Capítulo 5 Trabalho escolar na fazenda

O pai de Raquel esperava por ela na saída da escola, o Guilherme estava dentro do carro, ela deu um tchau tímido para as amigas e elas gritaram animadas que estariam em sua casa depois das 13h. O Gui percebeu seu desconforto.

- O que aconteceu com você? Alguém pegou no seu pé por causa da fazenda de novo?

- Não, dessa vez as meninas decidiram que a fazenda seria o melhor lugar para fazer nossa pesquisa sobre o aborto, mesmo quando disse que nossa internet não era boa para pesquisas. Sinceramente, não sei se elas estão realmente interessadas em fazer o trabalho, acredito que elas vão é me dar trabalho.

Ela colocou sua mochila nos pés, apertou o cinto e encostou a cabeça no encosto do carro. Paulo olhou para a filha, depois para o Gui e balançou a cabeça sorrindo, definitivamente ele não conseguia entender sua única menina.

- Eu pensei que você quisesse fazer novos amigos, que eles te aceitassem, vai me dizer que mudou de ideia?

Guilherme deu uma gargalhada e sentou em seu costumeiro lugar, entre os bancos dos dois.

- Seu Paulo, eu falei que sua filha é autista. Ela não gosta de sair da rotina, prefere fazer os trabalhos sozinha.

- Mas eu não faço sozinha, faço com a Sílvia.

- Então é isso, dessa vez não fará só com a Sílvia, certo?

- Não, a Thaís também vai fazer.

- É Gui, vou ter que concordar com você, parece que a Kel tem dificuldades de aceitar mudanças.

- É claro que não, só que as duas estão interessadas no Gui e junto dele que elas vão querer ficar. O trabalho vai sobrar todo para mim.

- Quer que dizer que você é garanhão, Gui?

- Que isso, seu Paulo, sou um cara tranquilo! E Raquel, fique tranquila, vou ficar com vocês na hora do trabalho e dar meu apoio – falou com ironia.

- Não quero seu apoio, Gui. Quero mais é que você suma da fazenda enquanto elas estiverem por lá, só assim vamos conseguir fazer o trabalho tranquilas.

- Sem problemas pra mim.

O silêncio os acompanhou até a fazenda, Raquel desceu do carro com sua mochila nas costas e seguiu para casa, Paulo veio logo atrás, ela viu que seu pai disse alguma coisa ao garoto que sorriu e tomou seu caminho.

Kel avisou a mãe que as amigas chegariam após o almoço e que iriam pesquisar para o trabalho da escola, a mãe da garota abriu um sorriso em aprovação, não estava acostumada ver amigas da filha na fazenda, conhecia apenas Sílvia.

A garota foi para o quarto, tirou a roupa da escola e escolheu um vestido florido de alça, estava bastante calor, ela fez um coque em seu cabelo preto, cheio de ondas. Se olhou no espelho e ficou admirando seu reflexo, seu rosto era tão branco que parecia estar doente e suas sardas a incomodavam muito, a única coisa que ela gostava em si era a cor de seus olhos, eles eram azuis piscina, mas ela não achava que fazia muita diferença em seu rosto. Uma vez perguntou a mãe para quem ela tinha puxado a cor dos olhos, ela disse que era do tataravô de seu pai. Voltou a se olhar no espelho e observou seu corpo magricelo, suas pernas compridas, elas também precisavam de um sol, decidiu que passaria os próximos dias na piscina, para ganhar um bronzeado. Se lembrou de Estela, quando criança, o que ela mais notara na amiga, era seu corpo comprido e magricelo, mesmo ela sendo um pouco mais velha que Kel, as duas se davam muito bem, porém ela havia mudado-se da fazenda e nunca mais teve contato com a amiga.

- Vamos, Raquel, o almoço está na mesa.

Ela passou o vestido pela a cabeça e correu para a cozinha, não queria levar bronca, ainda mais hoje, que receberia visitas.

A garota comeu rapidamente, estava ansiosa para ver suas parceiras de trabalho chegarem e antes mesmo de terminar de escovar os dentes, ouviu a voz do Gui na porta, perguntando por ela, ele anunciou que as meninas haviam chegado. Kel deu uma última olhada no espelho, respirou fundo e foi recebê-las.

