De Servo a Salvador
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Capítulo 3

Tentei me refugiar no meu pequeno quarto nos aposentos dos funcionários, meu santuário, mas não consegui chegar.

Uma mão agarrou meu braço, me puxando para trás. Era um dos seguranças da família Almeida Prado. Ele era enorme, seu rosto impassível.

"A Sra. Almeida Prado quer vê-la", ele grunhiu.

Ele não esperou por minha resposta. Arrastou-me pela mansão, seu aperto machucando. Minha manga fina de algodão rasgou no ombro, expondo minha pele ao ar frio e julgador da casa.

Ele me puxou para o grande salão da família. Era uma sala reservada para ocasiões formais, fria e imponente, cheirando a polidor de limão e dinheiro antigo. Parecia um tribunal.

Eleonora Almeida Prado, a matriarca da família, sentava-se em uma cadeira de espaldar alto, sua postura ereta como uma vara. Ela era uma mulher formidável com olhos tão afiados e cinzentos quanto pederneira. Dorian estava ao seu lado, o rosto uma máscara fria e indecifrável.

E ao lado dele, parecendo enganosamente frágil e chateada, estava Isabela.

No chão, em mil pedaços brilhantes, jaziam os restos estilhaçados de um vaso de porcelana. Era uma antiguidade da Companhia das Índias, a posse mais valiosa de Eleonora.

"Kira", a voz de Eleonora era como gelo se quebrando. "Isabela me diz que você quebrou meu vaso de propósito."

Minha cabeça se ergueu bruscamente. Olhei da porcelana quebrada para o rosto de Isabela. Havia um sorriso minúsculo, quase imperceptível, em seus lábios. Ela tinha feito isso.

"Isso não é verdade", eu disse, minha voz tremendo um pouco. "Eu não o toquei."

"Ela está mentindo", Isabela choramingou, agarrando o braço de Dorian. "Ela estava com raiva do noivado. Ela disse... ela disse que se não pudesse ter você, ninguém poderia. Então ela jogou o vaso."

A mentira era tão audaciosa, tão cruel, que me roubou o fôlego.

Olhei para Dorian, meus olhos suplicando. Ele me conhecia. Ele sabia que eu nunca faria algo assim.

Mas ele não olhou para mim. Ele olhou para Isabela, sua expressão se suavizando com preocupação.

Então ele se virou para mim, e seu rosto era de pedra.

"De joelhos, Kira", disse ele, sua voz terrivelmente calma. "Peça desculpas a Isabela."

As palavras me atingiram mais forte que um tapa. Ajoelhar? Pedir desculpas por algo que não fiz?

Uma memória passou pela minha mente. Dorian, com dezesseis anos e febril, agarrado à minha mão. "Não me deixe, Kira. Prometa que nunca vai me deixar." Eu havia prometido. Eu sempre mantive minhas promessas.

Aquela memória, antes uma fonte de conforto secreto, agora parecia um caco de vidro no meu coração.

Ele queria que eu me ajoelhasse. Sobre os pedaços quebrados do tesouro de sua avó.

O segurança atrás de mim me empurrou para frente. Eu tropecei, meus joelhos batendo no chão com um baque doentio. Uma dor aguda e lancinante subiu pelas minhas pernas enquanto os cacos de porcelana mordiam minha carne.

Eu ofeguei, mordendo o lábio para não gritar.

Através de uma névoa de dor, vi o sorriso triunfante de Isabela e a carranca impaciente de Dorian. Ele não se importava que eu estivesse machucada. Ele só queria que isso acabasse.

Eu me ergui um pouco, tentando manter o equilíbrio, as costas retas. Eu não lhes daria a satisfação de me ver rastejar.

"Dorian, eu nunca...", comecei, minha voz embargada de dor e incredulidade.

Ele me interrompeu, dando um passo à frente. Agachou-se na minha frente, o rosto a centímetros do meu. Por um momento, pensei que ele ia me ajudar. Vi o menino com quem cresci, o menino que eu amava.

