Capítulo 2 Capitulo dois

Eliza sentiu suas pálpebras pesadas, tentava abrir os olhos, mas era tão difícil. Quando conseguiu, viu que estava em um quarto de hospital, as luzes quase a cegavam, e tinha um soro em seu braço.

Sentiu um gosto metálico em sua boca, mas não estranhou, tudo aquilo era familiar para ela.

Pelo menos três vezes ao ano ela acabava em um hospital, com casos de desidratação, desnutrição e até mesmo por passar muitos dias sem dormir. Já tinha virado uma rotina a ela.

A jovem se levantou, pegando o soro e andando na ponta dos pés até a porta, aonde tinham vozes que discutiam baixinho.

- Senhora Blanch, eu entendo que sua filha tenha uma agenda muito ocupada, mas isso é muito sério. É a segunda internação por desnutrição esse ano, e o prontuário mostra que ela já foi internada outras nove vezes, por desnutrição, falta de sono, e até mesmo desidratação.

- Eu estou bem ciente das internações dela. - Jessica retrucou com uma irritação na voz.

- Eu não quis ofende-lá, senhora. Eu só estou preocupado com sua filha.

- Eu também estou, mas você sabe como são esses jovens, sempre ocupados, sempre tendo vontades próprias.

- Claro, eu entendo senhora. Mas se continuar assim, sua filha vai ser internada seriamente e não terá mais volta.

- Escute, eu mesma passei anos seguindo a mesma dieta dela, e estou bem. Mas se for o caso, falo com ela assim que... - Jessica parou de falar quando um celular começou a tocar. - Tenho que atender, licença.

Eliza ouviu passos, e ouviu alguém se aproximando da porta, então ela correu para sua cama, voltando a se deitar rapidamente. A porta foi aberta, e o doutor Ricardo Luz entrou, abrindo um sorriso gentil a Eliza.

Ele era seu médico desde que Eliza era um bebê, e sempre pareceu muito preocupado quanto a ela. Não era para menos, ela era a paciente que mais aparecia na emergência do hospital.

- Doutor Ricardo, é bom ver o senhor. - Eliza disse, abrindo um sorriso gentil.

- Eliza, é bom vê-la também. - Ele disse, parando ao lado dela. - Só gostaria que não fosse nessas circunstâncias.

- Para ser bem sincera, eu também gostaria.

- Eliza, eu te conheço desde pequena. Você nunca deu nenhum trabalho quando era criança, sempre foi tão gentil e obediente, o que me faz pensar se o que sua mãe diz é verdade.

- Eu não entendo o que quer dizer, doutor.

Ricardo olhou para trás, vendo que não havia nem sinal de Jessica pela porta aberta.

- Eliza, se seus pais estiverem lhe forçando a trabalhar horas demais, te privando de comer para que emagreça mais, você pode me dizer.

- Não, eu... - Eliza hesitou, mordendo o lábio inferior. - O que você poderia fazer?

- Iria avisar o conselho tutelar, é claro. Você ainda é menor de idade e seus pais tem o dever de zelar por você.

- E o que eles fariam? Me jogariam no sistema? Prenderiam meus pais?

- Não, claro que não. Primeiro iriam analisar a situação, e se fosse verdade, iriam designar um tutor para você, considerando sua condição especial.

Eliza sabia que se dessem outro tutor a ela, seria só mais uma pessoa interessada em seu dinheiro e fama, que nada mudaria, poderia até piorar. Ela só tinha que aguentar até fazer dezoito anos, e não deixar que seus pais assinassem o contrato para o filme, senão ela ficaria presa durante um ano de filmagem, ou até mais se houvesse sequências.

Além do mais, ela não poderia fazer isso com seus pais. Sabia que eles queriam o que era melhor para ela, de uma forma distorcida e estranha. Mas era a verdade, afinal, eles eram seus pais, eles tinham que amá-la e protege-lá.

- Eu sinto muito, mas houve um engano. Meus pais não tem culpa de nada, minha vida que é tumultuada demais, e as vezes eu simplesmente não tenho tempo.

- Entendo. - Ele disse, parecendo levemente decepcionado. - De qualquer forma, se você precisar de qualquer coisa, não hesite em me ligar.

O doutor estendeu um cartão para ela, que continha o número dele. Eliza olhou para fora de seu quarto, vendo sua mãe entrar naquele momento, a menina pegou o cartão rapidamente, guardando-o em suas roupas.

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- Imaginei que o iria encontrar aqui. - Gabi falou se aproximando de Bruno.

Bruno sabia que ela o encontraria eventualmente. Gabriela era a única pessoa que o conhecia de verdade, e o aceitava, mesmo com todos os seus defeitos. Eles se conheceram na prisão juvenil, e assim que saíram, foram enviados ao mesmo orfanato. Desde então eles se tornaram amigos. Planejavam morar juntos, assim que saíssem do orfanato, em qualquer lugar que o dinheiro desse para pagar. Vinham juntando qualquer dinheiro que recebiam para isso.

