A Vingança da Minha Alma
img img A Vingança da Minha Alma img Capítulo 5 O Renascimento
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Capítulo 6 O Recomeço img
Capítulo 7 As Máscaras da Casa img
Capítulo 8 O Café dos Lobos img
Capítulo 9 As Primeiras Fendas img
Capítulo 10 O Filho do Motorista img
Capítulo 11 O Peso do Cuidado img
Capítulo 12 Fantasmas do Passado img
Capítulo 13 O Crepúsculo entre nós img
Capítulo 14 A Tormenta Perfeita img
Capítulo 15 A Festa do Homem Errado img
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Capítulo 5 O Renascimento

O som das taças brindando foi a primeira coisa que ela ouviu.

Depois, o piano.

A melodia suave, conhecida, entrando pelos poros como uma lembrança impossível.

O ar cheirava a flores caras e vinho tinto o mesmo aroma que um dia embalou sua morte.

Amara Bastos abriu os olhos.

O teto dourado, o brilho dos lustres, as vozes, tudo estava ali igual, perfeito, assustador.

Por um segundo, acreditou estar sonhando.

Mas o sonho não fazia o coração bater tão forte.

A respiração veio em soluços curtos, o corpo pesado, a mente confusa.

Ela se sentou, olhando ao redor, e o espanto se transformou em terror.

O jantar.

O mesmo restaurante elegante, as mesas cobertas por arranjos brancos, os convidados sorrindo.

E ali, ao lado, Clara Salvatto viva, impecável, radiante.

O mesmo riso doce que, dois anos depois, ecoaria sobre o corpo dela caída no chão.

Amara sentiu o estômago revirar.

"Não pode ser..."

- Amara? Clara perguntou, inclinando-se preocupada. - Está tudo bem?

O som da voz dela era uma faca antiga reabrindo o mesmo corte.

Amara forçou um sorriso, incapaz de esconder o tremor nos dedos.

- Só... um pouco tonta.

Antes que Clara respondesse, o tilintar de uma colher contra o cristal chamou a atenção de todos.

As conversas cessaram, e ele se levantou.

Adriano Monteverde.

A gravata azul, o paletó sob medida, o sorriso ensaiado.

O homem que a matou e que agora voltava a existir, intacto.

O chão pareceu sumir sob seus pés.

Ela não ouvia mais o piano, nem os convidados, apenas a voz dele.

- Amara, Começou Adriano, com o olhar emocionado. - Desde o momento em que te conheci, soube que era com você que eu queria dividir a vida.

O coração dela se apertou, não de amor, mas de raiva contida.

As mesmas palavras.

O mesmo timbre.

Tudo igual.

Mas agora ela sabia o que se escondia por trás de cada gesto perfeito.

Ele abriu uma pequena caixa de veludo.

O anel reluziu sob a luz dourada o mesmo que ela usou no altar.

A mesma pedra que refletiu o sangue no mármore.

- Amara Bastos, Continuou ele, sorrindo - quer se casar comigo?

O salão prendeu o ar.

Na outra vida, ela chorou de emoção.

Agora, a vontade era de rir.

Ela olhou ao redor: todos aguardavam.

Clara a observava com olhos marejados, tocando o colar no pescoço como sempre fazia quando fingia inocência.

Adriano ajoelhado, a imagem perfeita do homem ideal.

E ela... o papel de mulher perfeita.

Amara respirou fundo.

"Eu sei o final dessa história."

Estendeu a mão.

A voz saiu suave, doce, igual à da mulher que um dia morreu por ele.

- Sim, Adriano. Eu aceito.

Aplausos explodiram.

Clara a abraçou.

- Eu estou tão feliz por você! Disse, com lágrimas falsas.

Amara respondeu com a serenidade de uma santa.

Por dentro, algo começava a nascer algo quente, escuro, incontrolável.

Ela ergueu a taça quando todos brindaram.

O cristal tilintou, e o som soou idêntico ao da noite em que o amor a matou.

- Ao amor eterno, Disse Adriano, sorrindo.

