Capítulo 3 3.

Vítor deixou-me no trabalho e seguiu o seu caminho. Respirei fundo sentindo os lábios dele junto da minha nuca e assim que me virei só restava o cheiro dele.

Respirei fundo e entrei. Estava tudo louco com a minha exposição e eu louca também, não pela exposição mas porque toda a gente estava a reagir como se o mundo fosse acabar se alguma coisa corresse mal.

Toda a gente sabe que quem vai ver exposições nunca é para comprar...é sempre para assistir a um espetáculo, tentar descobrir o que o pintor sentiu e tentar desvendar o que a própria pessoa sente ao ver as coisas.

Assim se passou o dia com toda a gente a tentar desvendar o que ia fazer com aqueles quadros obscuros, acho que toda a gente precisa de alguma coisa que os molde, que os assuste, que faça o coração bater mais forte.

Eram 19h quando senti novamente o cheiro do autocarro, agora que sabia que o André estava por perto senti que só podia ser ele. Estava a enlouquecer, o que é que ele fazia aqui? No meio de uma exposição? Virei-me a medo e lá estava ele. Devo ter piscado os olhos um par de vezes para ver se a minha visão mudava o que estava a ver. Mas não mudou.

Ele aproximou-se de mim e só tive tempo de desviar o olhar.

- Branca? Certo? É a pintora principal desta exposição? - eu assenti, com um ar mais tímido do que o que era habitual e ele prosseguiu - o meu nome é André e sou jornalista estagiário no jornal local. Fiquei encarregado de cobrir todas as notícias desta exposição. Seria possível fazer-lhe algumas perguntas?

Quase que nem o conseguia ouvir estava preocupada em tentar encontrar a Alice que apesar de não a sentir por perto sabia que alguém nos estava a observar.

- Muito prazer mas de momento não tenho tempo para responder - tentei despachá-lo

Ao tentar passar por ele agarrou-me o braço e logo o largou quando olhei para trás.

- Sei que pode parecer que não sou um jornalista experiente mas gostava muito de ter a oportunidade de a entrevistar, acho brilhante alguém com a sua idade fazer um trabalho tão exímio, que faz com que seja a exposição mais badalada de sempre.

Apesar de nervoso eu bem queria passar mais tempo com ele gritar-lhe que sou a Branca, que peguei nele ao colo, o quanto senti saudades do cheiro dele...mas isso só ia parecer assustador.

- Amanhã as 10h no cafe Majestic conheces?

- Sim lá estarei. Muito obrigada pela oportunidade! Não vou desapontar.

Era bom ouvi-lo gritar de entusiasmo enquanto eu me afastava como o diabo foge da cruz.

Sabia que me ia arrepender mas afinal é só trabalho. Quem me pode julgar.

Neste caminho para casa pareceu-me que a musica Skinny Love - Birdy era a que se adequava melhor ao que eu estava a sentir naquele momento.

O resto foi tudo igual, silêncio total no autocarro, pessoas claramente exaustas agarradas ao telemóvel. Ao sair do autocarro o mesmo cheiro a comida de sempre, mães a berrar "vinde para a mesa". E finalmente em casa.

Alguém esteve aqui e não estou a ser paranoica. Sei disso, comecei a verificar as divisões todas que são poucas, um t1 no porto nunca é grande mas é acolhedor e era só isso que eu queria. Apesar de nada estar fora do sítio sentia-me violada. Alguém veio aqui mas porquê? Procurar o quê? Tenho a casa praticamente vazia, corri para a minha caixa de memórias.

Estava dentro de um livro falso no armário castanho da entrada. O resto eram tudo livros verdadeiros. Peguei nele...realmente faz já muito tempo que não o ia buscar a maior parte das pessoas já cá não estavam. Que boas lembranças e que nostalgia ao mesmo tempo.

A Anabela já a conheço desde sempre, foi ela que me ajudou a superar em todos os sentidos o que me tinha acontecido e salvou-me muitas vezes de morrer ou seja desaparecer.

Ao sentar-me no meu sofá apercebi-me que alguma coisa estava diferente. Um toque diferente. Comecei a vasculhar as coisas e a lembrar-me das memorias e cheiros que aquilo me trazia. Era impressionante como sitios específicos nos davam a sensação de ter cheiros próprios.

