Naquela sexta-feira, 28 de fevereiro de 1992, a grande preocupação entre as mulheres da família de Waldo era a previsão do tempo para o dia seguinte.
No sábado iriam festejar o aniversário de 60 anos do patriarca da família e queriam fazer boa figura com suas vestes. Waldo nascera em ano bissexto e sendo assim, apenas solenizavam esse evento de quatro em quatro anos.
Na mesma ocasião, também seria homenageado em seu emprego numa grande instituição bancária. Eram 42 anos de trabalho e dedicação, onde começou como contínuo, chegando ao cargo de Diretor Comercial. Receberia de seus patrões, placas alusivas a tais méritos e um relógio de pulso banhado a ouro.
A festa seria no salão de um suntuoso bufê, num bairro nobre da cidade de São Paulo. Pessoas da alta sociedade iriam participar dela, daí a tamanha preocupação das senhoras com seus trajes. O sábado amanheceu com chuviscos, mas logo o sol dominou o dia. À noite, como previam os especialistas, foi de tempo firme e agradável, para alegria e alívio das damas tão aflitas com a apresentação de seus penteados, maquilagem e vestidos.
Em breve discurso de agradecimentos, Waldo brincou com seus antigos colegas, lembrando que na segunda-feira já receberia seu primeiro salário como aposentado. Durante a entrega do lindo relógio, um dos presentes pergunta para Waldo:
_ Quer que eu já acerte a hora para o horário de verão?
Ao que ele responde:
– Não, eu nunca mudo meus relógios.
Ele resolveu retirar-se de suas atividades, pois se iniciavam modernidades no meio bancário e ele temia tornar-se superado pela tecnologia.
O regozijo durou a noite toda, os últimos convidados se foram às 6h da manhã. O domingo foi preguiçoso e o telefone de Waldo não tocou uma única vez, sinal que a ressaca fora grande.
Na segunda-feira Waldo acordou cedo, a ansiedade o dominava.
Seu primeiro salário como aposentado seria infinitamente menor, comparado à sua remuneração na ativa. Tudo era novo, entrar em um Banco como cliente e não como funcionário. Pretendia estar na agência assim que essa abrisse e para sua sorte, para o pagamento dos aposentados, ela abria às 9h, uma hora antes do normal. E como imaginava, após uma noite cheia de ansiedade no dia seguinte, lá estava ele assim que a porta giratória do Banco foi aberta, uma surpresa desagradável, facínoras mascarados adentraram ao estabelecimento, fizeram de reféns os idosos e funcionários.
Waldo, de temperamento forte, reage ao assalto e é golpeado com uma coronhada. Ao cair, bate a cabeça na quina de uma parede. Os ferimentos foram grandes. O assalto dura por volta de cinquenta minutos. Fora da agência ninguém percebe nada, nenhum alarme é disparado. Ao sair do local, um dos meliantes ainda atira em um idoso de mais de 80 anos, o tiro não é fatal e ele é levado ao pronto-socorro, dias depois recebe alta médica.
Agora Waldo, ainda atordoado, está em um corredor esfumaçado.
Sua primeira impressão é de que alguém abriu o lacre de um extintor de incêndio, tal a quantidade do que parecia ser fumaça.
Observando mais atentamente ele se dá conta que aquilo são nuvens
Ele logo pensa:
_O que estou fazendo nas nuvens?!
Adentra um salão enorme que lembra uma repartição pública, onde existem vários guichês de atendimento e letreiros indicando nacionalidades diferentes. Aproxima-se da placa onde está escrito "BRASILEIROS".
Sua primeira pergunta é:
_Para que serve essa fila?
Como resposta ouve:
_ Amigo, estamos momentaneamente no céu e dependendo do que consta na sua ficha, você pode subir ou descer! Responde o "atendente" fazendo um sinal de dois chifres na testa.
Waldo balbucia:
_ Você quer dizer que eu morri?!
E o outro confirma:
_ Sim amigo você não se lembra de nada?