- Ao amor eterno, Repetiu Amara, com a voz calma.

Mas no fundo, pensava:

"Ao amor que vai te enterrar."

A música começou.

Adriano estendeu a mão, e ela aceitou.

Dançaram sob os aplausos, o salão inteiro assistindo à imagem do casal perfeito.

Ela repousou a cabeça no ombro dele, o rosto sereno, os olhos fechados.

E então, num sussurro que só o destino ouviu, ela disse:

- Que a eternidade comece logo.

A festa já ia se dissolvendo em conversas leves quando Amara percebeu a presença que mais desejava.

Na mesa principal, estavam seus pais - os dois, sorrindo, inteiros.

A mãe, elegante num vestido cor-de-pérola, gesticulava enquanto ria de algo que o pai dissera.

Nada no rosto dela denunciava dor ou cansaço.

Os cabelos continuavam fortes, o brilho nos olhos igual ao de anos atrás.

Amara parou onde estava.

O tempo pareceu se partir em dois.

Amara sentiu um nó apertar o peito. Por detrás daquela alegria havia uma sombra que, outrora, a empurrou a acelerar decisões: os meses depois do noivado, as idas ao hospital, os rostos cansados dos médicos que não disfarçavam as piores possibilidades. Na linha que ela lembrava, a mãe tivera dores no peito, começaram os tratamentos, e alguém - num consultório frio - dissera palavras que soavam como sentença. Por isso o casamento fora apressado, por isso o "para sempre" saíra precipitado: ela correra para colocar o mundo direito no tempo que restava.

Mas ali, agora, a respiração da mãe era firme. O pai, com as bochechas rosadas e sem o cansaço que os anos tinham deixado no rosto, abria passo orgulhoso. Ele parecia, por um segundo, mais leve do que lembrava.

Amara sentou-se. As mãos tremiam, não pelo vestido, mas por algo que crescia como fogo sob a pele. Ela observava a mesa dos pais, gravada com as iniciais, a presença de amigos próximos, os olhos que a reconheciam e celebravam. Era o quadro que a decepcionara duas vezes - uma vez por amor, outra por morte - e que, naquele momento, mostrava-se intacto.

- Estou feliz por vocês, mamãe - disse Amara, e a voz dela quebrou por um segundo. Era uma verdade estranha: feliz por ver o rosto que temera perder.

A mãe segurou a mão dela com força, e a pressão foi ancestral, concreta.

- Eu sempre soube que você seria feliz, minha filha. Cuide-se. Não se apresse por medo. - Havia um cuidado naquelas palavras que feriu Amara com delicadeza.

Ela lembrava de ter apressado tudo. Lembrava do pânico que correra nas veias quando soubera que a saúde da mãe correra risco meses depois do noivado - o medo de perder mais do que herdara. No passado, esse medo justificara escolhas precipitadas: alianças assinadas, promessas feitas, uma confiança entregue de olhos fechados. Agora a cena se repetia, mas o tempo estava a seu favor.

Ela deixou escapar uma risada curta, amarga, que ninguém entendeu. Entre os convidados, a festa continuava - música, brindes, elogios. Mas dentro dela, um cálculo novo se desenhava, frio e meticuloso.

Amara observou o pai. Ele a olhava com a mesma devoção paternal, o mesmo orgulho. Havia quem dissesse que o semblante dele tinha ficado cansado nos últimos anos, o peso de uma empresa, de um nome. Ela lembrava das noites em que o pai voltara cedo, olhos fundos, dedos manchados de papel. Lembrava da vez em que dissera que talvez deviam repensar tudo - e de como Adriano, com sua lábia de jovem predestinado, parecera oferecer solução.

Agora ele estava ali, inteiro. A presença deles à mesa representava uma possibilidade que o outro tempo lhe negara. Era mais do que sorte; era uma segunda chance que ardia com exatidão.

As lágrimas vieram sem aviso. Amara curvou o rosto para a mão da mãe e deixou que a emoção limpasse o chão do passado. Não era só alívio: era o reconhecimento de que havia sido roubada uma vez, e que o mundo lhe entregara de volta algo precioso - o tempo.

