Ponto de Vista: Eleonora
O celular descartável parecia pesado na minha mão, vibrando com destruição potencial como uma granada ativa.
Sentei-me no chão do closet, cercada por cinquenta mil reais em seda e caxemira - roupas de grife que Breno havia escolhido para mim.
Não eram apenas roupas. Eram figurinos.
Armaduras para o papel que eu era forçada a desempenhar.
Disquei o número que memorizei anos atrás, uma sequência de dígitos que não deveria existir.
Tocou duas vezes.
"Criador de Fantasmas", uma voz distorcida atendeu.
"Preciso de uma Tabula Rasa", eu disse, minha voz firme.
Houve uma pausa longa e pesada do outro lado.
"Eleonora?", a voz perguntou, a distorção digital desaparecendo para revelar o tom chocado de Evan Caldas.
"Não use meu nome", sussurrei, o comando afiado apesar do volume baixo.
"Você sabe o que está pedindo", disse Evan, sua voz grave. "Não é apenas amnésia. É uma limpeza. Um reset total. Você não vai se lembrar dele. Não vai se lembrar de si mesma. Não vai se lembrar de como programar, como lavar dinheiro, ou por que está fugindo. Você será uma lousa em branco. Uma criança no corpo de uma mulher até que as novas memórias se assentem."
"Ótimo", eu disse.
"É o suicídio da alma, Eleonora", ele avisou. "Você está matando a mulher que você é."
"Essa mulher já está morta", respondi. "Você pode fazer isso?"
"Posso", ele disse, pesaroso. "Mas o custo..."
"Eu tenho as chaves criptográficas para as contas nas Ilhas Cayman", eu o interrompi. "Você será pago em dobro."
"Quinta-feira", ele disse finalmente. "Venha ao laboratório. E não traga nada."
Desliguei e coloquei o celular de volta dentro da lombada oca do livro.
Tomando coragem, saí para o quarto.
Breno estava dormindo, o braço jogado descuidadamente sobre os olhos.
Ele parecia em paz.
Como se não tivesse acabado de incinerar meu mundo inteiro.
Deitei na cama ao lado dele, com cuidado para não tocá-lo.
Mas ele se mexeu, seu braço envolvendo minha cintura, me puxando para seu peito.
Ele enterrou o rosto no meu pescoço, inalando meu cheiro.
"Minha", ele murmurou em seu sono.
Uma onda de náusea me percorreu.
Eu costumava pensar que sua possessividade era proteção.
Eu costumava pensar que os guardas, os muros, o rastreador no meu carro eram porque ele queria me manter segura de seus inimigos.
Agora, eu percebia a verdade.
Ele não estava me protegendo do mundo.
Ele estava protegendo sua propriedade de ser roubada.
Fiquei ali no escuro, ouvindo o ritmo constante de sua respiração.
Tentei invocar o amor que sentia por ele ontem.
Tentei lembrar do jeito que ele me tirou daquele carro em chamas, seu rosto manchado de fuligem, seus olhos selvagens de terror por mim.
Mas tudo que eu conseguia ver era a mensagem de texto.
Tudo que eu conseguia ouvir era ele dizendo a Kiara que eu era funcional.
Funcional.
Como um algoritmo.
Como uma arma carregada.
Fechei os olhos e comecei a construir um muro em minha mente.
Tijolo por tijolo.
Coloquei cada memória dele atrás dele.
A primeira vez que ele me beijou.
O jeito que ele segurou minha mão na ópera.
O jeito que ele me olhou quando lhe apresentei as plantas da propriedade.
Eu as selei.
Eu não precisava de um médico para me dizer que o procedimento doeria.
Eu já estava em agonia.
Mas a dor era apenas informação.
E eu sabia como manipular dados.
Quando o sol nascesse, eu seria a esposa perfeita uma última vez.
Eu serviria seu café.
Eu arrumaria sua gravata.
Eu o beijaria de despedida.
E ele nunca saberia que a mulher em seus braços já era um fantasma.