Waldo atônito lembra-se de ter sido empurrado por um dos bandidos dentro do Banco e resolve obter mais detalhes:
_Então não seria melhor mudar de fila? Esta está muito curta.
_Nada disso amigo, quem fará essa triagem serão os anjos Brasileiros e aqui, no dia que tem papel, não tem caneta, no dia que tem carimbo, não tem almofada com a tinta. Acredite, seremos os últimos a serem atendidos.
Não restando outra opção, Waldo resolve esperar.
Dias depois, apavorado pela lentidão na triagem do "sobe", Waldo recebe ordens para entrar em um salão todo em mármore. Ali, um senhor idoso, de barbas e cabelos brancos, tirava um cochilo sentado em uma poltrona. Waldo cuidou para não o acordar. Horas mais tarde, o idoso desperta.
_Quem é você? _pergunta ele.
_Sou Waldo, levei uma coronhada na cabeça, imaginei estar em um hospital, mas vejo que me enganei.
_É meu caro Waldo, você está no céu e olhe que fazia dias que não aparecia ninguém por aqui. _comenta o simpático velhinho.
_Como assim, não morreu mais ninguém? indaga Waldo.
E o idoso às gargalhadas responde:
_Não meu caro, a maioria nem passa por aquela porta, vai direto para baixo. O criador está com depressão por ter colocado o ser humano para habitar a terra. Estão indo direto para às profundezas, sem escala e ainda reclamam que lá é muito quente.
Waldo quer ganhar a simpatia do "velhinho" e pergunta:
_Qual é o seu nome meu velho anjo?
E a resposta:
_Não, eu não sou anjo, mas sim o guardião das chaves do céu.
E Waldo continua:
_Então o senhor é São Pedro?
Ao que Pedro responde com um largo sorriso:
_Poderia lhe dizer que sim, mas não gosto ser chamado Santo, julgo que apenas nosso chefão deva ser assim intitulado.
_E como então devo chamá-lo? _questiona Waldo.
_Por Pedro, simplesmente Pedro.
Ai, Waldo já se sentindo amigão, solta:
_Sei, lá na terra eu tinha um conhecido com esse nome e não me dava bem com ele, se não for muito atrevimento, posso chamá-lo de Pedrão?
_Claro que sim, mas vamos aprazar desse modo, sempre longe dos demais, tem muita gente abusada e prefiro nesses casos ser mais austero.
_Sabe Pedrão, eu acho que houve um engano em seus registros, jamais tive uma única indicação de que estaria chegando o meu dia, tem como conferir isso?
Com um olhar recriminador, Pedro lhe diz:
_Vocês lá na Terra em breve irão ter máquinas que poderão prestar essas informações de forma instantânea, aqui ainda usamos alfarrábios. Vale o que está escrito. Vou pedir a um querubim para investigar e dirimir suas dúvidas. Agora vamos ver o que ocorre lá embaixo.
Pedro leva Waldo para outro lado do salão e com um simples gesto aciona algo que lembrava uma tela de cinema. Nela são transmitidas as imagens da cerimônia de cremação de Waldo. Presentes, todos os familiares, amigos e até antigos clientes, a comoção era verdadeira, o que leva Pedro a comentar:
_Estou neste cargo há milhares de anos e jamais vi um banqueiro ser tão querido, parabéns.
Segue-se um breve silêncio, quando Pedro avisa:
_Vou adiantar um pouco o tempo, vamos ver como estão reagindo seus familiares.
Um leve sinal seu e a cena muda. Na mesma agência em que Waldo fora morto, sentada diante do Gerente, estava sua esposa Morgana, aguardando para receber o seguro de vida milionário que ele havia feito em seu nome.
Ela sorri com as gentilezas que o funcionário lhe dedica e Waldo perde a compostura dizendo:
_ Que é isso aí, o gerente está se engraçando com a minha mulher? Veja só ele beijando as mãos dela!
Pedro argumenta:
_Olhe direito, parece que é ela quem está se insinuando.
. _Nada disso! Eu ensinei tudo o que ele sabe de banco e esse camarada sempre foi assanhado com as mulheres!
