Raffael foi embora. Quer dizer, ele vai voltar. Parece que o mesmo teve de ir resolver uns problemas lá na favela. Uma vez o celular do Raffael estava tocando e ele estava no banho, fui atender porque sou uma pessoa de bom coração e nem um pouco curiosa. Me arrependi? Sim, me arrependo amargamente. O carinha do outro lado me tratou super mal, me chamou até de marmita de bandido. Logo eu, uma lady. Falei umas boas verdades pra ele e ainda bloqueei o número. Contei tudo pro Raffael e ele riu da minha cara, mas depois me deu uma bronca. Parece que o carinha em que eu o coloquei no seu devido lugar era ,simplesmente, o dono da favela. Fiquei morrendo de medo. Fui mexer logo com um bandido.
Virei uma pessoa que só come lasanha de microondas. Não posso reclamar, é uma das melhores coisas do mundo da gastronomia. Enlatados e esses negócios prejudiciais a saúde estão sempre nas compras do mercado. Ah mãe, que saudades.
[...]
Existem muitas coisas horripilantes na vida. Mas nada se compara a estar sozinha em uma mansão gigante num dia chuvoso. Tudo parece ser um cenário de filme de terror.
Não suportando mais o medo e a solidão, pego meu celular e ligo para o Daniel. É nessas horas em que o amiguinho parece ser útil.
Início da ligação
- Oi, princesa.
- Tu me ama? - que comece a chantagem emocional.
- Lógico que amo, mas por que a pergunta?
- Sabe? Estou com saudades do meu amiguinho. - ouço ele rir. - É sério, Daniel!
- Fala sério, mi amor. - se recompõe. - O que você quer, ein?
- Nada demais. Só quero sua presença aqui e agora na minha casa. - falo divertida.
- Ok! Vou poder dormir aí? - reviro os olhos.
- Óbvio, Daniel. Vem logo, tá?
- Pode deixar. Vou comprar umonte de besteira para a minha nenenzinha.
- Acho bom. - rimos. - Tchau, Dani. - desligo a chamada na cara dele.
Fim da ligação
Ele vai ficar todo irritadinho. Nós dois tivemos uma conversa depois daquela confusão toda e acabamos nos resolvendo como duas pessoas maduras. Nem tão maduras assim, mas deu pro gasto.
Já fazem umas duas horas que o Dani chegou. Nós assistimos um filme e ele acabou entrando em um sono profundo. Acredite, é mesmo profundo. Coloquei o dedo no nariz dele e ele nem acordou. Do que adianta chamar uma pessoa pra te fazer companhia sendo que ela dorme e você continua abandonada? É o mesmo que pedir para o capiroto vir comer lasanha comigo.
Eu tô sem vontade de viver. Essa ansiedade de esperar minha mãe acordar do coma está me matando. Tem dia que a Maria nem me liga, pois não tem nada pra contar de novidade. Já fiz uns plantões na sala de espera do hospital, mas não me deixam entrar na uti onde minha mãe está.
A Maria não tem obrigação de ficar lá com minha mãe, mas mesmo assim ela está. Ela não sai de perto da minha mãe um segundo sequer. Foi Deus que colocou esse anjo em nossas vidas, e eu agradeço muitíssimo por isso.
Às vezes, eu me pego imaginando quanto tempo eu perdi longe dos meus pais. Bom, eu sei que eles viviam ocupados e quase não paravam em casa. Mas quando eles estavam aqui, eu não dava bola, eu preferia ir ao shopping. Eu devia ter aceitado ir em todas aquelas festas chatas com eles, eu devia... Sei lá, eu devia ir visitar eles no escritório. Eu fui uma idiota e agora estou aqui, me corroendo de arrependimento.
Eu só queria que Deus me desse mais uma chance e por obséquio permitisse que minha mãe continuasse aqui comigo. Como eu poderia imaginar que iria perder meu pai tão cedo assim? Que eu iria ter que ficar na ansiedade de saber se minha mãe vai viver ou não?
Mas essa é a tal chamada vida. Aquela que é tipo roda gigante, um dia a gente tá encima, mas em outro tá embaixo.
[...]
Faz uma semana que o meu irmão me abandonou aqui. Bom, não faz tanta diferença assim. Fiquei longe dele durante quase toda a minha vida. Tá, eu até pensei que nós íamos ser aquele casal de irmãos inseparáveis novamente, mas me iludi totalmente. Eu não quero parecer uma idiota, e ficar cobrando a presença dele. Então, apenas finjo que tá tudo bem.
