Capítulo 2 Cinco Anos Depois

odas as manhãs durante a semana, Paulo gostava que a família se sentassem juntos à mesa, para tomar café, era ele que levava a Raquel e o Guilherme para a escola. A escola ficava na cidade, era um percurso longo, por isso Kel tinha que acordar às 5H. O Gui, sempre esperava por eles na porteira, era ele quem a abria e fechava. Ela não gostava muito de ir para a escola, não era popular, não tinha muitos amigos por lá, para falar a verdade, sua única amiga era a Silvia, ela não a julgava por morar na fazenda e nem a chamava de caipira como as outras garotas.

Talvez seja por isso que ela ainda não tinha encontrado seu lugar no mundo, não se sentia parte dele, parecia estar nele por engano.

- Bom dia, Kel, animada para aula? - Gui perguntou ao entrar no carro.

- Não, lugares com muitas pessoas me assustam. - Ela forçou um sorriso.

- Às vezes acho que sua filha é autista, seu Paulo. - O garoto riu.

- Pode ser, Guilherme, é uma explicação razoável. - O pai piscou para o garoto que estava sentado no banco de trás.

- Não sou autista, só que as garotas não gostam de mim. Me chamam de caipira e não querem ser minhas amigas. Você, Guilherme, vive em uma fazenda como eu, mas nunca vi ninguém caçoar de você. - Ela virou o pescoço para olhar nos olhos dele.

- Kel, pode ser coisa da sua cabeça. As pessoas também brincam comigo sobre várias coisas, a diferença é que eu não dou bola. Percebi que quanto mais a gente dá bola, mais elas zoam.

Ele estava sentado no meio dos bancos da frente e a olhava sério.

- Tá vendo, minha filha, tudo é questão de saber levar. Ignora essas meninas, elas que estão perdendo por não quererem amizade com você. Estava com os olhos fixos na estrada de terra, tinha vários buracos e eles balançavam nos bancos enquanto ele passava cauteloso, tentando desviar deles.

- Comigo não funciona ignorar, elas já fazem isso o tempo todo, não falam comigo!

- Pelo menos você tem a Silvia, ela é gente boa e sempre defende você dessas meninas. - Gui apertou seu ombro a motivando.

- Olha crianças, a vida é dura mesmo e quanto mais cedo vocês aprenderem a lidar com ela, menos vão sofrer.

Ele ligou o rádio e começou a tocar uma música que falava:

"Oh, impressionante, infinito

E ousado amor de Deus

Oh, que deixa as noventa e nove

Só pra me encontrar

Não posso comprá-lo, nem merecê-lo

Mesmo assim se entregou

Oh, impressionante, infinito

E ousado amor de Deus."

- Nossa, pai! Tira dessa música. Não sei porque o senhor sempre liga nessa frequência, esse povo só grita, acha que a gente é surda. - Ela mudou a música.

- Eles falam algumas coisas que gosto de ouvir. Essa música, por exemplo, parece que caiu feito luva na nossa conversa, acredito que é esse tipo de amor que todos nós precisamos.

- É mesmo, seu Paulo, acho que Deus quis participar da nossa conversa e falar com você, Raquel, o quanto ele te ama e não te rejeita. - Ele cutucou sua cintura.

- Pare com isso, Guilherme! - Empurrou a mão dele e cruzou os braços sobre o peito.

- Não me sinto rejeitada por ninguém.

Paulo pegou a estrada asfaltada e todos vibraram. Aquele sacolejo finalmente parou e ela pôde fechar os olhos e tirar um cochilo. Acordou com o Gui balançando seu braço, o carro do pai estava parado em frente à escola.

- Bom dia, seu Paulo! Olá, Gui! E aí, Raquel, como vai?

Silvia esperava por ela no portão, como fazia todos os dias desde que se mudou para Pirapora, seus pais haviam se separado e a mãe dela decidiu voltar para Minas, já seu pai continuava morando em Campinas/SP. Ele tinha uma empresa de pequeno porte, pagava os estudos da filha e também a pensão.

Raquel desceu do carro sonolenta e abraçou a amiga.

- Tchau, meninas! - Paulo abanou a mão. - Gui, fique de olho na Kel por mim.

- Pode deixar, seu Paulo.

Ele bateu continência para o patrão de seu pai.

- Eu não preciso de ninguém de olho em mim, pai! - Olhou para ele com fúria.

- Se cuidem! - Ele deu partida e saiu.

- E aí, Silvia? Como foi suas férias?