Transtornado com o que vê, Waldo se atreve a fazer uma proposta:
_Pedrão, se não for lesivo ao regulamento, quero lhe pedir um favor.
_Diga e veremos o que é possível fazer.
Waldo respira fundo e diz:
_Quero voltar à Terra, nem que seja por 10 minutos.
_Isso é altamente irregular, mas o que faria nesses 10 minutos? _perguntou Pedro.
_Quero voltar exatamente ao momento em que eu contratava essa apólice de seguros e mudar a agência pagadora, assim, essa cena não acontecerá.
Pedro fica momentaneamente pensativo, e pergunta:
_Quando foi que você fez o seguro?
_Dois meses atrás. _responde Waldo.
_Certo meu caro. Dez minutos na Terra representa menos de um milésimo de segundo por aqui, vou aforar, mas olhe lá, só 10 minutos.
Lesto, Waldo está de volta à Terra e na agência, mas se desespera ao perceber que não havia levado em consideração o mês de fevereiro com 29 dias. Ele estava adiantado em um dia, não havia feito a apólice, logo não poderia mudá-la.
Waldo pensou rápido, só teria 10 minutos. Chamou o corretor de ações e comprou dele a mesma quantia que sua esposa receberia em dinheiro. Com essa compra ela receberia ações e não dinheiro, logo não seria atendida por aquele gerente que segundo ele, se engraçara com Morgana. Efetua um empréstimo para pagar pela compra das ações e, emite um cheque que será cobrado no mesmo dia do crédito de seu seguro, zerando a conta.
Waldo está de volta. Pedro o recebe com um sorriso e indaga:
_Correu tudo bem?
_Nada Pedrão, cheguei um dia antes. Só me restou a opção de comprar ações com o dinheiro que ela receberia de meu seguro. Melhor, pois assim ela poderá vendê-las em outra agência.
_Então ainda temos tempo _afirma Pedro.
_O querubim ainda não retornou com o seu alfarrábio, ele foi brasileiro e você bem sabe como estes são lentos, vamos ver o que vai acontecer.
Novo gesto e lá está o evento que buscam, Morgana em frente ao corretor de ações, igualmente se derramando em sorrisos e charme, enquanto ouve dele:
_Senhora, seu falecido marido entendia muito de ações, pois elas valorizaram mais de 20% desde a data de sua compra, parabéns!
_Para, para, para! _grita Waldo
_Tudo de novo, só tem galanteadores na Terra?
Pedro novamente discorda:
_ Meu caro, não tive essa impressão.
_Vamos fazer o seguinte Pedrão, não tive culpa, nem você, mas voltei no dia errado, acho que mereço uma nova oportunidade, quero voltar novamente.
_Ainda vou ser rebaixado. _ murmura Pedro.
_Mas está certo, ambos erramos, vai ver direitinho data e hora. Está pronto? Então vai.
Agora sim, Waldo estava na agência certa, na hora certa, tudo como queria, mas a insegurança o faz mudar de ideia e simplesmente muda a beneficiária.
Retirou o nome de Morgana e colocou sua mãe como a favorecida.
Waldo retorna lépido.
_Vejo que deu tudo certo. _ diz Pedro.
_Acho que sim, vamos conferir?
Novo gesto, novas imagens. Lá está Altina, a mãe de Waldo, entrando na agência. Desesperado ele implora para parar a cena. Sua mãe entrara no Banco abraçada a um rapaz, minimamente 50 anos mais jovem que ela e que fatalmente só estaria em sua companhia visando ajudá-la a gastar o dinheiro do seguro.
A alegria de Waldo dá lugar a um enorme desânimo. Pedro se comove. _Também não gostei do que vi, volte já para lá.
Tudo certinho e sem erros, agora Waldo altera os beneficiários, retira o nome de sua mãe e coloca o dos seus seis filhos.
Pedro está aborrecido com a demora na resposta do querubim e para entreter Waldo, ele o convida para seguir vendo o futuro.