Devido ao tédio e a falta de sono, decidi voltar à frequentar a escola hoje. Ainda são umas cinco horas da manhã, tenho tempo o suficiente para me arrumar. Melhor ir a escola do que ficar aqui sem fazer nada. Primeiramente tenho que ver se meu uniforme ainda vive e tenho que procurar meus materiais. Só de pensar nisso já sinto vontade de desistir, agora me tornei uma pessoa sedentária sem futuro. Ah, e uma pessoa bem exagerada e dramática também.
Depois de tomar banho, me visto e faço todo aquele processo de maquiagem, arrumar o cabelo, e etc. Pego minha mochila e meu celular, desço a escada e vou em direção a cozinha. Despejo leite e cereal em uma vasilha, lanchinho muito saudável. Enquanto estou tomando o café da manhã, já mando uma mensagem ao motorista pra avisar que irei a escola hoje. André até ficou surpreso.
Minutos depois, me encontro parada igual uma estátua enfrente ao enorme portão da escola, morrendo de vontade de dar meia volta.
Tomo coragem e sigo enfrente. Vejo alguns colegas e uns funcionários que me cumprimentam alegres. Os alunos me olham com dó e outros até com deboche. Ah lógico, a "típica patricinha que está passando necessidades". Ergo a cabeça e vou a direção da escola. Ao me ver, a diretoria toda se espanta.
Márcia anda apressadamente em minha direção e me cumprimenta com um beijo no rosto. Sorrio para a mesma e dou um bom dia a todos.
- É ótimo que você esteja de volta! - Márcia fala animada.
- Creio que sim. - dou um sorriso fraco.
- Você não atendeu minhas ligações, estava muito preocupada.
Ela segura minha mão e me encaminha para sentar na cadeira a frente de sua mesa. Eu tô muito envergonhada. Imagina só, eu dei uma de louca e sumi da vida de todos por umas três semanas.
- Desculpa, fui um pouco imprudente. - encolho os ombros.
- Não se preocupe. - sorri. - Você realmente está passando por um momento difícil, então entendo o seu lado. Bom, eu coloquei seu nome em licença, então você não ficou com faltas ou perdeu o conteúdo. Os professores irão lhe mandar todo o conteúdo por e-mail, e lhe aplicarão todas as provas que foram feitas.
- Nossa! Muito obrigada, Márcia. - falo alegre. - Eu pensei que estaria em apuros quando voltasse.
- Não tem de quê. - levanta. - Venha, vou lhe acompanhar até a sala de aula.
Duas aulas de gramática já estavam praticamente concluídas, estou apenas esperando o sinal do intervalo tocar para poder sair daqui de dentro igual um foguete. Confesso que foi meio esquisito entrar nessa sala de aula, não sei, me sinto diferente. Ainda mais depois que descobri a mudança do Daniel de turma, fiquei sabendo que ele mudou para a sala da namoradinha. Alguns alunos vieram falar comigo para dar os pêsames, e óbvio, não podia faltar o Allan. Como sempre ele está colado comigo. Porém, ele está meio que simpático hoje, nada de flertar ou algo do tipo. Estranho.
- E então? - Allan me tira dos meus pensamentos.
- O que? - pergunto sem ter a mínima ideia do que ele estava falando anteriormente.
- Meu Deus. - coloca a mão no rosto. - Faz uns cinco minutos que eu estou te chamando pra ir em uma sorveteria depois da aula.
- Ah. - encaro ele.
- Vai garota, me responde.
- Ah, sim! Vou sim. - falo depois do meu transe.
- Você tá muito grogue. Cê é louco. - ri, balançando a cabeça em negação.
Allan é um jovem bonito. Tem cara de mau, mas ele é bonito. Ele é diferenciado dos caras daqui. O garoto não é um mauricinho, muito pelo contrário, ele parece ser um maloqueiro. Algumas tatuagens espalhadas pelos seus braços, e uma tattoo perto do olho. Já ouvi vários comentários em que Allan é traficante. Mas acredito que seja porque ele tem as tatuagens. Essas pessoas são muito preconceituosas. Tatuagem não é sinônimo de criminoso.
- Você sabe que eu só vou por causa do sorvete, né? - ele me olha sem entender. - Não vou ficar com você.
Ele suspira enquanto balança a cabeça em forma negativa mais uma vez e depois dá uma risada sem graça.
- Eu tô ligado nisso aí. - coloca o boné. - Vamos só dar uma volta mesmo.
