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Com a chegada de março, Shoildon fervilhava com uma notícia bombástica após a outra.
Tudo começou com a informação de que Isaac Bennett - o primogênito da família mais rica e influente da cidade - havia sofrido um terrível acidente automobilístico que o deixava paralisado da cintura para baixo.
Não levou muito tempo para que outra notícia bombástica se espalhasse - a prestigiosa família Bennett havia decidido se unir à recém-ascendente família Willis através do casamento.
A maior comoção resultou do casal em si - o noivo, ninguém menos que o agora incapacitado Isaac, e a noiva, a filha mais velha da família Willis, uma jovem que havia sido criada num afastado vilarejo na zona rural, longe do refinamento da cidade.
A quilômetros de distância do horizonte cintilante de Shoildon, Verena Willis, o nome que agora circulava na boca de todos, permanecia em Trisas, o pequeno vilarejo onde sempre vivera.
Ela estava sentada na modesta sala de estar quando o silêncio foi subitamente quebrado pela notificação de uma mensagem recebida no celular.
Um olhar de relance para a tela mostrou a mensagem da sua assistente. "Tenho um paciente com um caso extremamente raro, Evelyn. Já faz seis meses que ele está te esperando. Quando pode vir para dar uma olhada?"
A tela voltou a escurecer quando Verena pressionou o botão de desligar, seus dedos delicados pairando sobre o dispositivo. Nesse momento, uma profunda tristeza cintilou nos seus olhos claros.
Pelo mundo afora, as pessoas a conheciam como Evelyn Rowe - a milagrosa curandeira - mas para ela, a fama não significava nada quando não tinha sido capaz de salvar justamente a pessoa que mais amava neste mundo. Sua amada avó havia partido bem no momento em que ela pegou o bisturi, incapaz de esperar mais.
O som das vozes abafadas e tensas de um casal soou atrás dela, a discussão acalorada entre ambos vazando pelas paredes finas da casa.
"Onde está sua sensibilidade, Laura? Minha mãe mal foi enterrada e você já está falando em partir!"
"A empresa está atolada em trabalho acumulado, Alec, e a festa de dezoito anos da Kaia está se aproximando. Então, me diga o que é mais importante - trabalho acumulado e uma grande celebração familiar, ou uma pessoa morta? Além do mais, precisamos que Verena volte imediatamente para a cidade para aprender boas maneiras. Imagine o quão desastroso será se ela entrar para a família Bennett agindo como uma caipira do interior. Será do nome Willis que todos irão zombar!"
"Para começo de conversa, pare de chamar Verena de caipira. Ela é sua filha!"
"Sim, acha que eu me daria ao trabalho de vir buscá-la se ela não fosse minha filha?"
De onde estava, Verena abafou uma risadinha enquanto a discussão continuava no outro cômodo.
As duas pessoas discutindo no quarto não eram estranhas para ela, mas seus próprios pais, Alec Willis e Laura Willis.
Um dia, eles tinham sido simples empregados, mas depois de galgarem seu caminho centímetro por centímetro, o sucesso finalmente veio.
Naqueles primeiros anos permeados de dificuldades, sem tempo para se dedicarem à criação da filha, eles a deixavam sob os cuidados da avó, Shawna Willis, quando ela tinha apenas um mês de vida.
A despeito das suas agendas atribuladas, os pais de Verena ainda conseguiam pensar nela de vez em quando, enviando notícias ou algum símbolo de afeto quando podiam.
A mudança nas prioridades do casal se iniciou no momento em que seus negócios decolaram e eles montaram sua própria empresa. Quando tinha sete anos, Verena ganhou uma irmã mais nova, Kaia Willis, e então, todo o interesse dos seus pais por ela começou a diminuir. Da mesma forma, à medida que a fortuna da família Willis aumentava, eles iam se inserindo sem esforço nos círculos da alta sociedade.
Laura ligava de vez em quando, mas o assunto das suas conversas nunca era a educação ou a saúde da filha mais velha. Em vez disso, ela falava sobre Kaia, a filha caçula, a quem chamava de amuleto da sorte da família, como se sua única missão como mãe fosse se gabar da criança que supostamente lhes trouxera prosperidade.
Quando Kaia completou três anos, seus pais voltaram a Trisas para uma visita.
Nessa ocasião, Alec comentou sobre levar a filha mais velha e Shawna para viverem em Shoildon, mas a rigidez no sorriso de Laura quando ele disse isso não passou despercebida por Verena. Mais tarde, o que quer que a esposa tivesse sussurrado para Alec foi o bastante para fazê-lo abandonar a ideia por completo.
Não muito tempo depois de eles regressarem a Shoildon, Laura voltou a engravidar e deu à luz um filho. A partir de então, toda a atenção do casal passou a ser dirigida exclusivamente para Kaia e o menino. E embora o dinheiro chegasse regularmente para Verena e sua avó, seus pais permaneciam distantes por quinze longos anos.
De fato, se não fosse pela morte de Shawna, Verena tinha certeza de que eles teriam continuado a ignorá-las completamente.
...
Somente depois que os ritos funerários foram concluídos, Verena concordou em viajar para Shoildon com eles.
Em meio a tudo isso, por mais que seus pais falassem calorosamente, como se estivessem ansiosos para tê-la por perto, ela sabia muito bem o que estava em jogo. Afinal, bastava uma rápida busca online para acessar as notícias de Shoildon.
Quando eles estavam chegando à sua residência em Shoildon, Laura finalmente quebrou o silêncio. "Não se esqueça, Verena - se alguém te perguntar sobre sua educação, diga que se formou na Faculdade de Medicina de Acorith com um mestrado e que está prestes a iniciar seu estágio..."