- Foram boas, Gui! Mas não tão boas quanto a de vocês. Viver em apartamento é diferente do que viver em fazenda. Lá, vocês têm mais espaço. E aquelas festas culturais... as noites em volta da fogueira ouvindo os contadores de história, ah! Deve ter sido muito bom.

Eu só fui para a praia com minha família.

A Silvia já tinha ido algumas vezes na fazenda para fazer trabalho com a Kel, ela gostava de nadar com a amiga. A família da mãe dela morava em outra cidade que ficava duas horas dali, quando decidiu voltar para Minas, preferiu uma cidade menor e embora prédios não são comuns na cidade, apenas prédios menores e de poucos andares, a mãe da garota preferiu um lugar menor para continuar a criar os filhos.

- É, eu já falei para Kel que somos privilegiados, mas ela acha que aquelas meninas ali que são.

Ele apontou para o grupo de meninas que gostavam de gozar da Raquel. Todas elas moravam na cidade, em casas situadas em bairros, em Pirapora não havia grandes prédios ou condomínios.

- Essas meninas são esnobes, sempre foram... se acham! Silvia concordou.

Eles foram caminhando em direção às salas de aula. A sala do ensino médio ficava no outro andar. O Gui se despediu delas e subiu a escadaria.

- Ele está cada dia mais bonito, não é mesmo, Kel?

Ela observava o garoto subir, ele estava rodeado dos amigos, estavam conversando e rindo muito.

- Quem é bonito?

A Raquel estava distraída, com pena de si mesma, por não ter atenção do grupinho que a esnobava.

- O Gui, Raquel! O Gui! Eu acho ele muito bonito, com essa pele bronzeada, aqueles braços fortes, sem contar aquele sorriso perfeito. Você tem uma baita sorte de morar no mesmo lugar que ele.

- Credo, Silvia! Ele é um... um... - gaguejou tentando definir o garoto de 17 anos que subia as escadas. - Ele é um cortador de grama e limpador de esterco, cuida dos cavalos e tira o leite das vacas. Dirige feito doido o trator do meu pai. E a pele bronzeada dele, é de ficar no sol fazendo todo esse trabalho.

- Nossa, Raquel! Está parecendo aquelas meninas esnobes. E daí que ele faz tudo isso? É um menino decente e muito bonito.

- É, você tem razão, acho que a opinião delas ao meu respeito está influenciando a maneira que enxergo as coisas. O Gui é um garoto legal, gosto demais dele. Mas você precisa concordar comigo que bonito mesmo é o Fábio, pena que ele só conversa com aquelas meninas chatas.

Elas subiram as escadas, entraram na sala e se sentaram. O professor ainda não tinha chegado, elas teriam aula de história. A Silvia se virou para trás para continuar a conversar com a amiga.

- O Fábio é igual a elas, por isso se dão tão bem. Falando nele, olha aí quem chegou...

O garoto havia entrado na sala com um grupinho de meninas, todos falando alto e sorrindo. Elas passaram por Raquel e Silvia e as encararam, a Kel abaixou a cabeça, tinha medo delas começarem a mexer com ela na frente do Fábio.

- Perdeu alguma coisa aqui, Letícia? - Silvia perguntou a uma delas.

- Coitadas! - Elas riram e sentaram no fundão.

Raquel percebeu que uma delas não estava sorrindo com a gozação de Letícia.

- Será que vamos nos formar com essas garotas? Quero distância delas.

Kel cochichou.

- Essa é uma das melhores escolas desta cidade, é óbvio que vamos ter que suportá-las até o terceiro ano, só faltam dois, ainda bem! - Silvia virou-se para a frente, o professor tinha acabado de entrar.

- Bom dia, senhoras e senhores! Espero que as férias de vocês tenham sido boas e que tenham aproveitado para tagarelar bastante nelas, porque hoje, vamos iniciar um projeto sobre a riqueza econômica gerada pelo café. Mas antes de começar a falar sobre esse tema, quero saber o quanto vocês conhecem sobre o assunto, afinal, já devem ter ouvido falar sobre isso no quinto ano, nessa aula, vamos apenas abordar os aspectos econômicos do nosso país e iremos começar pelo café. Letícia, você que está tagarelando com suas amigas, espero que compartilhe com a sala. Provavelmente você deve conhecer bem sobre esse assunto, não é mesmo?

A menina ficou vermelha, a sala caiu na gargalhada.

- Desculpe, professor, mas acho que esse tema tem mais a cara da nossa colega que mora na roça, acho que a Raquel saberá falar melhor sobre esse assunto. - Todos riram.

- Esse é um conteúdo que todos vocês devem ter na ponta da língua, minha cara. Agora pare de atrapalhar a aula ou vou ter que pedir para você se retirar.