- Hurrum... - franzo o cenho desconfiada.
A professora para de escrever na lousa e volta para a mesa dela. Enquanto copio o que está na lousa, escuto um pigarro vindo da professora. Ela encara o Allan e ele sequer percebe.
Jura que ele ainda não percebeu que é pra ele? Cutuco ele que está ao meu lado conversando com uns garotos.
- Qual foi? - me olha.
- A professora tá te chamando.
- Diz, tia. - olha pra ela.
Ela nega com a cabeça e faz um gesto pra ele tirar o boné. Ele tira o boné com desgosto e fica resmungando.
- Você sabe que não pode usar boné na sala. - sussurro pra ele.
- Quero saber o porquê de não poder usar essa porra! - exclama alto.
- Chega, Allan! Direto pra diretoria! - ela levanta e bate com as mãos na mesa.
Eu me encolho na cadeira quando o Allan levanta todo revoltado. Que mico. A sala tá toda parada vendo isso. Antes de sair, Allan para e me encara.
- Vou te esperar na saída.
E então, sai batendo a porta. Os alunos ficam me olhando e eu abaixo a cabeça envergonhada. Que situação constrangedora.
Depois de mais duas aulas de história, sem o Allan, que acredito que tenha sido suapenso, o sinal finalmente tocou. Quando estou me aproximando da saída, vejo Allan fumando um cigarro distraído encostado no muro de frente a escola. Até lembrava de ter combinado de sair com ele, mas eu estava tentada a inventar uma bela desculpa. Porém, não posso dar um perdido nele logo agora.
Atravesso a rua e estralo os dedos enfrente o rosto dele.
- Tá vivo?
- Nem te vi, pô. - joga o cigarro no chão.
O meio ambiente chora com uma cena dessa.
- Percebi. - coloco as mãos para trás.
Eu tô me sentindo muito envergonhada diante dele, não sei o porquê.
- E aí, vamos?
- Tô esperando sua boa vontade de me mostrar o caminho até a sorveteria.
- Você é chatona. - anda na frente e eu o sigo.
Um cara mais bipolar que esse tá pra nascer. Fomos o caminho todo conversando. Nunca me imaginei indo tomar sorvete com ele, mas tudo bem. A vida é feita de ciclos.
- O que vai querer? - me pergunta ao chegarmos na sorveteria.
- Sorvete. - respondo divertida.
- Que engraçadinha. - finge um riso. - Qual o sabor, dondoca?
- Chocolate. - decido depois de ter visualizado todos os potes com sabores variados.
- Beleza. Faz dois de chocolate aí, moça. - pede.
- Vou me sentar ali. - aviso a ele, que assente.
Me sento em uma mesa afastada e observo Allan tirar o dinheiro da carteira para pagar a moça. Ele deixa o dinheiro encima do balcão quando recebe nossos sorvetes. Logo vem até onde estou sentada e me entrega o meu.
- Obrigado. - sorrio. - Nossa, é muito bom. - aprecio aquele doce maravilhoso.
- Papo reto. - concorda. - Eu passo aqui quase todos os dias com os moleques. Esse lugar é um paraíso.
- Verdade. É tudo muito lindo e organizado. Fora que o sorvete é incrivelmente delicioso.
- Espera só até provar o de flocos e o de morango.
- Tá me deixando curiosa. Será que é tão bom mesmo?
- Tô te falando. - me assegura. - Tu vai gostar, pô.
- Espero vir aqui mais vezes então.
- Posso te trazer aqui amanhã depois da aula de novo.
- Isso é um convite? - arqueio a sobrancelha.
- Se você quiser. - dá de ombros.
- Bom, então eu aceito.
Nos encaramos por alguns segundos e logo caímos na risada. O clima entre a gente estava finalmente melhorando. Estávamos os dois relaxados, e o encontrinho fluiu bem até demais.
Depois do nosso encontro, ele me deixou no ponto de táxi e foi embora. Ao chegar em casa fui direto ao meu quarto e me tranquei lá.
Sair com o Allan melhorou muito o meu dia. Faz dias que não me sinto tão livre e solta. Alguma coisa mudou, não sei bem explicar. Talvez seja a mudança de rotina ou talvez a minha nova amizade. Mas é uma mudança boa, um sentimento genuíno. É bom se sentir assim depois de tantos dias apenas chorando e se lamentando.
Algo dentro da minha cabeça diz que tem muita coisa para acontecer ainda. Seja uma coisa boa, ou ruim.