Capítulo 3 Reencontros e feridas abertas

Ponto de vista de Lyric:

"Peço-lhe desculpas, mas fui designado para buscar uma pessoa específica. Não posso oferecer transporte sem um motivo justificado", declarou Rufus, um dos guardas mais antigos e leais ao meu pai, desviando o olhar para além do meu ombro, como se procurasse, ao longe, a figura esperada no saguão do aeroporto.

"Eu sei. Você veio buscar Lyric Harper, não é mesmo? Pois sou eu, Rufus."

Seus olhos se estreitaram, tomados por uma desconfiança cautelosa: "Você ainda não esclareceu de que forma descobriu meu nome. E... como é possível que seja Lyric? Isso não faz sentido. Lyric é..."

"Desprovida de encantos?", concluí por ele, com um sorriso que oscilava entre a ironia e a provocação silenciosa.

Ele franziu o cenho, negando com um leve movimento de cabeça.

Rufus nunca teve coragem de me chamar de feia, nem mesmo nos momentos mais impiedosos da infância. Dentre poucos, ele era um dos raros que demonstravam alguma consideração por meus sentimentos, e mesmo diante de uma aparência considerada estranha por tantos, jamais ousou verbalizar qualquer julgamento cruel.

Soltei uma risada suave, como quem reencontra uma memória adormecida. "Talvez facilite recordar que sua sopa favorita era de abóbora-manteiga, e que você e a jovem Lyric costumavam passar horas jogando Escadas e Cobras."

O brilho do reconhecimento surgiu em seus olhos, e seus lábios se entreabriram num espanto quase infantil.

"Que Seraphis nos abençoe! Lyric... é realmente você!"

Ele abriu os braços sem hesitar, e eu me lancei no seu abraço firme e acolhedor, sem a menor resistência.

Durante todos esses anos, nossos encontros foram escassos, mas Rufus tornava cada momento memorável. Ele representava, para mim, a figura paterna que tantas vezes me faltou.

"Como isso é possível?", indagou ele, depois de se certificar de que eu estava em segurança. "Seu rosto... pelos deuses! Você está deslumbrante! Apenas cinco anos se passaram e... é inacreditável."

"É uma narrativa longa, Rufus. Por ora, digamos apenas que o destino - esse artesão caprichoso - decidiu, enfim, sorrir para mim."

"Oh, Lyric! Você não faz ideia da felicidade que me invade ao vê-la novamente. Aposto que seu pai deve estar radiante por saber que você não está mais... hum... digamos, desprovida de graça."

Soltei uma risada diante da tentativa dele de evitar a palavra proibida.

Em relação ao meu pai... internamente, rolei os olhos. Era lamentável que meu retorno, após cinco anos, tivesse ocorrido por imposição dele. Afinal, levava uma vida perfeita em Draconis.

"Aqui, permita-me carregar sua mala até o veículo", exclamou Rufus, tomando a bagagem com naturalidade.

"Faça isso, e nos vemos lá fora. Ainda tenho que pegar mais uma bolsa. Mas não se preocupe, será rápido."

No entanto, mal havia me afastado por três passos, Rufus me chamou de volta: "Você derrubou algo."

Voltei-me de imediato e segui seu olhar para o chão, onde uma folha de ultrassom, levemente amassada e coberta por uma fina névoa de poeira, tremulava junto à brisa. Meu coração disparou no mesmo instante, e um nó apertado se formou em minha garganta enquanto eu me abaixava para apanhá-la.

A expressão de Rufus denunciava a surpresa. Era evidente que ele havia visto a imagem e se questionava o motivo de um exame como esse estar no bolso de trás da minha calça.

Oh, Lyric, você deveria ter sido mais cautelosa...

"Isso não é meu", murmurei, pigarreando em seguida em uma tentativa de soar convincente. Afinal, quem guardaria no bolso uma imagem tão íntima - a de uma vida ainda em gestação?

Por fim, guardei o papel rapidamente e me apressei em sair dali antes que ele fizesse mais perguntas.

...

Com os braços cruzados, aguardei na área de retirada de bagagens. A mala extra deveria surgir a qualquer momento.

