"É hoje", pensei ansiosa olhando para o céu manchado de vermelho, laranja e amarelo do final do terceiro dia consecutivo sem nevar. Também era este o dia marcado como o décimo oitavo aniversário de Mia, o dia em que a verdade precisaria ser dita. Entrei, me banhei em águas frias e vesti o melhor conjunto de frio que Ryan dera para mim. Depois, desci para acender a lareira e preparar algo quente para recebê-lo.
A pequena mesa estava posta, tudo em seu devido lugar, mas ainda não me sentia preparada. Enquanto repassava mentalmente os arranjos, sons de passos fortes ecoaram na varanda e coloquei-me em posição, o coração acelerando enquanto a porta da frente rangia diante de sua abertura.
- Mia, qual é a do lobo de gelo? Como você.... - Ryan entrou dizendo essas coisas com um ar distraído, mas assim que seus olhos encontraram os meus, emudeceu. Um sorriso lindo iluminou seu rosto, e não pude deixar de notar o quão bem apresentável ele estava. Roupas elegantes de alto padrão, um relógio refinado em seu pulso esquerdo e, em sua mão direita, uma pequena caixa de bolo.
Mordisquei o lábio inferior timidamente, enquanto segurava a vontade de chorar.
- Sentiu minha falta? - perguntou colocando a caixa sobre a mesa posta e aproximando-se de mim.
- Sim, muita - sussurrei. Um sorriso sedutor brotou de seus lábios, enquanto suas mãos repousavam em minha cintura.
- Até guardou a melhor carne para fazer o meu prato preferido. Mia, você é realmente um doce. - Ryan riu satisfeito antes de descer os lábios até os meus. Seus beijos ardentes cessaram rapidamente, e então se afastou, puxando uma cadeira, um convite a eu me sentar.
- Obrigada - agradeci enquanto tomava lugar à mesa. Ele circundou a mesa e sentou-se de frente para mim, mirando-me com intensidade.
- Vamos comer logo. Não temos muito tempo até o seu despertar, e você precisa de forças - disse ele, abrindo a tampa da panela. Estiquei a mão no intuito de nos servir, mas ele me bloqueou. - Não, Mia. Hoje é o seu aniversário, então deixe-me servi-la.
- Uhn... - murmurei, abaixando o olhar, pensando que talvez esse seja o último bom momento que eu teria com ele. Eu deveria dizer a verdade, mas se eu fizesse, eu perderia isso. Memórias boas eram tão raras para mim...
Ryan foi generoso ao encher meu prato. Mesmo ficando com a menor parte, saboreou como se fosse o melhor alimento de sua vida. Meu estômago revirou de ansiedade quando ele retirou a louça suja e decidiu cortar o bolo. Este não foi o único bolo que ganhei na vida, já que no ano anterior, ele comemorou o aniversário comigo da mesma forma. Ele era o único no mundo que pensava em mim, e eu valoriza isso. Ainda assim, não conseguia me sentir de todo feliz.
- Mia, qual o problema? Está preocupada com a transformação? Você não precisa, não é tão ruim quanto dizem - disse ele, enquanto colocava uma bela fatia do bolo diante de mim. - Além disso, estarei aqui para te apoiar, tudo bem?
Assenti, forçando um sorriso e peguei o garfo, servindo-me. Era o meu sabor preferido; Maçã com especiarias. Assim que o pedaço começou a desmanchar em minha boca, lágrimas involuntárias escaparam de meus olhos. Tão delicioso...
"Oh, céus, que Ryan continue me amando depois de hoje", rezei com todo o meu coração.
- Oh, Mia, está tudo bem? Já está sentindo algo? - perguntou ele, ajoelhando-se ao meu lado e colocando uma mão sobre o meu queixo.
- Não, estou bem. É só que estou... tão feliz - sussurrei, voltando meu olhar para ele e lançando-me em sua direção.
Ryan me segurou firmemente e aconcheguei-me em seus braços, enquanto ele se levantava e me levava até o sofá. Ele não disse mais nada, apenas marcou presença passando sua mão forte e grande em minhas costas enquanto soprava palavras doces e de conforto em meu ouvido, promessas de que ficaria sempre ao meu lado e de que tudo daria certo.