Na tela, outra desilusão. Em frente à agência bancária, um congestionamento de carrões importados, comprados pelos seis filhos de Waldo, cada um com o seu. Eles já haviam "torrado" todo o dinheiro antes mesmo de recebê-lo.
Waldo decepcionado com o que vê, tem um mal súbito. Desfalece e ao cair, bate a cabeça num banco de mármore, os ferimentos exigem cuidados.
Waldo acorda no leito de um hospital, onde esteve em coma por alguns dias, com a cabeça e o braço enfaixados. Ao seu lado Morgana e seus filhos.
Feliz, ela comenta:
_Amor, que bom que foi só um grande susto, agora você está bem!
_O que aconteceu? _pergunta ele.
Morgana pacientemente explica tudo a ele:
_Naquela segunda-feira quando você foi receber seu primeiro salário como aposentado, sua intenção era de ser o primeiro da fila. Acontece que estamos no horário de verão, com uma hora adiantada. Você nunca, ano nenhum, adiantou seu relógio. Foi isso que o salvou.
_Por quê? _pergunta Waldo.
_O primeiro senhor que estava na fila foi morto por bandidos.
_Como foi isso?
_No momento em que a agência abriu às 9h, um senhor de mais de 80 anos entrou pela porta giratória e com ele entrou um dos assaltantes. O idoso reagiu, levou uma coronhada, caiu, bateu a cabeça na parede e morreu.
_E eu por que estou aqui?
_Você chegou lá achando que eram 8h50, mas já era 9h50, bem no momento do fim do assalto. Houve um encontrão entre vocês e lhe deram um tiro no braço. Esse hematoma na cabeça deve ter sido quando caiu no chão.
Três dias depois Waldo recebe alta. O médico faz inúmeras recomendações a ele e comenta que era normal em alguns casos, quando o paciente volta do estado de coma, ter a impressão de que esteve em outros lugares, mas que isso logo passaria.
Waldo acredita piamente que tudo o que lhe ocorreu era criação de sua mente em razão do estado de coma, apenas alucinações.
Dias depois, recuperado, volta às suas atividades de aposentado e resolve comprar frutas no supermercado próximo de sua casa. Por comodidade vai de carro, ao parar em um semáforo vermelho, recebe de um senhor bem idoso, barbas e cabelos brancos um folheto com os dizeres:
"Você estava certo, não era o seu dia e lá vale o que está escrito".
Waldo levanta os olhos buscando pelo ancião, mas já não o encontra mais.
Volta a olhar para o folheto onde agora, existe apenas a propaganda de uma grande seguradora. Por muito tempo essa cena rondou seus pensamentos, mas ele se lembrava da afirmação do médico, era efeito dos remédios e do coma.
Certa manhã, Waldo assistia a um programa de TV cujo tema era a Bolsa de Valores e um dos comentaristas afirma:
_Não é toda semana que as ações sobem mais de 20% no seu preço, como havia acontecido dias atrás.
Waldo estava sem ler os jornais dos últimos dias e curioso e incrédulo, constata abismado que as ações que ele teria comprado em seu momento de volta à Terra, eram as mesmas divulgadas na notícia, as mesmas valorizadas em mais de 20%.
Seu pensamento distante é interrompido por Morgana que lhe pergunta:
_Você não vai mandar arrumar o relógio que quebrou no dia do assalto?
Ele olha para o mostrador onde os ponteiros estão parados e marcando exatamente 8h. Tirando o relógio do pulso observa uma gravação na tampa traseira, uma senha do Banco, com o número P 001, data de 02 de março de 1992.
Confuso Waldo seguia incrédulo, não aceitava a possibilidade de ter mesmo morrido.
Na semana seguinte recebe uma ligação do banco e o gerente lhe pergunta.
_Waldo onde quer que eu aplique o dinheiro que sobrou de sua compra de ações, elas valorizaram 20% em poucos dias. Abismado ele se lembra que para cancelar essa compra ele não teria voltado.
A sorte de Waldo. Lá vale o que está escrito
FIM – Tito Cancian
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