Apoiei a mão na parede, respirando com esforço, tentando encontrar o ritmo do meu corpo - o fio que ainda me prendia ao mundo conhecido.
Cada som chegava abafado: o zumbido da geladeira, o trânsito longínquo, a voz de algum vizinho. Tudo parecia distante, como se eu escutasse através de um vidro espesso.
Caminhei até a cozinha quase por inércia e preparei café sem pensar. A rotina me devolvia uma migalha de estabilidade, mas não afastava a sensação de desconexão. Tudo era familiar, seguro... e ainda assim, não era meu.
Um pensamento insistiu: "Eu não estou completa."
E, pela primeira vez, entendi que algo em mim esteve adormecido, escondido sob a pele.
O primeiro gole de café me surpreendeu. Foi como uma faísca percorrendo meus sentidos apagados.
Um aroma profundo tomou tudo: torrado, couro, madeira úmida.
Abri os olhos, e a luz mudou. Não estava mais forte... estava viva. As bordas dos objetos ficaram tão definidas que até doíam: a textura do tapete, o vermelho pulsante do sofá, o verde elétrico da planta.
Algo estava despertando.
O aroma voltou - mais complexo, mais antigo: couro molhado... e outro rastro impossível de nomear.
Senti antes de entender. Um arrepio desceu pela nuca. Minhas mãos se fecharam ao redor da xícara. Meu corpo queria mais daquele cheiro. Mandava que eu prestasse atenção.
Meus ouvidos reagiram em seguida. Cada som comum se ampliou: a porta do vizinho batendo, o motor de um carro, um cachorro latindo quadras adiante. Tudo vibrava sob minha pele.
Fechei os olhos. Respirei fundo. A mudança se consolidou:
a desconexão desapareceu.
Uma energia desconhecida percorreu minha coluna, incendiando cada célula.
Meus instintos gritavam: observar. Cheirar. Ouvir. Medir.
Não era medo. Era reconhecimento.
Um novo código que meu corpo decifrava sozinho.
O aroma insistiu, mais forte. Familiar.
Não tinha nome. Não tinha explicação.
Mas minha pele sabia: metal quente, fumaça... e um calor primordial.
Ele não estava ali.
Mas algum rastro dele estava.
Caminhei até a janela. A cidade se abriu como um organismo vivo.
Calles, pessoas, movimentos... e sob tudo isso, uma rede invisível de alertas, presenças, intenções.
Meu instinto alfa recém-nascido me conectava a ele.
Mesmo que eu ainda não compreendesse essa ligação.
Eu era duas:
• Véspera humana: CEO, lógica, controle.
• A outra: loba desperta. Selvagem. Em ascensão.
A lua vermelha vibrou sob minha pele, marcando o compasso da mudança.
Não era estética. Era sinal.
Decidi sair.
Ao entrar no carro, meus guardas eram silhuetas comuns - mas meus sentidos os catalogaram: postura, respiração, tensão.
Não era só ver ou ouvir - sentir.
Então o rastro dele golpeou novamente.
Um calor antigo me percorreu as costas.
Meu coração disparou.
Um aviso dentro de mim retumbou:
Ele está perto.
A cidade e o bosque se entrelaçaram.
Eu era a fronteira entre o humano e o selvagem.
Nada seria igual.
---
Visão de Astervan
Diante do grande vitral da Mansão, Astervan observava o bosque que bordava a cidade.
Seu foco era um só: ela.
Sentiu sua presença como um pulso na própria corrente sanguínea.
Um ritmo que não pertencia a humanos.
Sorriu de lado.
- Então você está despertando... - murmurou. - E não está sozinha...
Pegou o celular e digitou com precisão:
"Véspera. Reunião. Agora. Mansão."
Antes de enviar, hesitou por uma fração de segundo, saboreando aquela ligação invisível.
Ele sentia a marca.
A lua vermelha.
A loba.
- Interessante... Não é totalmente humana... - sussurrou com arrogância satisfeita. -
Isso vai ser... divertido.
Mensagem enviada.
O jogo havia começado.
---
Visão de Véspera
O celular vibrou.
Meu nome.
Uma ordem.
"Véspera. Reunião. Agora. Mansão."
Não pensei.
Meu corpo escolheu por mim.
- Para o bosque. Agora. - ordenei ao motorista.
Sem perguntas.
Sem lógica.
Instinto.
A Mansão surgia imponente entre as árvores.
A pedra negra parecia respirar sob o sol.
Astervan me aguardava no saguão.
Traje escuro...
Olhar demasiado intenso...
- Chegou rápido - disse ele, avançando um passo.
- Não tive opção. - respondi, engolindo minha própria estranheza.
Ficamos frente a frente.
Perto demais.
Conscientes demais.
Ele inclinou a cabeça, como um predador que detecta um segredo.
- Há algo em você... - sussurrou.
- Não sei do que está falando - menti.
Ele ergueu a mão sem tocar, mas senti o contato mesmo assim.
Meu coração bateu como se quisesse romper cômodos e certezas.
- Seu sangue arde - murmurou. - Eu poderia sentir você mesmo do outro lado do mundo.
A marca pulsou. Forte.
Como se respondesse a ele.
- O que você é? - sussurrei.
Astervan sorriu. Perigoso.
- O mesmo que você.
Só que você ainda não entendeu.
As pupilas dele escureceram - um brilho animal atrás do azul.
Quando o mundo prestes a se incendiar...
Um Gamma irrompeu:
- Alfa, desculpe interromper. Há movimento no perímetro. O Clã Céu Eterno diz que sentiu... alguma coisa.
Astervan não desviou o olhar de mim.
Não era mais química.
Era guerra.
- Preparem-se - ordenou ele. - Ninguém entra ou sai sem a minha permissão.
O Gamma sumiu tão rápido quanto surgiu.
Astervan avançou um último centímetro.
Seu hálito tocou meus lábios.
- A partir de agora, você não está sozinha - prometeu.
- Quer você goste... ou não.
A lua vermelha queimou.
O destino também.