A Vingança da Minha Alma
img img A Vingança da Minha Alma img Capítulo 4 A sombra do que eu fui.
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Capítulo 6 O Recomeço img
Capítulo 7 As Máscaras da Casa img
Capítulo 8 O Café dos Lobos img
Capítulo 9 As Primeiras Fendas img
Capítulo 10 O Filho do Motorista img
Capítulo 11 O Peso do Cuidado img
Capítulo 12 Fantasmas do Passado img
Capítulo 13 O Crepúsculo entre nós img
Capítulo 14 A Tormenta Perfeita img
Capítulo 15 A Festa do Homem Errado img
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Capítulo 4 A sombra do que eu fui.

O vento ainda gritava o nome de Ezequiel.

A chuva lavava o sangue, mas não apagava o som do corpo dele se chocando contra o chão.

O mundo girava em torno do vermelho, e Amara sentia cada gota fria bater no rosto como agulhas.

Ela tentou levantar a mão.

Nada.

O corpo não respondia.

Apenas os olhos, pesados, insistiam em ficar abertos - como se a alma se recusasse a ir embora.

"Quando foi que parei de ver você?", pensou, sem saber se ainda estava viva ou se já falava com os mortos.

O ar mudou.

Tudo ficou branco.

Não o branco do hospital, nem o da paz - um branco que doía, cheio de ecos, onde o som do coração dela vinha de longe.

Então o tempo se desfez, e o passado começou a reaparecer como uma fita que alguém rebobinava com pressa.

Um pátio de escola, cheio de vozes.

O sol batendo forte.

Ela - pequena, de tranças e uniforme limpo - segurava um caderno contra o peito.

No canto, uma menina chorava, cercada por dois garotos zombando do cabelo e das roupas simples.

- Ei! - Amara gritou. - Deixem ela em paz!

Os garotos riram.

- Vai defender mendiga agora?

- Vai cuidar da sua vida! - Ela empurrou um deles, furiosa.

Os meninos se assustaram e fugiram.

A menina enxugou o rosto com o braço.

- Obrigada...

- Qual é o seu nome?

- Clara... Clara Salvatto.

Amara sorriu. - Eu sou Amara. Vem, vamos brincar.

Foi ali que tudo começou - o laço, a confiança, a mentira travestida de amizade.

A cena se dissolveu e voltou de novo, alguns meses depois: as duas rindo no pátio, de braços dados.

Ezequiel surgiu do outro lado, tímido, o cabelo desgrenhado, um sorriso bobo quando a viu.

- Trouxe uma coisa pra você, Amara. - Ele estendeu uma caixinha.

Ela abriu e encontrou uma correntinha fina com um pingente de lua.

- É linda, Zico.

- Fiz com meu pai. Ele soldou o metal, eu desenhei a lua.

- Obrigada.

Clara olhou aquilo com olhos frios.

- Você vai aceitar isso?

- Por que não?

- Porque ele é o filho do motorista, Amara. - O tom dela soou inocente, mas cada palavra era um veneno lento. - Se te virem usando isso, vão dizer que está misturando as coisas. Não pega bem.

A Amara menina hesitou.

Olhou o colar, depois olhou para os colegas ao redor.

Viu os risos disfarçados, os cochichos.

- Zico... - Ela devolveu o presente, sem coragem de encará-lo. - Não me dá mais essas coisas, tá?

- Por quê? - ele perguntou, confuso. - Eu só quis te dar algo bonito.

- Meu pai não ia gostar.

- Então diz que eu não existo, Amara. - Ele tentou sorrir, mas o brilho sumiu dos olhos. - Fica mais fácil.

A lembrança dele andando embora com o pingente ainda na mão cortou mais fundo do que o tiro.

A Amara adulta chorava, ali, invisível, assistindo à cena. - Eu era só uma criança... por que fui tão cruel? - sussurrou.

A resposta veio no silêncio.

As imagens saltaram de novo.

Agora, o corredor do colégio.

Clara cochichava ao seu ouvido.

- Sabe quem te olhou na quadra? Adriano Monteverde. Ele é o novo aluno.

- Quem?

- O bonito da terceira série do ensino médio. Dizem que o pai dele é dono de metade da cidade.