- Ei meninas! Vamos lá para o escritório, tem mais espaço e é mais tranquilo para estudar.

O Gui abriu um grande sorriso para as garotas e saiu de fininho. Thaís e Sílvia acompanharam atentamente cada movimento do jovem que fechou a porta ao sair. A mãe de Raquel estava no sofá na companhia de sua amiga inseparável, Verdinha, a ave estava agitada com a movimentação na casa, andava de uma ponta a outra do encosto do sofá – dona Eva estendeu o braço para que Verdinha pudesse subir. As garotas sorriram para a ave e essa tentou esconder-se atrás da cabeça de dona Eva. Ela levantou-se do sofá para cumprimentar as amigas da filha.

- Bem-vindas, meninas! Fiquem a vontade, qualquer coisa pode me chamar.

- Bem-viiindas!

Thaís e Silvia riram ao ouvirem a ave repetir as palavras de dona Eva.

- Obrigada por nos receber. Olá papagaio falante, tudo bem com você?

– Essa é a Verdinha. Fala Oi para a Thaís, Verdinha?

– Oííí!

As meninas riram novamente e seguiram Raquel para o escritório.

- Kel, sua fazenda é muito legal, que lugar incrível, deve ser maravilhoso morar aqui.

Thaís olhava para o espaçoso escritório, uma parede de blindex, ficava de frente com a porta, dava visão para o campo e suas imponentes árvores, também era possível ver a imensidão do céu azul.

Havia uma mesa de madeira no centro do ambiente, com várias cadeiras, onde o pai de Raquel costumava fazer as reuniões com os colaboradores. Na mesma parede que ficava a porta, havia uma estante de livros que ia até ao teto, este, também era de madeira. Nas paredes laterais, havia um armário com gavetões e na parede que ficava do outro lado, havia uma grande tv de tela plana.

Raquel abriu umas das gavetas e tirou de lá três notebooks e deu um para cada uma de suas colegas, ela sentou-se na ponta da mesa e aguardou que as meninas tomassem seus lugares; a Sílvia, sentou ao seu lado e foi logo abrindo o notebook para iniciar as pesquisas, mas Thaís ainda estava admirando cada detalhe do lugar.

- Não imaginava que você apreciasse a roça. – Ironizou.

- Mas este lugar está longe de ser roça, isso aqui é lindo!

- Eu também sempre achei. Sexta-feira mesmo venho para cá, de mala e cuia, para passar o final de semana. O som do entardecer aqui é perfeito, ouvir o cantar dos grilos, dos pássaros, o som do vento batendo nas árvores e o chacoalhar de suas folhas, eu amo.

Kel deu uma gargalhada e explicou:

- Muito poético te ouvir, Sil, mas só um detalhe, os grilos estridulam e só quem o faz são os machos, para atrair as fêmeas para a cópula.

- Cópula?

Thaís perguntou curiosa, ela pareceu interessada na aula de Kel sobre os sons da fazenda, especialmente sobre os grilos.

- Isso mesmo, cópula, ou seja, acasalamento.

- Ahh! As duas visitantes responderam juntas.

- Se o nosso tema fosse inseto ou vida na selva, a nossa nota estaria garantida com a Kel em nosso grupo, não é Sílvia?

- Pois é, a Kel, desses assuntos entende!

- Eu sei um pouco, mas quem domina este lugar além dos meus pais é o Gui, ele é muito dedicado e ama isso tudo.

- Nossa Kel, você tem muita sorte de morar nesse lugar e ainda por cima com o Gui.

- Tenho que concordar com você, Thaís. Mas nossa amiga aqui, não acha nada disso.

- Você não gosta de morar aqui ou não gosta do Gui?

- Claro que gosto do Gui, ele é como um irmão para mim, só não o vejo como vocês, para mim ele é só um garoto comum.