A espera continuou, o sono me atingindo em meio aos soluços contidos, enquanto os braços de Ryan insistiam em me manter junto a ele. Tais palavras por ele proferidas não se sustentaram, pois ao virar a meia noite, seu aperto se tornou doloroso.
- Mia, poderia haver um erro na sua certidão de nascimento? - questionou-me com a voz mais fria, tão diferente de como estava sendo anteriormente. Não respondi a essa pergunta, o que pareceu ter levantado desconfianças nele.
- Mia! O que está me escondendo? - Com um movimento brusco, ele lançou-me por baixo dele e posicionou o corpo por cima do meu de forma dominadora. Abri bem meus olhos, encontrando um olhar feroz e nada amigável.
- Eu... - minha respiração estava pesada, as palavras se recusando a sair. Ainda assim, sentia que era hora de enfrentar a situação de frente. - Eu já fiz dezoito, mas não sinto meu lobo ainda.
Dizem que dias antes de despertar, os lobisomens começam a ter sensações interiores peculiares, então sempre sabiam dizer que havia algo acordando. Sentimentos contraditórios, desequilíbrio emocional e agitação de espírito devido à concentração de energia mágica antecediam a transformação. Eu, no entanto, não tive qualquer sinal.
- Isso não é possível, você não... - Ryan estava em choque. - Ser órfã não significa que você precisa ser fraca. Como posso acreditar que minha companheira sequer tem um lobo?
A voz dele se elevou, a frieza em seu olhar era algo que eu já presenciara incontáveis vezes, em todos aqueles que me fizeram mal. Havia desprezo neles, o que me levou ao desespero total. Por um instante, senti que deveria fazer de tudo para me justificar, mesmo que eu tivesse que quebrar a promessa que fiz à Dália.
- Ryan, eu não tenho o lobo ainda, mas se puder esperar...
- Mais do que já esperei? - questionou, exasperado. - Mia, mesmo que algum dia no futuro você desperte, lobos tardios são tão atrofiados e fracos que sequer deveriam existir.
- Mas um dia irei despertar e serei forte, Ryan! Por favor, acredite em...
Ele interrompeu-me lançando sua boca sobre a minha, seus lábios se movendo sobre os meus com ferocidade. Meus lábios estavam começando a ficar doloridos quando ele se afastou, sorrindo de um jeito que me assustou.
- Acho que você não tem muitas opções agora, não é? Para o seu bem, é melhor me responder corretamente - ameaçou.
- Você... não me ama mais? - perguntei entre lágrimas. Não adiantava mais tentar convencê-lo, ele claramente não se importava.
- Mia, eu gosto demais de você, ou do contrário não teria cuidado de você por tanto tempo. Mas você não é digna de ser minha companheira. Você só tem duas opções agora: Torne-se minha serva e amante e viva, ou morra lá fora, esquecida por tudo e todos.
"Eu não posso morrer", pensei em desespero. "Eu quero viver!"
- E então, o que será? - Ryan me pressionou, segurando meu queixo com força. - Saiba que se virar minha serva, garantirei que continue tendo tudo o que precisa, nada vai te faltar.
As palavras dele soaram mais suaves, e vi um lampejo de afetuosidade em seu olhar. Diferente de como pensei, ele não simplesmente me expulsou, ele me deu uma opção. Contudo, ser uma serva à mercê dele não estava em meus planos. Todo o calor que meu coração vinha sentindo ultimamente desapareceu, enquanto meus sentimentos congelavam novamente. Dor e solidão, eu já havia aceitado isso há muito tempo. As memórias vívidas de todas as promessas que fiz a mim mesma fizeram com que o meu presente fosse sufocado por esse passado sombrio.
- Apenas me deixe ir - respondi por fim. Mesmo em meios aos perigos externos, sabia que faria de tudo para sobreviver, assim como fiz até agora.
- Como posso te deixar ir assim, Mia? - respondeu ele, decepcionado. Pelo menos, terá que pagar por tudo o que já lhe dei.
Enquanto olhava para ele, via mais do que um desejo avassalador, via perigo. Eu já não sentia nada, não tinha mais apego a sonhos ou ilusões românticas. O preço por achar que podia desejar memórias felizes estava prestes a ser cobrado.