Eu sabia que não estava a ser paranoica, faltava-me a foto do André. Sem que conseguisse entender estava a invocar a Anabela. Sempre que me acontecia alguma coisa dava por mim a chamá-la como um mantra.

Um grande buraco negro apareceu na minha sala e assim que tivesse tempo de amparar as coisas que queriam levantar voo e segurar os meus olhos que queriam sair das orbitas vi a surgir a graciosa Anabela... e o Vítor.

- Olá minha querida. - depois olhou para o fundo da sala e meteu-se em posição de defesa- não sei porquê que me chamas se não estás sozinha. Estás com este sedento de sangue, este assassino.

O Vítor mostrou os dentes, eles tinham uma relação estranha e em grande parte sabia que era por minha causa.

- Sabes como é, não és a única a ouvir os gritos de desespero da Branca. Mais do que ninguém eu sei sempre como ela se sente. Deixa-te disso Anabela.

Anabela descontraiu mas sem tirar os olhos dele.

- Parem os dois com isso, a foto do André desapareceu! - disse-lhes ainda horrorizada.

- Não a terás perdido com as mudanças? - disse o Vitor com desdém na voz.

- Nota-se mesmo que a conheces como ninguém. Se a conhecesses saberias que ela nunca perderia nada do que está dentro daquela caixa - Anabela sabia bem o que aquela caixa significava para mim, era tudo o que eu era, toda a minha história dentro daquela caixa. Cada pedacinho de mim, onde bastava olhar para me levar de volta aqueles sítios, aquelas pessoas, aqueles cheiros, aquelas vozes e sorrisos. Após 600anos o que eu sempre temi foi esquecer-me.

Nunca perderia a foto do André, a grande parte marcante dos meus anos aqui na terra, a época em que fui verdadeiramente feliz, em que me senti parte integrante desta vida, desta vida de vampira. Na pele daquele monstro que eu sempre tivera desprezado. A Anabela sabia disso, sempre esteve do meu lado, sempre aceitou os meus lados sombrios. E o Vitor também deveria saber, não fosse ele o causador desta minha nova forma, o meu Dono.

- Branca, quem te tirou a foto do André percebe bem de feitiçaria. Tu não sabes mas quando te dei aquela caixa fiz-lhe um feitiço que o feiticeiro mor me ensinou, onde só tu tinhas o poder de a ver e abrir. Desculpa, não te contei nada porque pensei que assim estarias mais segura - Anabela conseguiu toda a minha atenção naquele momento - Imagina se algum mundano a descobrisse? As questões que faria?

- Primeira coisa em que estamos de acordo. Bem pensado feiticeira! - o ódio do Vitor sentia-se a quilómetros, os dentes a mostrarem-se pontiagudos, o bafo como se lhe estivessem a arrancar partes do corpo, sempre sentiu a necessidade de dizer a palavra chave "feiticeira".

- Então não sei como é que a Alice conseguiu tirar a foto do André - confessei eu confusa.

- A Alice está viva? - questionou a Anabela, num misto de questão e grito e lançando um olhar acusador ao Vitor.

- Sim Anabela, pelos vistos o assunto não ficou resolvido e o André está cá em Portugal, mais perto de mim do que aquilo que eu gostaria. E não, não sabe quem eu sou. - antes que a pergunta surgisse e a minha voz demonstrasse o quanto isso me entristecia por dentro.

- Então temos de tratar desse assunto de uma vez por todas - eu observava-a como quem questiona de que forma iríamos tratar disso. - Dá-me a caixa, quero ver quem é que se desfez do encanto e conseguiu abri-la sem esforço.

Após um tempo de eu e o Vitor estarmos a olhar penetrantemente para a Anabela à espera que alguma coisa acontecesse, ela passava as mãos muito compenetrada pela caixa com os olhos fechados e a fazer caretas como quem faz cara feia. E então, parou.

- Não pode ter sido a Alice a vir aqui, tudo nesta caixa foi um verdadeiro feiticeiro que desfez. Só pode! O encamento aqui utilizado é mais antigo que eu.

- Então a Alice tem um feiticeiro como aliado.

            
            

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