Clara riu, empurrando-a pra frente.

- Você devia falar com ele. É o tipo de garoto que combina com você.

E, como sempre, Amara acreditou.

O tempo avançou.

Ela o viu, anos depois, no baile da escola, dançando com Adriano.

Ezequiel estava encostado na parede, de terno barato, observando.

O olhar dele era sereno, resignado.

Clara se aproximou por trás, com um sorriso venenoso.

- Tá vendo? Ele nunca te olhou assim. - sussurrou. - Ezequiel é só um servo.

Amara fingiu não ouvir, mas o coração acreditou de novo.

A luz piscou, e a lembrança mudou.

Ela estava com dezoito.

A formatura.

O pai a abraçando, Adriano tirando fotos com ela.

E, no fundo, Ezequiel.

Sério, discreto, segurando um buquê de flores.

Esperava que ela terminasse para entregar.

Clara notou e sussurrou no ouvido de Amara:

- Se ele te der isso, todo mundo vai rir.

- Clara, ele é só um amigo.

- E os boatos? Quer virar piada?

Ezequiel se aproximou, hesitante.

- Parabéns, Amara.

- Obrigada. - Ela sorriu rápido, olhou pra Clara, e virou o rosto. - Pode deixar as flores com a recepcionista.

- Eu... fiz pra você.

- Então guarda pra outra. - A voz dela soou fria, quase sem querer, mas ele engoliu o golpe como quem já esperava.

Ele saiu sem dizer nada, e Clara riu baixinho.

- Você precisa parar de se misturar. Isso te diminui.

A Amara que observava agora apertou os punhos.

- Eu deixei ela me ensinar a ser cruel... - murmurou.

A voz ecoou pelo vazio.

O branco ao redor começou a tremer, como se o próprio espaço sentisse a culpa.

Novas cenas.

Ela com vinte e poucos anos, trabalhando na empresa do pai.

Ezequiel no mesmo corredor, agora de terno e crachá, cuidando da frota e do sistema de segurança.

Silêncio entre eles.

Apenas olhares rápidos, gestos educados.

Ela passava e ele se curvava em respeito.

Nunca mais o chamou de Zico.

Nunca mais o fez sorrir.

Num almoço de família, Clara comentou, com falsa leveza:

- É tão fofo ver ele ainda por aqui. Parece um cachorrinho fiel.

Amara riu por reflexo, mas o riso pesou como uma pedra no peito.

Ela olhou pra ele ao longe, servindo água, e viu - por um instante - que ainda havia luz nos olhos dele quando a via feliz.

E a dor veio.

Não da lembrança.

Da consciência.

Ela o tinha apagado, mas ele nunca a deixou de ver.

A luz do nada começou a oscilar, e Amara caiu de joelhos.

As lembranças eram tão reais que podia sentir o cheiro do perfume de Clara, o toque da mão de Ezequiel nas pequenas gentilezas.

A cada lembrança, a dor crescia.

O arrependimento, o desespero.

- Quando foi que tudo se perdeu? - ela chorava, olhando para o vazio. - Quando eu deixei de ser eu?

O vazio pulsava.

Não era mais o branco leve de antes, mas uma mistura de luz e sombra, como se as memórias de Amara estivessem se rasgando para voltar à tona.

Ela sentiu o corpo flutuar, o coração bater devagar, e o tempo recomeçar a contar.

As imagens voltaram, uma atrás da outra - rápidas, intensas, cortando como lâminas.

Ela, com vinte e dois anos.

Um jantar elegante, as taças tilintando, o salão dourado da casa dos Monteverde.

Adriano ao seu lado, Clara logo atrás, sempre perto demais.

- Você sabe, Amara - Clara dizia, sorrindo demais -, Adriano nasceu pra comandar. Você precisa confiar nas decisões dele.

Amara lembrava: confiou em tudo.

Nas promessas, nas palavras doces, no olhar seguro.

Ele dizia "meu amor", e ela ouvia "meu destino".

- Não gosto da ideia de misturar os negócios da minha família com os seus - ela disse naquela noite, incerta.

- Amor - Adriano segurou a mão dela, firme -, é assim que os impérios nascem. Unindo o que é forte.