- Eu... - disse, engolindo o nó no peito. - Eu prometo que cuidarei de vocês. Não vou arriscar nada.

A mãe apertou os olhos, e nos cantos das rugas havia alegria e surpresa.

- Cuide do seu coração também, filha. Não o sufoque em cuidados que não são seus.

A frase cortou e, ao mesmo tempo, abriu. Amara sorriu, um sorriso sem ilusão. Ela se ergueu com firmeza, o vestido caindo com majestade, e olhou a sala inteira. Havia ali promessas que se repetiam, votos que soavam como antigas sinas. Ela sentiu, pela primeira vez desde que abrira os olhos, o peso da escolha real.

- Vocês estão mesmo bem? Ela perguntou olhando para o pai.

Ele arqueou a sobrancelha, divertido.

- E por que não estaríamos? A família Bastos está em plena forma. - Beijou o topo da cabeça dela. - Agora trate de sorrir; é a noiva do ano.

"É," pensou, "a noiva e o prenúncio da ruína."

Ficaram conversando, e Amara se deu conta de detalhes que o tempo apagara:

a forma como o pai ajeitava os punhos da camisa quando queria disfarçar emoção,

o perfume leve da mãe, mistura de jasmim e talco,

o modo como ambos se olhavam, como se ainda fossem dois jovens apaixonados.

Ela os observava e sentia algo que quase doía: amor verdadeiro.

O tipo de amor que Adriano fingira sentir e Clara jamais entenderia.

- Então, gostou do anel? - a mãe perguntou, animada. - Seu pai disse que Adriano escolheu a pedra pessoalmente.

Amara girou o anel no dedo.

O brilho parecia zombar.

- É... perfeito. - Sorriu, a voz aveludada, treinada.

A mãe pegou sua mão e apertou.

- Filha, você está feliz?

O coração dela tropeçou.

Na primeira vida, essa pergunta também veio, e ela respondera com um sim inteiro, cego.

Agora, respondeu com a precisão de uma atriz:

- Muito, mamãe.

O pai riu.

- Ela está é nervosa. O amor deixa a gente assim.

Amara o encarou.

"Vocês me ensinaram o que é amor. E eles usaram isso contra mim."

A música voltou.

Um garçom ofereceu champanhe, e ela ergueu a taça apenas para manter o teatro.

Enquanto todos brindavam, o olhar de Amara vagueou entre os convidados, reconhecendo um por um - pessoas que, na outra vida, assistiram ao seu casamento e depois fingiram luto no velório.

Todos sorrindo, todos aplaudindo.

Ela respirou fundo.

O vestido pesava, o anel queimava, mas havia paz em saber o que vinha.

Não era mais uma vítima; era a única pessoa ali que sabia o fim da história.

Quando a festa começou a se dispersar, a mãe voltou a beijá-la nas bochechas.

- Vá descansar, meu amor. Amanhã começa uma nova etapa.

Amara segurou o rosto dela entre as mãos.

- Vocês são tudo que eu tenho.

O pai sorriu, sem entender o peso daquela frase.

- E sempre será assim.

Ela os observou se afastando de braços dados, e um arrepio subiu pela espinha.

Naquele instante, decidiu: protegeria os pais a qualquer custo - mas o resto do mundo pagaria caro.

Caminhou até o terraço.

A noite estava limpa, o vento trazendo o cheiro de chuva distante.

A cidade brilhava lá embaixo, indiferente, como se não soubesse o que ela planejava.

Olhou o anel uma última vez.

O diamante refletia as luzes da festa, tão perfeito, tão falso.

Fechou os olhos e deixou as palavras caírem baixas, quase um juramento.

- Vocês tentaram tirar de mim. A mão dela fechou-se num punho oculto sob o véu. - Nessa vida... Eu vou tirar tudo de vocês.

O eco ficou no vento.

E Amara, pela primeira vez desde que renasceu, sorriu de verdade não por alegria, mas por ter encontrado um motivo para viver.

                         

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