De fato, Laura nunca enxergou a filha como algo mais do que uma médica de clínica de interior. Afinal, Trisas não passava de uma cidadezinha montanhosa isolada demais aos seus olhos.
Como Verena nunca havia frequentado a faculdade - ou assim Laura acreditava - ela presumiu que a filha apenas havia aprendido algumas habilidades simples com os médicos locais.
Os poucos comentários que ela ouvira de Shawna sobre Verena estar estudando medicina foram suficientes para que tirasse essa conclusão.
O programa de medicina de Acorith era considerado o primeiro do país, e Laura não tinha qualquer escrúpulo em usar o nome da instituição para melhorar a própria imagem, apavorada com a mera possibilidade de alguém descobrir que a prática da sua filha mais velha vinha de um vilarejo onde Judas perdeu as botas. Para ela, isso seria profundamente humilhante.
Verena zombou intimamente da vaidade de Laura, ciente de que ela nunca havia de fato se esforçado em compreendê-la.
Ironicamente, mal sabia a mãe que a mesma Faculdade de Medicina de Acorith, tão admirada por ela, havia convidado a própria Verena para dar uma palestra para seus alunos no último mês.
Em todos os anos de vida de Verena, sua mãe jamais perguntou sobre sua educação. Certa vez, ela adoeceu e acabou perdendo as provas, o que resultou em notas baixas. Assim, quando Laura soube mais tarde do seu baixo desempenho nesse período, concluiu simplesmente que a filha não era apta para ingressar no ensino superior.
Até mesmo quando a entusiasmada Shawna tentou contar para eles a boa notícia sobre a admissão de Verena numa universidade de primeira linha, ambos os pais simplesmente ignoraram, alegando terem assuntos importantes de trabalho antes de encerrarem abruptamente a ligação.
A partir daquela vez, tanto Shawna quanto Verena pararam de tentar compartilhar algo significativo com eles sobre a vida da filha.
Olhando nos olhos de Laura, Verena disse calmamente: "Mas nunca estudei na Faculdade de Medicina de Acorith."
A franqueza da sua resposta fez com que os lábios de Laura se comprimissem numa linha fina. Para ela, a recusa de Verena em colaborar não era um sinal de força - era pura teimosia.
Claro que ela sabia que Verena nunca havia estudado lá e justamente por isso tinha pedido para que mentisse. Comparada a Kaia, que podia não não se igualar a ela em beleza, mas tinha conquistas para exibir, Verena não passava de um motivo de constrangimento.
Antes que Laura pudesse repreendê-la severamente, a crise de tosse de Alec no banco dianteiro a forçou a engolir as palavras.
Ela então deixou o assunto de lado e mudou o rumo da conversa, usando um tom suave e permeado por uma evidente indulgência. "De qualquer forma, sua irmã está habituada a ser mimada. Então, tente não provocá-la, está bem? Ela se aborrece com muita facilidade e se recusa a comer quando está de mau humor."
Evidentemente, Verena não pôde deixar de achar isso tudo um tanto ridículo. Com quase dezoito anos, Kaia ainda se comportava como uma criança mimada, sendo a própria imagem do mimo.
A conversa terminou quando o carro estacionou diante de uma luxuosa mansão, que parecia ostentar deliberadamente a riqueza dos seus donos.
Verena foi a primeira a descer do carro, absorvendo a grandiosidade da fachada.
Da porta principal, uma garota usando uma linda camiseta e uma saia curta emergiu correndo na direção deles - era Kaia, em toda a sua ansiedade juvenil.
"Papai, mamãe, finalmente vocês voltaram!", ela exclamou com a voz vívida e um tanto afoita.
No entanto, o brilho no seu olhar diminuiu quando ela avistou Verena. Seus olhos então pairaram na irmã mais velha, medindo-a de cima a baixo.
Usando um moletom creme simples e uma calça amarelo-pálido, combinados com tênis brancos e impecavelmente limpos, Verena parecia bastante comum à primeira vista. Apesar disso, seus traços delicados e a pele impecável, aliados à sua aura calma e distante, conferiam a ela uma beleza que não podia ser ignorada. De fato, nada nela denunciava os anos passados numa cidadezinha remota nas montanhas.
Kaia, por sua vez, sabia exatamente quem estava à sua frente - sua irmã de sangue - mas as duas nunca tinham compartilhado um lar.
A vida em Shoildon havia feito de Kaia a princesinha intocável e mimada da família Willis, a joia aos olhos dos seus pais. Assim, o reaparecimento súbito de uma irmã mais velha provocou nela um sutil e desconfortável aperto no peito.
"Ah, Kaia, tenha dó. Como pode vir aqui fora vestindo tão pouca roupa? Não está congelando?"
Olhando com desaprovação o tecido fino das roupas de Kaia, Laura rapidamente tirou o próprio casaco e o colocou nos ombros dela.
Com uma risadinha, Kaia abraçou a mãe. "Ha-ha, nem está fazendo frio, mamãe."
Essa era uma cena calorosa o bastante para derreter qualquer corrente de ar frio - mas Verena nunca tinha feito parte de tais momentos.
Rindo juntas, Kaia e Laura seguiram para dentro de casa, deixando Verena ali, como se sua chegada já tivesse sido esquecida.
Enquanto caminhava, Kaia olhou para Verena por um breve momento, lançando um olhar demorado e indecifrável por cima do ombro.
Quando Alec viu a filha caçula, seu olhar suavizou e ele se virou para se aproximar de Verena. "Esta é Kaia, sua irmã. Ela tem se saído muito bem nos estudos. Conseguiu tirar notas altas no vestibular e já garantiu uma vaga na Faculdade de Medicina de Acorith..."