- Vou me comportar, professor, prometo. - Ela piscou para ele.

Raquel estava com os olhos cheios d'agua, odiava ouvir Letícia rir dela assim. Ela morava na fazenda, poderia ser roça para ela, mas morar no campo, não a fazia ser diferente dos outros da turma, não gostava dessa divisão.

- Raquel, minha querida, acho que sua colega tem razão, o seu pai cultiva café, não é mesmo?

- Sim, meu pai é produtor de café e ganhou nota 87,77 no concurso da Associação Brasileira de Cafés Especiais.

Falou com orgulho, mas ouviu um burburinho que vinha do fundo e se encolheu na cadeira envergonhada.

- Eu soube, esse prêmio é muito importante, isso mostra que o café que seu pai produz é de muita qualidade. Ele também foi premiado no Concurso Café Mantiqueira de Minas, não foi?

- Sim, também recebeu uma boa pontuação.

Falou baixinho.

- Estão ouvindo, turma? Até hoje a produção de café é muito importante em nosso país.

Ela quase não prestou a atenção na aula, sentia que os olhos de todos estavam sobre ela - a garota da roça! Estava estigmatizada por ser do campo e não sabia como fazer para romper com esse rótulo.

O professor de história os liberou um pouco mais cedo para o intervalo e Guilherme, que estava na aula de educação física, se aproximou dela, percebeu que a amiga estava cabisbaixa e lembrou-se da conversa que tiveram no carro, eles não conversavam muito na escola, o Gui ficava com os seus amigos, que eram mais velhos que Kel. Eram poucas as vezes que os dois se encontravam, mas hoje, ele estava preocupado, desde que a ouviu se lamentar no carro, sobre a dificuldade que tinha para ser aceita pelo grupo de sua sala, sentiu que deveria ajudá-la. Ele desejava que a amiga crescesse, se tornasse destemida, uma garota ousada, mas Raquel insistia em fazer da vida dela uma novela mexicana, parecia viver em um mundo paralelo, sempre com pena de si mesmo.

- Ei! O que aconteceu com você? Por que está aqui sozinha? Cadê a Silvia?- Sentou-se ao seu lado.

- Ela foi pegar um salgado na cantina.

- Ela levantou a cabeça para olhar em seus olhos.

- E por que está com essa carinha triste?

- Porque me gozaram de novo hoje na aula de história. O professor falou sobre a importância do café para a economia, mas a Letícia estava atrapalhando a aula e ele a pediu para explicar já que não parava de falar. Só que ela disse que eu deveria saber, porque moro na roça.

- Kel, você dá muita importância para essas meninas. Seu pai tem muito mais condição financeira que a maioria dos pais desta escola. Essa garota não conhece você, não sabe a garota legal que é. Pare de dar tanta bola para ela, você diz tanto que gosta de ser livre, mas vive ouvindo o que essas meninas dizem. Esquece elas!

Ela suspirou e limpou as lágrimas. As meninas passaram na frente deles e ela se calou, percebeu que elas estavam olhando e não queria que elas ouvissem ou a vissem chorar. Letícia olhou para Guilherme que sorriu.

- Parece que ela gosta de você - Kel observou.

- E o que isso importa? Eu não ligo.

Ele se levantou e a puxou pelo braço colocando-a em pé.

- Vai atrás da Silvia na cantina e compre algo para você e aproveite e traga algum salgado para mim também, estou morrendo de fome.

- Você não comeu? - Perguntou curiosa.

- Não, estava jogando, desci agora para comer, mas aí te vi aqui...

- Obrigada por cuidar de mim, Gui - Ela ficou na ponta do pé e bagunçou o cabelo do amigo.

- Vou sempre cuidar de você, Kel, é uma promessa! Agora vai lá logo antes que o sinal para o intervalo toque, vou voltar para o jogo, te espero lá na quadra.

Ela ficou ali parada, olhando o amigo entrar novamente no jogo, ele era muito sociável com todos. Caminhou em direção a cantiga e viu a Silvia, voltando com seu salgado nas mãos.

- Onde está indo?

- Vou pegar um salgado para mim e outro para o Gui. Vamos lá comigo?

- A fila está enorme, Kel. Não sei se vai dar tempo, mas vou lá com você. Parece que os professores resolveram soltar os alunos mais cedo para o intervalo.

Ela estava certa, tinha muitas pessoas esperando para serem atendidas. Kel foi se enfiando entre elas, desejando que uma alma bondosa, que estivesse próxima para ser atendida, se oferecesse para pedir para ela também. O Fábio era um deles e percebeu que ele e a Thaís, amiga de Letícia, estavam juntos. Eles olharam para a Kel.