O tempo ocioso fez minha mente retornar ao verdadeiro motivo da minha volta. Meu pai havia exigido meu retorno por duas razões, e a primeira era encerrar, de forma definitiva, qualquer vínculo restante com Roderick.

Em nosso mundo, quando dois lobos selavam sua união como companheiros, atavam uma fita em sinal do vínculo e a depositavam em um templo. Para dissolver essa união, era necessário realizar dois ritos: se declarar oficialmente ex-companheiros e, depois, cortar juntos a fita.

Desde o dia em que Roderick me declarou ex-companheira, nunca mais cruzamos caminhos. As circunstâncias e o orgulho mútuo nos afastaram por completo.

Agora, ele parecia ansioso para concluir o último ritual. Pelo que eu sabia, ele já escolhera uma nova companheira, mas não poderia tomá-la como tal, porque ainda estava, de alguma forma, ligado a mim.

Eu, por minha vez, mal podia esperar para colocar um ponto final nessa história. Ele representava um capítulo encerrado, uma lembrança que não me definia mais, e essa fita era a última corrente que nos unia.

"Com licença, poderia me conceder um instante da sua atenção?", uma voz masculina ecoou atrás de mim.

Ao me virar, me deparei com um homem imponente, vestindo um terno preto impecável e usando óculos escuros. Não era necessário que alguém me informasse sua função: tratava-se claramente de um guarda.

"Em que posso ser útil?", indaguei, franzindo o cenho com leve desconfiança.

"Na verdade, não é exatamente comigo. O Alfa ali deseja ter uma conversa com a senhorita."

Segui o movimento de sua mão, que apontava em direção a um minibar, mas não consegui divisar o rosto do homem em questão, pois sua presença estava parcialmente oculta pelo balcão.

Precisei inspirar profundamente para conter a irritação que ameaçava aflorar. Nos últimos tempos, parecia que não havia um único dia em que eu não atraísse olhares insistentes de algum desconhecido.

"Estou com pressa agora. Transmita a ele minhas desculpas", declarei, minha voz firme como uma porta que se fecha com decisão.

A mandíbula do guarda se contraiu sutilmente, revelando um desconforto velado.

"Não é o tipo de pessoa que se pode simplesmente ignorar", advertiu ele, com o tom pesado de quem está habituado à autoridade de um Alfa cujo comando raramente é desafiado.

Ainda assim, não cedi um centímetro, pois meu desinteresse era absoluto, como se uma barreira invisível se erguesse entre nós.

"Sinto muito de verdade", respondi, desviando deliberadamente o olhar, na esperança de encerrar ali o assunto.

Embora eu soubesse que recusar um convite direto de um Alfa era considerado um gesto de insubordinação e poderia custar caro, não existia poder algum neste mundo capaz de me fazer desejar essa conversa.

"É o Alfa Roderick, da Matilha Nightshade", acrescentou o guarda, alheio ao fato de que acabara de evocar um nome que ainda pulsava como uma ferida aberta em meu peito.

Meus olhos se voltaram para ele, depois para o bar, onde, aos poucos, a silhueta de Roderick emergia, invadindo meu campo de visão - meu antigo companheiro, o homem com quem eu viera formalizar o rompimento do último elo que ainda nos ligava. Isso não podia estar acontecendo!

Um peso sufocante comprimiu meu peito, e precisei reunir todas as minhas forças para conter o turbilhão de lembranças que ameaçava transbordar.

"Esse fato apenas reforça meu desejo de não vê-lo", murmurei, quase em um sussurro para mim mesma.

"Falou alguma coisa?"

"Afirmei que não tenho intenção de encontrá-lo", respondi com firmeza, sentindo as unhas cravarem-se nas palmas, como garras tentando resistir ao próprio destino.

O guarda me lançou um olhar de censura antes de se afastar, e um suspiro trêmulo escapou involuntariamente dos meus lábios.

Onde estava minha mala?

Procurei por um atendente do aeroporto, que me assegurou que a bagagem seria entregue em instantes.

Mas o tempo se mostrou meu adversário: antes que pudesse me afastar, a figura de Roderick surgiu - e o ar ao meu redor se tornou espesso, cada passo dele trazendo de volta o passado que eu desejava, desesperadamente, deixar para trás.

            
            

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