O ar mudou.
Tudo ficou branco.
Não o branco do hospital, nem o da paz - um branco que doía, cheio de ecos, onde o som do coração dela vinha de longe.
Então o tempo se desfez, e o passado começou a reaparecer como uma fita que alguém rebobinava com pressa.
Um pátio de escola, cheio de vozes.
O sol batendo forte.
Ela - pequena, de tranças e uniforme limpo - segurava um caderno contra o peito.
No canto, uma menina chorava, cercada por dois garotos zombando do cabelo e das roupas simples.
- Ei! - Amara gritou. - Deixem ela em paz!
Os garotos riram.
- Vai defender mendiga agora?
- Vai cuidar da sua vida! - Ela empurrou um deles, furiosa.
Os meninos se assustaram e fugiram.
A menina enxugou o rosto com o braço.
- Obrigada...
- Qual é o seu nome?
- Clara... Clara Salvatto.
Amara sorriu. - Eu sou Amara. Vem, vamos brincar.
Foi ali que tudo começou - o laço, a confiança, a mentira travestida de amizade.
A cena se dissolveu e voltou de novo, alguns meses depois: as duas rindo no pátio, de braços dados.
Ezequiel surgiu do outro lado, tímido, o cabelo desgrenhado, um sorriso bobo quando a viu.
- Trouxe uma coisa pra você, Amara. - Ele estendeu uma caixinha.
Ela abriu e encontrou uma correntinha fina com um pingente de lua.
- É linda, Zico.
- Fiz com meu pai. Ele soldou o metal, eu desenhei a lua.
- Obrigada.
Clara olhou aquilo com olhos frios.
- Você vai aceitar isso?
- Por que não?
- Porque ele é o filho do motorista, Amara. - O tom dela soou inocente, mas cada palavra era um veneno lento. - Se te virem usando isso, vão dizer que está misturando as coisas. Não pega bem.
A Amara menina hesitou.
Olhou o colar, depois olhou para os colegas ao redor.
Viu os risos disfarçados, os cochichos.
- Zico... - Ela devolveu o presente, sem coragem de encará-lo. - Não me dá mais essas coisas, tá?
- Por quê? - ele perguntou, confuso. - Eu só quis te dar algo bonito.
- Meu pai não ia gostar.
- Então diz que eu não existo, Amara. - Ele tentou sorrir, mas o brilho sumiu dos olhos. - Fica mais fácil.
A lembrança dele andando embora com o pingente ainda na mão cortou mais fundo do que o tiro.
A Amara adulta chorava, ali, invisível, assistindo à cena. - Eu era só uma criança... por que fui tão cruel? - sussurrou.
A resposta veio no silêncio.
As imagens saltaram de novo.
Agora, o corredor do colégio.
Clara cochichava ao seu ouvido.
- Sabe quem te olhou na quadra? Adriano Monteverde. Ele é o novo aluno.
- Quem?
- O bonito da terceira série do ensino médio. Dizem que o pai dele é dono de metade da cidade.
Clara riu, empurrando-a pra frente.
- Você devia falar com ele. É o tipo de garoto que combina com você.
E, como sempre, Amara acreditou.
O tempo avançou.
Ela o viu, anos depois, no baile da escola, dançando com Adriano.
Ezequiel estava encostado na parede, de terno barato, observando.
O olhar dele era sereno, resignado.
Clara se aproximou por trás, com um sorriso venenoso.
- Tá vendo? Ele nunca te olhou assim. - sussurrou. - Ezequiel é só um servo.
Amara fingiu não ouvir, mas o coração acreditou de novo.
A luz piscou, e a lembrança mudou.
Ela estava com dezoito.
A formatura.
O pai a abraçando, Adriano tirando fotos com ela.
E, no fundo, Ezequiel.
Sério, discreto, segurando um buquê de flores.
Esperava que ela terminasse para entregar.
Clara notou e sussurrou no ouvido de Amara:
- Se ele te der isso, todo mundo vai rir.
- Clara, ele é só um amigo.
- E os boatos? Quer virar piada?
Ezequiel se aproximou, hesitante.
- Parabéns, Amara.
- Obrigada. - Ela sorriu rápido, olhou pra Clara, e virou o rosto. - Pode deixar as flores com a recepcionista.
- Eu... fiz pra você.
- Então guarda pra outra. - A voz dela soou fria, quase sem querer, mas ele engoliu o golpe como quem já esperava.
Ele saiu sem dizer nada, e Clara riu baixinho.
- Você precisa parar de se misturar. Isso te diminui.
A Amara que observava agora apertou os punhos.
- Eu deixei ela me ensinar a ser cruel... - murmurou.
A voz ecoou pelo vazio.
O branco ao redor começou a tremer, como se o próprio espaço sentisse a culpa.
Novas cenas.
Ela com vinte e poucos anos, trabalhando na empresa do pai.
Ezequiel no mesmo corredor, agora de terno e crachá, cuidando da frota e do sistema de segurança.
Silêncio entre eles.
Apenas olhares rápidos, gestos educados.
Ela passava e ele se curvava em respeito.
Nunca mais o chamou de Zico.
Nunca mais o fez sorrir.
Num almoço de família, Clara comentou, com falsa leveza:
- É tão fofo ver ele ainda por aqui. Parece um cachorrinho fiel.
Amara riu por reflexo, mas o riso pesou como uma pedra no peito.
Ela olhou pra ele ao longe, servindo água, e viu - por um instante - que ainda havia luz nos olhos dele quando a via feliz.
E a dor veio.
Não da lembrança.
Da consciência.
Ela o tinha apagado, mas ele nunca a deixou de ver.