As garotas calaram-se ao avistarem o jovem passar na frente da parede de blindex ao lado externo da casa. Nas mesmas paredes, haviam grandes janelas basculantes e entrou uma brisa que jogou ao chão, as folhas sulfites que Kel tinha colocado sobre a mesa. Kel levantou-se para recolher, mas viu o amigo sem camisa segurando uma carriola cheia de gravetos, ela se recordou das vezes que ela, Estela, João e o Gui, disputavam corrida de carriola, ela e Estela ficavam dentro do carrinho e João e Gui seguravam nas alças para ver quem chegava primeiro até o lugar demarcado. Kel olhou para as companheiras de trabalho e viu os olhares apaixonados sobre o amigo, ele nem notara que estava sendo observado.

- Meninas, vamos começar o trabalho?

- Como pode, Kel?

- Como pode o quê? Precisamos começar gente, daqui a pouco o dia termina e não pesquisamos nada.

- Como pode não achá-lo bonito, uai?

Raquel levantou e foi até a janela, olhou para o Gui e depois para as meninas.

- Gente, se vocês acham ele bonito por ele ser forte ou alto, ok! Mas mesmo assim, não vejo nada demais nele, deve ser porque crescemos juntos.

- Não só por ele ser forte, se bem que agora, vendo ele trabalhar aqui, entendo de onde vem esses músculos todos. Mas eu o acho bonito por ter cara de homem e não desses meninos engomadinhos criados com avó.

Raquel e Sílvia gargalharam ao ouvir a definição de Thaís.

- O que seria um garoto engomadinho criado com a avó?

- Esses garotos cheios de frescura, sabe? Sei lá, ele parece ser capaz de lutar em uma guerra por uma mulher.

- Sei não, se fosse pelos animais ou pelo Deus dele eu até acredito, mas por mulher, duvido!

- Pois eu acho o mesmo que você, Thaís. Mas a Kel, gosta mais do tipo do Fábio.

- Sílvia! Quem disse que era para contar para ela?

A garota ficou uma pimenta, voltou a sentar em sua cadeira de cabeça baixa.

- Não sabia que era segredo. E a Thaís é amiga dele, pode te apresentar.

- Fica tranquila Kel, seu segredo está seguro comigo, mas o Fábio é meio galinha, não leva nenhuma garota a sério, fora que se acha. Sem contar que é o tipo almofadinha, mas no caso dele, foi criado por um homem machista, que não o ensinou a valorizar nenhuma mulher, talvez só sua mãe e olha lá.

- Credo Thaís, não sabia que ele era desse jeito.

- Ele é um garoto bonito, mas é só isso, Kel.

- E como você sabe que o Gui não é apenas um garoto bonito?

- Porque já conversei com o Gui, ele é um cara bem maduro, tem boa cabeça para a idade, sabe o quer e sempre me respeitou.

- Sim, ele é bem assim mesmo. Bom, meninas, agora que ele já sumiu do nosso campo de visão, que tal nos concentrarmos no trabalho?

- Sim, tem razão Kel, eu já comecei umas pesquisas aqui, mas você Thaís, nem abriu o notebook.

- Desculpa meninas, o Gui me desconcentrou.

- Nós percebemos!

- Não fala isso não Sílvia, você também estava gostando do tema da conversa.

- Tá bom, gente! Então, agora, vamos olhar para o tema do trabalho: aborto.

- Vamos precisar responder uma pergunta simples: Por que as mulheres abortam?

- Boa, Thaís! Mas outra pergunta interessante é: qual a idade delas?

- Gente, acho que essas questões são bem fáceis responder, precisamos ir mais fundo.

- Você acha fácil, Kel? Então responda sem nenhuma pesquisa e vamos ver se o que você acredita é mesmo o fato.

Silvia apoiou o queixo nas mãos e seu cabelo curto caiu para frente como se fosse um leque se abrindo, ela fitava a amiga enquanto Thaís lia algo em seu notebook.

- É obvio que são adolescentes e jovens, com uns, sei lá, 15 a 25 anos e abortam porque não planejaram o bebe, provavelmente engravidaram de namorados que não quiseram assumir ou até de um cara qualquer, que conheceram na balada.

- Então pasme, Kel, segundo a Pesquisa Nacional Sobre o Aborto de 2016, aproximadamente 20% das mulheres de até 40 anos já abortaram, a principal relevância na faixa etária entre mulheres de 20 a 29 anos. Mas segundo uma pesquisa da Fiocruz, as adolescentes são as que mais morrem devido ao procedimento. Diz também aqui que as separadas ou viúvas, realizam a interrupção da gravidez em maior proporção e agora pasmem, a maior proporção também são entre as mulheres que já são mães.

