cheiro diferente vem de lá. Passo por ele devagar e vejo um caminho de terra batida que leva aos fundos da igreja.
O cheiro fica mais forte. Não é cheiro de pão, nem de flores. É amargo, faz minha garganta arranhar. Mais alguns passos e vejo fumaça fina saindo do telhado do estábulo.
Meu coração bate rápido. Olho para os lados , não tem ninguém. Dou um passo .. dois.. e ouço um som baixo, quase um gemido.
- Tem alguém aí? - chamo, mas o estalo da madeira quase cobre minha voz. Chego perto e olho pelas frestas da porta. Tem um menino lá dentro. Ele está caído no chão, perto das baias. É alto , forte , mas está mole, como se o corpo fosse feito de pano. O cabelo castanho gruda na testa suada e.. tem espuma branca na boca dele.
- Moço? - minha voz treme. Ele abre os olhos com esforço
- Ajuda..
Corro para a porta e tento girar a tranca. Está presa. Empurro, puxo... nada. Meu coração está tão rápido que parece que vai pular pela boca. Olho para o chão e vejo uma pedra grande perto da cerca. Pego com as duas mãos e bato contra o cadeado.
- Eu vou abrir - prometo, mesmo sem saber se consigo. Bato uma, duas, três vezes.. até ouvir o ferro ceder. A porta range e a fumaça quente vem direto no meu rosto. Entro tossindo. O ar está pesado, difícil de respirar. Meus olhos ardem.
- Vem - seguro o braço dele e tento puxar. Ele tenta se levantar, mas as pernas falham. Ele está muito fraco.
Então passo o braço dele pelo meu ombro e começo a arrastar. O calor aumenta a cada segundo e o cheiro de queimado enche minha boca. Um estalo alto me faz olhar para cima, uma viga começa a soltar fagulhas.
- Rápido.. - ele sussurra, quase sem voz. Eu aperto o passo como posso. A porta está perto. Puxo, puxo.. e finalmente saímos para o pátio aberto.
O ar frio entra nos meus pulmões como um soco. Ele cai de joelhos na grama, respirando com dificuldade, os olhos meio fechados.
- Quem fez isso com você? - pergunto sem pensar. Ele me olha. Por um instante, parece que vai responder, mas um barulho de passos rápidos corta o momento.
- LUA - a voz da irmã Clara explode no ar. Ela corre até mim, o rosto cheio de susto.
- Meu Deus.. - segura minha mão e me puxa para trás. Homens aparecem correndo, falando alto, e vão até o menino.
Eu tento ficar para ver, mas a irmã me arrasta de volta para a igreja.
Antes de sumir da minha vista, ele me olha uma última vez. Um olhar que prende o meu, como se quisesse gravar minha cara para sempre.