A luz do nada começou a oscilar, e Amara caiu de joelhos.
As lembranças eram tão reais que podia sentir o cheiro do perfume de Clara, o toque da mão de Ezequiel nas pequenas gentilezas.
A cada lembrança, a dor crescia.
O arrependimento, o desespero.
- Quando foi que tudo se perdeu? - ela chorava, olhando para o vazio. - Quando eu deixei de ser eu?
O vazio pulsava.
Não era mais o branco leve de antes, mas uma mistura de luz e sombra, como se as memórias de Amara estivessem se rasgando para voltar à tona.
Ela sentiu o corpo flutuar, o coração bater devagar, e o tempo recomeçar a contar.
As imagens voltaram, uma atrás da outra - rápidas, intensas, cortando como lâminas.
Ela, com vinte e dois anos.
Um jantar elegante, as taças tilintando, o salão dourado da casa dos Monteverde.
Adriano ao seu lado, Clara logo atrás, sempre perto demais.
- Você sabe, Amara - Clara dizia, sorrindo demais -, Adriano nasceu pra comandar. Você precisa confiar nas decisões dele.
Amara lembrava: confiou em tudo.
Nas promessas, nas palavras doces, no olhar seguro.
Ele dizia "meu amor", e ela ouvia "meu destino".
- Não gosto da ideia de misturar os negócios da minha família com os seus - ela disse naquela noite, incerta.
- Amor - Adriano segurou a mão dela, firme -, é assim que os impérios nascem. Unindo o que é forte.
Clara sorriu, com a taça erguida.
- E o amor é o melhor investimento que existe.
O riso ecoou, e agora, naquele limbo, soava como zombaria.
A Amara que assistia tudo mordeu o lábio.
Queria gritar pra si mesma: "Acorda, ele está te comprando!"
Mas a cena não ouvia.
Ela viu o tempo correr - festas, contratos, viagens, fotos de revistas.
Tudo parecia perfeito demais.
E, em cada evento, Clara estava lá, sempre à direita de Adriano, rindo das mesmas piadas, tocando o braço dele em gestos sutis.
- Vocês parecem irmãos - alguém disse certa vez.
Clara respondeu antes de Amara:
- Quase somos.
E Adriano não negou.
Outra lembrança.
O escritório de Amara, fim de tarde.
Ela olhava relatórios, enquanto Ezequiel aparecia à porta com um tablet nas mãos.
- Senhora Bastos, o carro está pronto. - O tom era respeitoso, neutro.
- Ezequiel... - ela o chamou, sem saber por quê. - Você acha que estou fazendo certo?
Ele hesitou.
- A senhora sempre faz o que acredita ser certo.
Amara desviou o olhar, sentindo um nó na garganta.
- Às vezes não sei mais o que acredito.
Ele deu um meio sorriso, discreto.
- Então é hora de lembrar quem você é.
Ela piscou e, quando levantou o rosto, ele já tinha ido embora.
E, na lembrança, ela agora chorava, porque entendeu que foi a última conversa sincera que tiveram antes do casamento.
A cena se dissolveu e reapareceu no quarto dela, um dia antes da cerimônia.
Clara a ajudava a escolher o véu, os olhos brilhando.
- Você está linda.
- Nervosa. - Amara riu, torcendo as mãos. - É um passo grande, Clara.
- Você está se casando com o homem perfeito. - A amiga colocou as mãos nos ombros dela. - E vai ter tudo que sempre sonhou.
A Amara que observava agora sentiu o estômago revirar.
"Ela me vestia pra morte", pensou, e o vento pareceu concordar.
Mais lembranças.
Ela assinando documentos sem ler direito.
Clara entregando papéis a Adriano com um sorriso cúmplice.
O pai de Amara, confiando cegamente.
O dinheiro sendo transferido.
A empresa mudando de nome.
Cada ato era um fio puxado do destino, e ela, como marionete, apenas sorria.
O amor a cegava.
A lealdade a prendia.
E em algum canto, Ezequiel sempre estava.
Calado.
Apenas observando.
Ajudando sem ser notado - segurando portas, trazendo café, resolvendo problemas que ela nem percebia que existiam.
- Sabe o que é engraçado? - Clara dizia, em uma das lembranças. - O Zico ainda te olha como se fosse a mesma menina do colégio.
- Ele sempre foi leal. - Amara respondeu.
- Leal, ou obcecado? - Clara riu. - Cuidado, amiga. Às vezes, a devoção dos pobres é só inveja disfarçada.
Amara, boba, acreditou de novo.
Riu junto.
E com esse riso, perdeu o último elo com quem realmente a amava.
O branco à volta dela começou a rachar - como vidro trincando.
As cenas se embaralhavam, repetindo fragmentos:
Ezequiel segurando o pingente de lua.
Ela o ignorando.
Ele limpando o carro com as mãos feridas.
Ela subindo as escadas de braço dado com Adriano.
E Clara, sempre, sorrindo nas sombras.
Amara gritou.
O som ecoou no vazio, distorcido, ferido.
- Basta! - A voz dela tremeu. - Eu não quero mais ver!
Mas as imagens não paravam.
O terraço, o sangue, o salto.
De novo.
Ezequiel olhando pra ela antes de cair, a chuva cobrindo o corpo.
Ela correu - ou tentou correr - até o parapeito invisível daquele espaço entre mundos.
- Zico! - gritou. - Me ouve, por favor!
Nada.
Só o som do vento levando o nome dele.
Amara caiu de joelhos.
As lágrimas caíram em silêncio, misturando-se ao nada.
Ela sussurrou, cansada, quebrada:
- Se eu pudesse voltar atrás... voltaria só por você.