Silvia olhou para a amiga que estava com a boca aberta. Thaís balançava a cabeça de um lado para o outro tentando entender as informações lidas.

- Então, para a maioria das mulheres que praticaram o aborto, o veem como um método de controle reprodutivo? Ou seja, nenhum outro método funcionou então o próximo passo é o aborto, certo?

- Sim, e isso vem desde a época colonial, aqui diz que as mães solteiras e de filhos ilegítimos eram os que levavam a tais práticas nessa época.

- Tá pessoal, já sabemos as razões e faixa etária, mas a grande questão é: Por que somos contra o aborto?

- Essa fácil, porque é um ser humano e não uma massa de células.

- E você acha que esse seu argumento é suficiente, Kel?

- Não mesmo!

- Eu sei gente, mas para mim é tão óbvio. Tenho pensado sobre isso desde o dia que escolhemos defender o feto, penso que é o certo.

- Até em casos de estupros?

- Não pensei sobre isso.

- E se o cara não quiser a criança, a mulher vai assumir sozinha a responsabilidade?

- Não é só isso, Thaís, mesmo que a mulher decida entregar o filho para adoção, pensa a dor que ela vai passar, os riscos de um parto e até mesmo, as mudanças que vão ocorrer em seu corpo enquanto o bonito do homem está de boa, pegando outra garota.

- Gente, tudo isso é muito complexo.

- Por isso que precisamos buscar conteúdo, Kel. E pensar nos dois lados da moeda. Precisamos ler mais sobre as mulheres que são a favor e também as que são contra, para nos posicionarmos.

- Mas nós já nos posicionamos quando escolhemos defender contra o aborto.

- Tem alguma pesquisa que fala sobre os países que liberaram se houve aumento de abortos?

- Tem uma pesquisa aqui divulgada pelo site gazeta do povo que diz que há uma briga entre os que são a favor ao aborto, onde esses dizem que com a legalização do aborto diminuem a proporção de quando eram criminalizados, mas os que são contra, falam que esses dados são imprecisos já que não tem como saber, pois não eram calculados. Por isso eles usam uma metodologia onde averiguam o número de abortos no primeiro ano e observa se esse número crescer acima da taxa de crescimento da população nos anos seguintes.

- Tá certo, mas o que eles concluíram?

- Dizem que aumentou, tem até uma tabela aqui no site para comparar. Mas pessoal, precisamos focar nos motivos negativos do aborto.

- Redução populacional, seleção, acredito que tudo isso é um bom argumento.

- Como assim, Thaís? Não entendi.

- Se nessa pesquisa está mostrando aumento de casos de aborto, consequentemente há uma redução populacional. E na pesquisa que eu li, diz que maior parte dessas mulheres tem baixa escolaridade, ou seja, são pobres, também diz que a incidência é maior entre pardas e negras, por isso digo, seleção. Está sendo feito, mesmo que indiretamente, uma seleção.

- Nossa gente, que forte isso, precisamos pensar mais a respeito.

A mãe de Raquel entrou no escritório com uma bandeja de suprimentos, continha: suco de laranja, fatias de bolo de cenoura, torradas, queijo fresco, leite e geleia de morango. As meninas abriram um espaço na mesa para ela deixar as guloseimas.

- Estão com fome, meninas?

- Bem na hora, dona Eva.

Sílvia foi a primeira a se servir com uma fatia de bolo, Kel preferiu o suco e Thaís pegou o queijo fresco.

- Vocês concluíram a pesquisa?

- Ainda não mãe, o tema parece simples, mas estamos buscando dados.

Silvia ainda estava mastigando quando disse:

- A senhora é a favor do aborto, dona Eva?

- Sou totalmente contra, para mim isso é assassinato.

As meninas se entreolharam e depois deram risadas com o jeito direto que a mãe de Kel se posicionou.

- O que é assassinato, dona Eva? Guilherme amava o bolo de cenoura de Eva, por isso sempre que ela fazia o convidava para tomar café, mesmo ela tendo deixado algumas fatias para ele na cozinha, o garoto fez questão de ir até o escritório para espiar as meninas.