Naquele momento ele estava sentado em um balanço de um parquinho. Aonde ele morava, quando seus pais ainda estavam vivos, tinha um parquinho exatamente igual a esse. Seus pais costumavam levar ele e seu irmão para que pudessem brincar, e Bruno sempre ia no balanço, sempre pedindo para que o empurrassem mais alto.

Ele não sabia ao certo porque gostava de ir para lá. Talvez simplesmente gostasse de se torturar, ou de relembrar um momento da vida em que era feliz. De qualquer modo, aquele lugar o fazia pensar em todas as coisas erradas que tinha feito na vida, em como ele tinha conseguido estragar tudo.

- Eu só queria ficar sozinho. - Bruno respondeu, encarando o chão.

- Você sempre quer ficar sozinho. - Ela retrucou, se sentando ao lado dele.

Bruno abriu um leve sorriso para ela, daqueles que não se mostra os dentes. Mais como um simples levantar dos cantos da boca. Era só assim que ele sorria, desde que se tornou órfão.

- Me conhece tão bem. - Bruno retrucou.

- Somos ou não somos irmãos de pais diferentes?

Eles bem que poderiam passar por irmãos mesmo. Tinham o mesmo tom de pele morena, os olhos completamente pretos, e cabelos igualmente escuros, exceto que ao passo que o de Bruno era liso, o de Gabi era encaracolado. Tinham aquele mesmo nariz empinado, e lábios carnudos. Ninguém poderia dizer que não eram da mesma família.

- Eu não vejo a hora de sair daquela casa, de poder morar sozinho. - Bruno murmurou.

- Bem, esse orfanato não é tão ruim assim, eu já estive em piores. - Gabi disse, dando de ombros.

- Você acha que...

- Bruno, eu já lhe disse, Felipe está em um bom orfanato, eu mesma já morei lá. Foi de longe o melhor orfanato em que morei. - Gabriela falou, abrindo um sorriso. - Isso foi, claro, antes eu me meter em apuros.

- As vezes eu penso que somos como imãs para problemas.

Gabriela ficou quieta, durante um certo tempo, simplesmente encarando o nada. Bruno apreciou o silêncio, mesmo que fosse estranho, considerando que Gabi sempre sentia a necessidade de preenche-lo.

Ele sentiu uma leve brisa e fechou os olhos. Seus pensamentos o levaram para sua infância novamente, quando ele era pequeno demais, e sentava no balanço, segurando as correntes com suas pequenas mãozinhas e pedindo que o pai o empurrasse. Pedindo que fosse tão alto que ele pudesse chegar no céu, chegar a lua. E seu pai o empurrava. Dizia que ele iria até o espaço, e se tornaria um astronauta. Dizia que Bruno poderia fazer qualquer coisa que quisesse, que sempre o amariam. Bruno as vezes se indagava se seus pais ainda o amariam se estivessem vivos. Se eles amariam um criminoso.

Uma pontada de dor invadiu seu coração. E ele fechou os olhos com mais forças querendo desesperadamente que aquelas lembranças não doessem tanto.

- Você acha que algum dia será diferente? - Gabi perguntou, o retirando da sua espiral de dor.

- O que? - Bruno perguntou, ao abrir os olhos, apreciando internamente a intromissão dela em seus pensamentos.

- Que algum dia nós vamos ter sorte. Que vamos conseguir ter uma família, e uma casa legal, e... não sei. Sorrir simplesmente por sorrir, sem ter com o que preocupar.

- Você, com certeza. As pessoas gostam de você, tem algo que a faz ser querida por todos. Já eu? Alguém como eu não merece ser feliz.

- Se você não merece ser feliz, tampouco eu. Esqueceu que eu também fui julgada e presa? - Ela perguntou com certo tom de superioridade, arqueando suas sobrancelhas.

- É diferente, e você sabe. O que você fez não... Gabi, eu... o que eu fiz? Não tem perdão. Não tem desculpas e nem conserto. Eu deveria pagar por isso.

- Mais do que já pagou? Você foi pra prisão juvenil, está preso ao orfanato, vai ser despejado... Qualquer um concordaria que você já sofreu o bastante.

- Eu não concordo.

- Bruno, a culpa não é toda sua. Você nunca teve a intenção de prejudicar ninguém, e além disso você se arrependeu. Esse não deveria ser o mais importante?

- Acontece, Gabi, que arrependimentos não vão consertar tudo de errado que eu fiz.

- Bruno...

- Eu acho que preciso caminhar um pouco. Falo com você depois?

Gabi abriu a boca e fechou. Suspirando, ela concordou com a cabeça. Bruno ficou imensamente agradecido, e esperava que ela soubesse disso. Ele se levantou do balanço, e foi embora, sem olhar para trás.

            
            

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