Enquanto saímos de casa, olho para trás uma última vez, absorvendo cada detalhe: a marca de lápis na parede da altura de Mally aos seis anos, a cadeira de balanço onde li tantas histórias para ela, o quadro torto na parede que nunca conseguimos alinhar perfeitamente. As sombras do entardecer estão mais longas agora, esticando-se como dedos fantasmagóricos, envolvendo cada canto, transformando o familiar em algo quase místico. Uma parte de mim fica ali, presa entre as paredes, rochas e o som do mar batendo nelas, que guardam tantas memórias, como se minha essência já estivesse se desprendendo do corpo, depositando-se nos cantos da casa como pó de estrelas invisível.
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No caminho para o hospital, o silêncio entre nós é pesado, mas não vazio. Ele está carregado de tudo o que não conseguimos dizer, de promessas não verbalizadas, de medos não confessados, de um amor que parece grande demais para caber em palavras. O carro desliza suavemente pela estrada costeira e, pela janela, vejo o oceano, vasto e indiferente, continuando seu eterno ciclo de ondas como fez por milhões de anos antes de nós e continuará fazendo muito depois que não estivermos mais aqui.
Olho para meu marido ao volante, suas mãos firmes o segurando, mas os nós dos dedos brancos de tensão. A barba por fazer, o cabelo ligeiramente grisalho nas têmporas que não estava lá há alguns anos, quando tudo isso começou. Ele sente meu olhar e me dá um sorriso rápido antes de voltar os olhos para a estrada. Penso em tudo o que vivemos juntos: as discussões bobas sobre qual filme assistir, as reconciliações apaixonadas após brigas sérias, as noites em claro quando Mally estava doente, os momentos de pura alegria quando conseguimos terminar a reforma da nossa casa depois de anos em meio ao medo de não sermos bons pais antes dela nascer...
E então penso em Mally. O rosto dela surge em minha mente com clareza cristalina - os olhos verdes como os meus, o queixo teimoso como o do pai, o sorriso que parece iluminar o mundo. O som de sua risada ecoa em meus ouvidos, tão real que quase olho para o banco traseiro esperando vê-la ali. Meu coração se aperta com uma dor física, como se estivesse sendo esmagado em um punho invisível. Ela está na escola, sei que eu poderia ter sido egoísta e falado que hoje ela ficaria comigo. Mas ela passou a semana tão animada com a festinha que teria na escola... que eu a deixei ir. Sei que ela é forte, minha pequena guerreira. Sei que tem dentro de si uma resiliência que vai surpreender a todos. Sei que, com o tempo, ela encontrará seu caminho através desta tempestade, assim como uma borboleta... Nossa pequena borboletinha. Mas isso não diminui a dor dilacerante de saber que não estarei lá para vê-la crescer, para segurar sua mão no primeiro dia do ensino médio, para ajudá-la a escolher o vestido de formatura, para segurá-la quando ela cair, para rir de suas vitórias, confortá-la em suas derrotas e abraçá-la quando seu coração partir a primeira vez por causa de amor ou estar ao seu lado, quando ela for amada da maneira que merece.
- Você acha que ela vai se lembrar de mim? Será que Mally vai lembrar de mim assim? Com risos e flores, ou com tubos e agulhas? - pergunto subitamente, quebrando o silêncio, minha voz trêmula traindo o medo que tento esconder.
Meu marido olha para mim brevemente, e seus olhos estão cheios de uma dor que espelha a minha, mas também de uma certeza inabalável.
- Ela nunca vai te esquecer. Nunca! - Sua voz é intensa, quase feroz em sua convicção. - Eu não vou deixar, amor. Vamos olhar suas fotos todos os dias, contar histórias sobre você todas as noites. Vamos celebrar seu aniversário e lembrar das coisas engraçadas que você dizia. Mally tem dez anos e se lembrará de você sempre. Você não é apenas sua mãe, você é parte dela, está em cada célula do seu corpo, em cada gesto, cada sorriso. Como poderia esquecer? Se ela se lembrar de você com tubos e agulhas, será com orgulho, porque você é uma guerreira, que lutou bravamente para estar ao nosso lado todos os dias.