- Estamos falando sobre aborto, Gui. Minha mãe disse que é assassinato.

- Ué, e alguma de vocês tem dúvida que seja? – Questionou o jovem que se servia do suco que estava sobre a mesa do escritório.

- Dizem que é só uma massa de células.

- Não é o que diz em Êxodo 21, 22, 23 e nem em Jeremias 1:5

- Lá vem você com a bíblia.

- Não tem como me desvincular dela, Raquel. Ela é meu manual de vida.

- Falou certo Gui, o seu manual, não o de todos nós.

- O que diz nesses versículos, Gui?

Thaís perguntou com os olhos admirados, Kel não sabia se a admiração que via nos olhos da colega era pelo conhecimento bíblico do amigo ou somente por ele mesmo.

- Em êxodo fala que se homens brigarem e acontecer de ferir uma mulher grávida e ela der à luz sem nenhum dano, eles deverão pagar apenas uma indenização imposta pelo marido da mulher, mas se houver outros danos, é dar vida por vida. Em Jeremias diz que antes de ser formado, Deus já o conhecia, antes mesmo do nascimento. Existem outros mais, mas acho que a cara da Kel deixou claro que para ela isso não é importante, não é mesmo?

- Essas são suas crenças, Gui. Não vamos debater bíblia, vamos debater ciência e é com ela que venceremos o debate.

A mãe de Raquel, que ouvia calada, resolveu participar da discussão.

- A humanidade tem o desejo de explicar o inexplicável, e quando não conseguem a tiram do foco. Para muitos deles, a existência de Deus não é algo concreto e usam a ciência para justificar tantas coisas, inclusive o aborto. O interessante é que nem entre os cientistas, médicos ou estudiosos sobre o assunto, entram em consenso. Mas para quem acredita em Deus, não existe dúvidas do certo e errado, a palavra é clara, a questão aqui é vocês decidirem em o que acreditam. E digo isso não apenas nessa questão do aborto, mas em tudo na vida de vocês. Agora me deem licença que preciso terminar meu serviço.

- Muito bom, dona Eva, eu penso como a senhora. Também preciso ir, os cavalos me esperam.

Raquel olhou para Thaís e Silvia para ver se identificava nas garotas algum ar de reprovação, ela detestava a intromissão de sua mãe e a de Gui sobre seu trabalho, para ela era irrelevante o que a bíblia dizia, na cabeça dela ninguém mais tem interesse em saber o que está escrito nela e sempre se questionava que se Deus realmente existia, então por que nunca fez nada para destruir o mal que há no mundo? Ela tinha tantos questionamentos a esse respeito, mas os deixava guardados em seu coração, não queria abrir essas gavetas, sabia que tiraria de lá várias perguntas sem respostas e Deus não parecia disposto a respondê-las, estava lá, distante, preso naquele livro e na cabeça de quem acredita nele.

- Não sabia que o Gui era tão devoto.

Sílvia quebrou o silêncio que estabeleceu no escritório depois das palavras de Guilherme e Eva. Thaís estava com o olhar fixo na tela do computador e Kel pareceu ser a única a ouvir a garota.

- Ele é só um garoto com grandes convicções.

