Sou retirado do meu transe pelo toque do celular bem a tempo de perceber que estou ajoelhado à frente de Beatrice que tem os olhos fechados e as pernas abertas apenas para receber meus beijos, e mesmo inebriado pelo seu cheiro, tento ao máximo manter a minha sanidade e saio rápido do banheiro indo até o meu celular, que atendo assim que percebo se tratar da Havanna, uma grande amiga que a dois anos mora na Alemanha e mantém pouco contato comigo desde a mudança, o que me leva a crer que se ela está ligando, deve ter um motivo muito sério, além é claro de me impedir de fazer a maior - e mais deliciosa - besteira dos último tempos.
Coberto apenas pelo roupão que eu vesti às pressas, vou até a varanda e atendo o celular, ouvindo a voz animada da minha amiga de infância. Havana faz um resumo de tudo o que, segundo ela, andou aprontando na Alemanha, de como ela sente falta das nossas aventuras na noite Paulistana, e por fim, ela avisa que está na cidade e me convida para jantar.
Olho pra dentro do quarto, e vejo Beatrice já vestida e sentada na cama penteando os próprios cabelos, e tudo o que me vem na mente é a frustração de não ter continuado chupando aquela mulher, até ela derreter em meus braços explodindo em um orgasmo.
Balanço freneticamente a cabeça tentando afastar a imagem dela nua na minha frente, e repito várias vezes que é apenas um contrato, e que aquilo não deve se repetir, mesmo que eu deseje que se repita, e só volto a minha atenção para a voz da minha amiga quando ela soa alta do outro lado da linha, me fazendo afastar o celular dos ouvidos para preservar a minha audição:
-"E então Léo, vamos jantar juntos?" - Havanna insiste no convite
-Eu adoraria, Havanna, mas não estou em casa, além disso, as minhas novas funções na Moretti estão me deixando cansado pra reviver as nossas noitadas - me justifico - mas podemos combinar algo pra o final de semana, o que acha?
-"Já que meu amigo está virando um velho chato, e não tenho outra alternativa, marcamos no final de semana" - Ela responde contrariada - "Tchau Léo, boa noite".
Havanna encerra a ligação visivelmente chateada, e eu mesmo me pergunto se o motivo da minha negação é mesmo o cansaço e o peso de me transformar em CEO do dia pra noite, ou se tem a ver com a maldita feiticeira de seios fartos e cabelos negros deitada naquela cama com carinha de quem queria ser fodida.
Me forço mais uma vez a afastar meus pensamentos sórdidos, e repito que é só um contrato, que não pode haver envolvimento, que nós não temos nada um com o outro e devemos continuar assim. Passo ainda um tempo na varanda, e entro encarando a morena com cara de paisagem deitada na cama à minha frente, mexendo no celular, e resolvo cortar o mal pela raiz:
-Beatrice - chamo a sua atenção e ela me olha atenta - Sobre o que houve no banheiro, espero que você entenda que eu sou homem, e você estava nua com os seios na minha cara, mas isso não muda nada entre a gente e eu não quero que você crie esperanças já que tem um contrato a cumprir - sou rude e ela me olha irritada - Aquilo foi um erro e não vai se repetir, nós temos papéis bem definidos na vida um do outro e não vai passar disso.
O olhar dela agora é de puro ódio, sua respiração acelerada faz com que suas narinas abram e fechem rapidamente, como quem tenta recuperar o controle sobre a própria respiração. Não consigo saber ao certo o sentimento que seus olhos deixam transparecer, a única coisa que sei, é que o sentimento não é bom. Fico analisando a postura dela, e estou quase desistindo de receber qualquer resposta, quando a vejo sentar-se e respirar fundo antes de finalmente me responder:
-Você não precisa me lembrar a cada conversa da porcaria desse contrato, porque o par de chifres na minha cabeça e a lembrança da minha mãe doente fazem isso sozinhos - sua voz é firme, e a mágoa com que ela fala, me faz sentir horrível, ensaio uma resposta, mas ela ergue a mão pra que eu continue calado e então continue. - Acho ótimo que mantenhamos realmente uma boa distância, portanto, a partir de amanhã eu volto ao meu apartamento, e se você quiser manter o teatrinho, tenho um ótimo quarto de hóspedes lá.
-Eu não vou mudar pra lugar algum com você, Beatrice! - sou taxativo
-Maravilha, então já podemos ensaiar a desculpa para morarmos separados mesmo já sendo casados - ela sorri irônica
-Você está sendo infantil, pelo amor de deus! - exclamo tentando não gritar com ela
-Você praticamente me agarra no banheiro, e depois de arrepende jogando na minha cara que só fez isso porque eu estava nua e você é homem, faz questão de não manter um diálogo saudavel, sempre citando esse maldito contrato, e a infantil sou eu? - ela cruza os braços
-E o que você quer que eu faça? - pergunto cansado
-Eu acho que você precisa encontrar alguém de quem goste pra casar de verdade - olho incrédulo a mulher obstinada à minha frente - Sem contratos, sem jogar coisas na cara de ninguém e sem passar vinte e quatro horas do seu dia amargurado ao lado de alguém com quem claramente você não queria estar.
-Mas... - tento falar, e mais uma vez ela ergue a mão me fazendo parar
-Se a sua preocupação é com o dinheiro do tratamento da mamãe, amanhã mesmo coloco meu apartamento a venda, e te devolvo cada centavo, pode ficar tranquilo - ela soa firme - Encontre alguém que você realmente ame pra compartilhar sua vida, porque eu não estou disposta a passar um ano dessa maneira, agora tenha uma boa noite!