- Era você que estava conversando com o Gui, não era? - Perguntou Thais.

A garota olhou para os lados para ver se era com ela mesmo que a Thaís falava.

- Sim, era comigo - Respondeu amedrontada, esperando alguma gozação por parte da outra, mas ao invés disso a garota a olhou sorrindo.

- A fila está enorme, você não vai conseguir pedir nada. Quer que eu peça algo para você? Somos os próximos.

Kel olhou desconfiada para a garota, "O que deu nela?" Olhou para a Silvia, que deu de ombros. Aceitou a ajuda.

- Nossa! Magrinha desse jeito e consegue comer dois salgados?

- Ah, não! - respondeu - Um é do Gui.

Os olhos de Thaís brilharam.

- A é? Então um deve ser pouco para ele, não é mesmo? O que você é dele?

- Ele é como um "irmão" . Pelo menos, é assim que nos vemos desde crianças. A família dele mora na fazenda com a gente. O pai dele é o braço direito do meu. Quanto ao salgados, ele só vai comer um mesmo. Com certeza vai comer bem mais quando chegar em casa.

Ela se esforçou para parecer simpática,

principalmente porque notou que Fábio não tirava os olhos dela.

- Realmente, ele é bem forte para um garoto de 17 anos. Pena que este é o último ano dele.

Kel olhou sem entender para a garota. Não conseguia acreditar que o último ano do Gui era motivo de lamento, ainda mais tendo Fábio logo ali, ao seu lado. Ela agradeceu pelo salgado e saiu para entregá-lo ao seu "irmão".

- Não acredito! Não é possível que essa lambisgoia esteja interessada no Gui! E você percebeu que ela foi boazinha só por causa dele, né?

- Pois é! Também não consegui entender. Pelo jeito não é só você que acha o Gui bonito, a Letícia também sorriu para ele hoje no intervalo.

Elas chegaram na quadra, onde o Gui estava e ficaram no canto, com medo de levarem uma bolada. Kel acenou para o Gui, mas ele estava correndo com a bola no pé, ia em direção ao gol, vários garotos tentavam roubar a bola dele, mas ele driblou todos, a galera que assistia, vibrava, Silvia era uma delas, gritava, incentivando o rapaz. Kel observou que Letícia também assistia ao jogo com seu grupinho, percebeu quando Thaís aproximou-se da amiga, o Fábio não estava mais com elas. Kel lamentou. De repente, ela ouviu o grito de gol e o povo aplaudindo, ela voltou os olhos para a quadra e viu o amigo abraçando os companheiros, ele tinha marcado o gol. Silvia gritava tanto que Kel colocou os dedos nos ouvidos para abafar o som.

Ele viu Kel e correu para ela, o jogo havia acabado e o time dele havia vencido.

- Parabéns pelo jogo - Ela esticou os braços para entregar o salgado do amigo, ele estava suado e ela não queria que ele a tocasse.

- Obrigado! O que foi? Está com nojinho é? - Ele lhe deu um abraço forçado.

- Sai fora, Gui!

- Está desprezando seu irmãozinho, é? Me dá aqui um abraço vai?

- Que nojo, você está todo coisado!

Ele pegou o salgado da mão dela e abocanhou.

- Você joga muito bem, Gui. Parabéns! - Silvia falou dengosa.

- Bondade sua, Sil! - Ele piscou para elas e saiu para comemorar a vitória com os amigos. Kel viu as meninas fazerem graça para ele. O que ela achou curioso, era que Gui pareceu gostar da atenção que as meninas lhe davam. Letícia tinha entrado na quadra e estava no meio dos rapazes, as amigas dela foram atrás. A essa altura o sino do intervalo já havia tocado, mas o professor deixou a bola com os garotos por mais tempo. Por alguma razão, Kel não gostou daquela cena, ele estava rodeado de meninas. Kel saiu de lá marchando, Sílvia teve que correr para alcançá-la.

- Engraçado, Kel, ela despreza o fato de você morar na roça, mas tá lá atrás do Gui. Deve ser porque

percebeu que ele está popular entre as meninas do colégio, só pode!

- Pois é! Pior é ele que deu atenção para ela sabendo o quanto ela me trata mal...

As duas passaram o intervalo se lamentando pela cena, Kel, por achar traição por parte do amigo conversar com a garota que deixava sua vida truculenta e Sílvia por perceber que não seria fácil ter a atenção do garoto só para si.

            
            

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