Então ele pressionou a mão no meu ombro, forçando todo o meu peso de volta sobre meus joelhos sangrando.

A dor era ofuscante. Lágrimas brotaram em meus olhos.

"Peça desculpas", ele repetiu, sua voz um rosnado baixo e perigoso.

O cheiro dele, aquela mistura familiar de colônia e algo unicamente Dorian, preencheu meus sentidos. Costumava ser meu conforto. Agora era veneno.

"Sinto... muito", sussurrei, as palavras com gosto de cinzas na minha boca. Cada sílaba era uma rendição. Sangue quente escorria pelas minhas pernas, manchando minhas calças simples, formando uma poça no caro tapete persa.

Isabela deu um suspiro magnânimo. "Suponho que posso perdoá-la. Ela está claramente transtornada."

Dorian se levantou, seu dever cumprido. Ele não me ofereceu a mão. Ele nem sequer olhou para meus ferimentos.

Eleonora finalmente falou. "Cuide para que ela seja punida, Dorian. Isso não pode acontecer novamente."

Ele assentiu, depois me pegou nos braços. O movimento súbito enviou uma nova onda de agonia através de mim. Meu sangue manchou a frente de seu caro suéter de caxemira.

A caminhada de volta ao meu quarto foi a mais longa da minha vida. Eu tremia em seus braços, pela dor, pelo frio, pelo desejo doentio e traiçoeiro de seu toque. Seu corpo ainda estava quente, um conforto familiar que meu próprio corpo se recusava a esquecer, mas seu coração havia se transformado em gelo.

Ele me colocou na minha pequena cama e pegou o kit de primeiros socorros. Seus movimentos eram eficientes, impessoais, como um médico tratando um estranho.

"Você precisa aprender o seu lugar, Kira", disse ele, sua voz baixa enquanto limpava os cortes em meus joelhos. Seu toque era surpreendentemente gentil, um fantasma do cuidado que ele costumava me mostrar. "Isabela vai ser minha esposa. Ela é a futura matriarca desta família. Você não vai desrespeitá-la."

"Ela mentiu, Dorian", sussurrei, minha voz rouca. Toquei a velha e fraca cicatriz em seu pulso, uma cicatriz que ele ganhou me protegendo de uma estante que caiu quando éramos crianças. "Você sabe que ela mentiu."

O calor de sua pele sob meus dedos era uma contradição dolorosa. Quente e frio. Gentil e cruel.

Ele puxou a mão como se meu toque o queimasse.

"Pare com isso", disse ele bruscamente. "Isabela é delicada. Você não tem sido nada além de hostil com ela desde que chegou."

Ele acreditou nela. Ele escolheu acreditar na mentirosa linda e polida em vez de mim, a garota que lhe deu seu sangue por quinze anos.

Uma risada, aguda e quebrada, escapou dos meus lábios. "Delicada? Dorian, você está cego?"

A dor em meus joelhos era um eco surdo e latejante da ferida aberta em minha alma. Ele costumava me proteger. Ele costumava ser meu escudo contra o mundo. Agora, ele era quem segurava a espada.

Olhei para ele, realmente olhei para ele, e vi um estranho. O menino que eu amava se foi, substituído por este homem frio e cruel.

A dor e o amor estavam tão emaranhados dentro de mim que eu não conseguia distingui-los. Era um veneno doce que eu vinha bebendo há anos.

"Vai ficar tudo bem, Kira", ele murmurou, sua voz suavizando um pouco enquanto terminava de enfaixar meus joelhos. Era o mesmo tom que ele usava para acalmar um cavalo assustado. "Apenas seja uma boa menina."

Eu sabia, com uma certeza que me gelou até os ossos, que nunca mais ficaria tudo bem.

Do lado de fora da minha janela, a chuva havia começado novamente, uma garoa lenta e miserável. O céu era da cor de chumbo.

Meu coração martelava um ritmo frenético e solitário contra minhas costelas.

As rachaduras entre nós haviam se tornado um abismo. E eu sabia, com uma clareza final e desoladora, que foi ele quem me empurrou.

            
            

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