Após concluírem a primeira etapa do trabalho elas foram dar uma volta pela fazenda. Thaís estava encantada com o lugar e fez questão de conhecer. Elas passaram pelas baias dos cavalos, pelo curral, no poleiro e depois seguiram até as plantações de café, ali, elas ficaram por um bom tempo admirando os cafeeiros enfileirados e sua grande extensão. Raquel contou para as amigas que o mês da colheita era feita em abril e que seu pai alugava o maquinário para ajudá-los. Ela explicou que as máquinas pareciam grandes tratores com rodas pequenas, passava pelos pés e pequenas hastes de fibra ficavam vibrando para que os grãos se soltassem dos pés e iam para um compartimento acima do maquinário. Ela também falou do quanto era divertido brincar de esconde-esconde ali, fez muito isso quando criança, junto com o Gui e as outras crianças que moravam na fazenda. Ao retornarem, elas viram uma pequena plantação de bananeiras e Sílvia esticou-se para apanhar uma que estava madura no pé. Raquel mostrou também o poço onde seu pai criava os peixes como Tilápia, Surubim e Pacu. O poço era fundo, todo ornamentado com pedras e sobre ele havia uma pequena ponte de madeira. As meninas passaram sobre ela e aproveitaram para tirar algumas fotos, depois seguiram para a casa sede. No caminho, Thaís viu pequenas casas e questionou a Raquel se havia moradores nelas, a garota explicou que não, mas que antigamente, elas abrigavam as famílias que trabalhavam na fazenda. Mais à frente, passaram pela à casa de Gui, e Kel a apontou para que as meninas vissem onde o garoto morava, a casa era avarandada e com vários vasos de flores por toda a parte, a mãe dele amava as flores e as cultivava com capricho. Quando chegaram na parte mais alta da fazenda, onde Kel gostava de sentar e pensar na vida, elas pararam para contemplar o pôr do sol, ele parecia maior e bem mais bonito. Ela sentiu uma mão pesada sobre o ombro, olhou para trás e viu o amigo, ele estava entre ela e Thaís, estava de olhos fechados, sorrindo, como se estivesse agradecendo.

- Todos os dias antes de entrar para tomar banho é aqui que venho, não me canso de ver essa imagem.

A voz do jovem era de contemplação.

- Nunca vi o pôr do sol daqui. E olha que essa não é a primeira vez que venho em sua casa, Raquel.

- Eita Silvia, você tem razão, acho que nunca te trouxe aqui mesmo.

Raquel olhou para Thaís e notou o sorriso nos lábios da garota, ela sabia bem o motivo. Será que o Gui está começando a corresponder? Ela esticou o pescoço para olhar para Sílvia, ela parecia não ter notado a aproximação dos dois. Ai amiga, nessa disputa não é só a Letícia que perdeu não!

Thaís e Guilherme voltaram juntos para a casa sede, estavam conversando e rindo bastante, vez ou outra Thaís dava um empurrãozinho nele, jogando seu charme. Sílvia finalmente notou a aproximação do casal a frente.

- Parece que o Gui está correspondendo as investidas de Thaís.

- Esse é o jeito dele, sempre cordial com todos.

Kel não queria entristecer a amiga, sabia que ela gostava do garoto a tempos, mas ele parecia não notar, pelo menos era o que ela achava. O Guilherme sempre foi na dele, nunca deu muita atenção para nada além dos animais. Para Kel, também era surpreendente essa atenção especial que ele dava para sua nova amiga.

- Raquel, posso até concordar que ele seja gentil com todos, mas ele nunca me deu essa atenção, sempre conversou comigo normal, como amigos, mas olha lá a cara de felicidade que ele faz para ela.

Os cabelos curtos e dourados de Sílvia, balançavam de um lado para o outro enquanto ela falava e gesticulava. Kel desejava que seu amigo notasse a garota, preferia ela a Thaís, que até antes de romper com a Letícia, ria de suas maldades. Entretanto, pelo que parecia, o Gui havia se despertado para a garota de cabelos longos, cor de chocolate, pele cor de jambo e tinha uma boca tão bem-feita e carnuda que deixava seu rosto ainda mais bonito. Ela não conseguia definir quem considerava mais bonita, se era a Letícia ou Thaís, as duas eram opostos uma da outra, Letícia era loira, pele clara, cabelos lisos e longos, olhos grandes e castanhos, era um pouco mais alta que Thaís e mais magra também, a Thaís tinha mais curvas e um corpo bem desenvolvido para idade. De fato, seu amigo, no quesito beleza, estava com boas pretendentes. Mas ela torcia pela Sílvia, mesmo achando essa competição desleal, sua amiga era bonita, mas não como as duas garotas populares do colégio, Sílvia tinha uma beleza comum, baixa, cabelos loiros e um pouco de espinhas no rosto, o que era normal da idade, todavia, não chamava muita atenção.

Kel olhou para trás para acompanhar os pássaros que iam em direção ao Rio São Francisco, que ficava ao fundo da fazenda.

- Sil, minha torcida é por você, sexta-feira está logo aí, quem sabe vocês se aproximam.

- Sei não, Kel, acho que nessa disputa eu já perdi.

                         

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