Ela simplesmente volta a se deitar, ficando completamente coberta pelo edredom e ignorando que eu sigo estático, de pé feito um ás de copas pensando se vale ou não apenas discutir com Beatrice e sua língua afiada.
Respiro fundo, e resolvo que é melhor sair de casa, a ter que ficar olhando pra cara dela após ouvir todos os seus absurdos, onde já se viu, querer ditar a hora em que devo me apaixonar?
"Encontre alguém que você realmente ame para compartilhar a sua vida"
As palavras dela chicoteiam a minha alma, enquanto eu saio batendo a porta, indo rapidamente na direção do mesmo pub onde nos cruzamos pela primeira vez.
"Encontre alguém que você realmente ame para compartilhar a sua vida"
Com a voz repreensiva dela sendo repetida em looping na minha cabeça, eu dirijo rápido pelas ruas agora vazias de São paulo, já que é bem tarde, e ma me importo com as multas que serão geradas pelos tantos sinais vermelhos que estou furando pelo caminho.
Entro no bar, e de longe o mesmo barman da outra noite me olha sorridente enquanto segue seu habitual malabarismo com a coqueteleira, sento-me à sua frente ainda com o pensamento na frase da Beatrice, e movido pelo tapa sem luvas que ela me deu, peço uma dose de whisky puro, que bebo em um gole só, ainda com a imagem dela pairando na minha cabeça:
"Encontre alguém que você realmente ame para compartilhar a sua vida"
Eu, no auge dos meus trinta e um anos, e sendo um Bon Vivant assumido, me recuso a ouvir de uma garota bem mais jovem que eu, e que teve uma péssima experiência, que eu preciso amar.
Quem ela pensa que é?
Ela fala de mim, mas quanto de amor próprio falta em uma mulher para se submeter a um contrato de casamento apenas por dinheiro? Bem, nesse ponto eu preciso admitir me mesmo que eu ache que lhe falta amor próprio, ou que talvez ele tenha sido minado pela convivência com seu ex traidor, ao menor o exercício do altruísmo se mantém firme quando ela, movida apenas pelo amor por sua mãe, aceita se submeter a algo tão surreal apenas para ver sua mãe bem.
À minha frente, duas garrafas de whisky vazias e mais uma pela metade, assim como o olhar atento - e preocupado - do barman, me fazem pensar que talvez eu tenha bebido demais. Mas quer saber?
Que se foda!
-Garçon, por gentileza - falo com a voz enrolada - Peça pra o dj tocar o graaaaande Jon bon Jovi, por favor - peço fazendo sinais exagerados com as mãos
-Claro senhor, qual música? - o homem me observa atento e segue até a velha vitrola do fundo do bar, colocando Misunderstood pra tocar, enquanto eu cantarolo com a voz enrolada
Você chorou, eu morri
Eu deveria ter calado minha boca, as coisas pioraram
Enquanto as palavras escorregavam pela minha língua, elas soaram estúpidas
Se esse velho coração pudesse falar, diria que você é a única
Pensando bem, eu estou perdendo tempo
Estúpido.
É assim que eu me sinto tomando a última dose na minha terceira garrafa enquanto me xingo lembrando de como eu fui babaca com a garota sem a menor necessidade.
-Amigo, me vê mais uma garrafa! - peço e ele nega
-Me desculpe, senhor - ele fala - Nós já passamos do horário de fechamento, e o senhor não tem mais condições de beber. - ele me encara sério - Tem alguém que possa vir buscá-lo?
Penso, penso, e movido pelo álcool, verbalizo o único nome que me vem na cabeça agora:
-Beatrice, chama a Beatrice! - Falo com a voz carregada de culpa
-A Beatrice que estava com o senhor no outro dia? - eu assinto e o homem simplesmente sai, me deixando curioso sobre como ele vai localizar ela, se eu apenas lhe falei o primeiro nome.
Ou será que eu dei seu telefone e não lembro por causa do álcool?
Minha cabeça agora gira muito, e eu mal consigo ficar de pé, quando ouço ao longe as músicas soando confusas no ambiente, e a única frase que me vem à cabeça, é a que foi dita por ela mais cedo...
"Encontre alguém que você realmente ame para compartilhar a sua vida"
Nem sei quanto tempo eu fico esperando no bar, enquanto penso que se fosse eu no lugar dela, iria mandar a jogarem em um taxi qualquer, já que depois do tanto de besteira que ela teve que ouvir, era exatamente o que eu merecia.
Mas ela não é assim!
Ela é doce, tão doce quanto o cheiro frutado do seu perfume de macadâmia que é tão real que eu consigo senti-lo aqui e agora.
-Meu Deus Leonardo! você está péssimo! - ouço sua voz ao longe - Consegue se apoiar em mim? - assinto sem conseguir verbalizar, e a abraço, inalando seu perfume enquanto ela vai até o meu carro, destravando o mesmo e me colocando no banco do carona.
O resto da madrugada se resume a lampejos confusos de memória, já que eu durmo no carro, mas acordo apenas de cuecas, deitado na cama do hotel, enquanto Beatrice segura uma xícara de chá e alguns comprimidos, que eu agradeço imediatamente, tamanha é a dor de cabeça que estou sentindo
-Obrigado, Beatrice - falo sem graça e ela nega - Você não tinha a menor obrigação de ir me buscar, obrigado mesmo.
-Está tudo bem, Leonardo, toma o chá e os remédios, se não você vai ter uma ressaca terrível ao acordar - ela me entrega a bandeja - cuidado com o chá, ele está quente. Se precisar de mim, estarei deitada no sofá, boa noite.