Clara sorriu, com a taça erguida.

- E o amor é o melhor investimento que existe.

O riso ecoou, e agora, naquele limbo, soava como zombaria.

A Amara que assistia tudo mordeu o lábio.

Queria gritar pra si mesma: "Acorda, ele está te comprando!"

Mas a cena não ouvia.

Ela viu o tempo correr - festas, contratos, viagens, fotos de revistas.

Tudo parecia perfeito demais.

E, em cada evento, Clara estava lá, sempre à direita de Adriano, rindo das mesmas piadas, tocando o braço dele em gestos sutis.

- Vocês parecem irmãos - alguém disse certa vez.

Clara respondeu antes de Amara:

- Quase somos.

E Adriano não negou.

Outra lembrança.

O escritório de Amara, fim de tarde.

Ela olhava relatórios, enquanto Ezequiel aparecia à porta com um tablet nas mãos.

- Senhora Bastos, o carro está pronto. - O tom era respeitoso, neutro.

- Ezequiel... - ela o chamou, sem saber por quê. - Você acha que estou fazendo certo?

Ele hesitou.

- A senhora sempre faz o que acredita ser certo.

Amara desviou o olhar, sentindo um nó na garganta.

- Às vezes não sei mais o que acredito.

Ele deu um meio sorriso, discreto.

- Então é hora de lembrar quem você é.

Ela piscou e, quando levantou o rosto, ele já tinha ido embora.

E, na lembrança, ela agora chorava, porque entendeu que foi a última conversa sincera que tiveram antes do casamento.

A cena se dissolveu e reapareceu no quarto dela, um dia antes da cerimônia.

Clara a ajudava a escolher o véu, os olhos brilhando.

- Você está linda.

- Nervosa. - Amara riu, torcendo as mãos. - É um passo grande, Clara.

- Você está se casando com o homem perfeito. - A amiga colocou as mãos nos ombros dela. - E vai ter tudo que sempre sonhou.

A Amara que observava agora sentiu o estômago revirar.

"Ela me vestia pra morte", pensou, e o vento pareceu concordar.

Mais lembranças.

Ela assinando documentos sem ler direito.

Clara entregando papéis a Adriano com um sorriso cúmplice.

O pai de Amara, confiando cegamente.

O dinheiro sendo transferido.

A empresa mudando de nome.

Cada ato era um fio puxado do destino, e ela, como marionete, apenas sorria.

O amor a cegava.

A lealdade a prendia.

E em algum canto, Ezequiel sempre estava.

Calado.

Apenas observando.

Ajudando sem ser notado - segurando portas, trazendo café, resolvendo problemas que ela nem percebia que existiam.

- Sabe o que é engraçado? - Clara dizia, em uma das lembranças. - O Zico ainda te olha como se fosse a mesma menina do colégio.

- Ele sempre foi leal. - Amara respondeu.

- Leal, ou obcecado? - Clara riu. - Cuidado, amiga. Às vezes, a devoção dos pobres é só inveja disfarçada.

Amara, boba, acreditou de novo.

Riu junto.

E com esse riso, perdeu o último elo com quem realmente a amava.

O branco à volta dela começou a rachar - como vidro trincando.

As cenas se embaralhavam, repetindo fragmentos:

Ezequiel segurando o pingente de lua.

Ela o ignorando.

Ele limpando o carro com as mãos feridas.

Ela subindo as escadas de braço dado com Adriano.

E Clara, sempre, sorrindo nas sombras.

Amara gritou.

O som ecoou no vazio, distorcido, ferido.

- Basta! - A voz dela tremeu. - Eu não quero mais ver!

Mas as imagens não paravam.

O terraço, o sangue, o salto.

De novo.

Ezequiel olhando pra ela antes de cair, a chuva cobrindo o corpo.

Ela correu - ou tentou correr - até o parapeito invisível daquele espaço entre mundos.

- Zico! - gritou. - Me ouve, por favor!

Nada.

Só o som do vento levando o nome dele.

Amara caiu de joelhos.

As lágrimas caíram em silêncio, misturando-se ao nada.

Ela sussurrou, cansada, quebrada:

- Se eu pudesse voltar atrás... voltaria só por você.

            
            

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