Assinto, tentando acreditar em suas palavras, agarrando-me a elas como um náufrago a um pedaço de madeira em mar revolto. Quero que seja verdade, preciso que seja verdade. A ideia de ser esquecida, de me tornar apenas uma menção ocasional, uma foto empoeirada em uma estante, é quase tão assustadora quanto a própria morte.
Às vezes penso que eu poderia gritar e esperar, dizer a Deus que quero mais tempo, que preciso de mais tempo... Mas o cansaço me dominou, a certeza tomou meu peito e estou cansada de lutar. Não sei se pode parecer egoísmo, mas cansei de me sentir coitadinha. Claro que, no primeiro ano, chorei e me desesperei, perguntando-me o porquê. Mas a vida tem seus ciclos e cada um tem sua hora. Acredito que o que era para ser vivido eu vivi!
Fui amada bem mais do que merecia, tive a oportunidade de ser mãe, vi minha filha crescer com saúde, vi meu marido crescer como homem e também profissionalmente. Nossa pequena loja evoluiu conosco, meu marido é um pai maravilhoso e tenho meus sonhos realizados.
O que mais eu poderia pedir?
Apenas ficar com eles? Ainda manterei meu fraco e cansado coração batendo a todo vapor?
Sonhos e desejos foram realizados e sou grata por isso. Momentos e realizações são passageiros, o que importa é o que foi plantado e colhido. Isso ficará na memória e seremos lembrados com sorrisos e amor... Pensar assim foi o que me fez aceitar que, assim como eu, todos os seres viventes aqui na terra, estamos em um trem chamado vida, onde cada passageiro tem em sua passagem, o horário e a data da chegada em sua estação de desembarque.
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Chegamos ao hospital, a fachada branca e impessoal se erguendo contra o céu agora tingido de roxo e laranja, as luzes já acesas nas janelas. O ar frio da noite que chega nos envolve como uma presença física quando saímos do carro, fazendo-me tremer levemente. Enquanto ele me ajuda a descer, apoiando meu peso como tem feito metaforicamente durante toda nossa vida juntos, percebo que cada passo é mais difícil do que o anterior, como se meu corpo soubesse que estamos nos aproximando do fim da jornada e tentasse prolongar cada momento.
Um enfermeiro nos espera na entrada com uma cadeira de rodas. Hesito por um segundo - sempre odiei parecer frágil - mas a exaustão vence o orgulho e me aproximo, sentando-me nela com um suspiro de alívio que não consigo esconder. Sou levada para dentro, meu marido caminhando ao meu lado, sua mão ocasionalmente tocando meu ombro como para se certificar de que ainda estou ali.
As luzes brancas dos corredores parecem ainda mais brilhantes hoje, quase ofuscantes, refletindo no piso de linóleo recém-encerrado. O cheiro característico de hospital - uma mistura de desinfetante, medicamentos e algo indefinível que sempre associei ao sofrimento - invade minhas narinas, fazendo-me sentir instantaneamente mais doente.
Mas continuo, deixando-me levar pelos corredores familiares que levam ao setor da cardiologia. Porque, por mais difícil que seja, cada passo também é um ato de amor. Uma escolha consciente de proteger minha família do que está por vir, de lhes dar alguma paz, mesmo que signifique abrir mão da minha.
E, no fundo, sei que é isso que me define. Não é a doença que corrói meu corpo, célula por célula, não é a fragilidade que agora me impede de caminhar sem ajuda. Mas o amor que dei, que recebi e o amor que deixo para trás, como sementes plantadas em solo fértil, que continuarão a crescer e florescer muito depois que eu me for.
Quando entramos no quarto, vejo que há flores frescas no pequeno vaso sobre a mesa - margaridas amarelas, minhas favoritas. Um pequeno gesto de meu marido que faz meu coração transbordar. As cortinas estão abertas, revelando o céu noturno agora salpicado de estrelas. Vejo uma em particular, brilhando mais intensamente que as outras, e sorrio para mim mesma.
Talvez um dia, Mally olhará para cima e verá essa mesma estrela. E talvez, de alguma forma, nos conectaremos novamente, através do tempo e do espaço, na luz eterna que une todos nós... O amor e as lembranças que nunca sumirão.