Capítulo 2 2

Dois dias se passaram, era após o almoço. Ela apareceu lá em casa, foi de súbito, pois tinha poucos dias para estar junto com os meus, não podia perder tempo se quisesse algo para meu livro. Então a chamei para que se quisesse contar logo a sua história, ela aceitou de prontidão. Fiquei com o coração acelerado e aquecido, tão quanto estava o tempo naquele momento, quente e úmido. Fosse o que fosse, seria difícil ouvir qualquer coisa penosa sobre meu irmão.

Dirigimo-nos para o quintal da casa deles, era um lugar bonito, com vários pés de açaí. Sentamo-nos em duas cadeiras, uma de frente para a outra. Liguei meu celular e pedi que começasse a contar o que quisesse. Ela começou:

Por muito tempo me calei, fui submissa, mas agora quero contar a minha história. Quero contá-la para que outras não cometam o mesmo erro que o meu: de silêncio e submissão. Meu nome é Rose, nunca tive uma vida fácil, meu pai era alcoólatra, violento e por diversas vezes fui vítima de sua truculência, deixava muitas vezes faltar comida em casa. Eu tinha doze irmãos, e uma vida com muitas privações por causa da pobreza. Minha família vivia em uma vila no município de Ourém, conhecida como Riacho. Morávamos em uma casa de barro.

Meu pesadelo começou quando eu tinha doze anos, por volta de 1992. Havia uma fazenda onde sempre ia pedir comida ou algum trabalho para que pudesse comprar comida. Algumas vezes conseguia trabalho e como paga me davam comida. A fazenda era Manoel Domingos, como todos chamavam. Mas não era a família dona da fazenda que lá me acolhia e sim a família do vaqueiro. O que mais queria vida era poder fugir da truculência de meu pai, da pobreza amarga, ter liberdade, sentir e ser de fato uma mulher. Tinha vontade de poder me maquiar, me vestir melhor. Em momentos de fragilidade somos presas fáceis.

Ao dizer esta parte do relato, parou um pouco, seu olhar transmitia tristeza, vez ou outra parava para dar um pigarro. Continuou: Até que a mulher do vaqueiro tentou me convencer que para sair dessa situação só havia uma alternativa: me casando com o filho dela. E de fato me convenceu. Encontrava-me desesperada com a situação de minha família tanto da miséria, quanto do alcoolismo e da violência do meu pai. Vivia triste, abatida, queria ter coisas de mulher. As vezes desejava ter uma roupa nova, um calçado novo, maquiagem. Mas, na prática usava roupa já usada de minha mãe, de minhas irmãs. Casando, talvez pudesse ter tudo isso, pois meu marido me daria. E por isso, aos poucos, deixei-me levar pelas investidas acobertadas pela mãe do rapaz. Ele era mais velho que eu, mas não muito, em torno de cinco anos. Por eu ainda ser muito nova, dificilmente meus pais aceitariam. A única solução foi nos relacionarmos às escondidas. E foi o que aconteceu. A mãe dele vivia me dizendo que eu iria me sentir melhor, mas acolhida se tivesse um homem; no caso, um marido!

Eu estava entrando na adolescência; ele, já era quase adulto com seus dezessete anos. Tinha altura mediana, era moreno, nariz meio achatado, cabelo crespo. Vestia-se de forma simples. Certa vez teve uma festa lá na vila do Riacho. A noite já ia adiantada, os galos começaram a cantar. Então resolvemos fugir naquela madrugada. Saímos à pé cambaleando aqui e ali, feitos dois loucos pela madrugada na iminência do dia. Naqueles tempos fazer isso era o mesmo que se casar. A partir daquele dia fomos morar nas dependências da fazenda, em uma casinha simples.

Em menos de um mês ele mudou completamente, chegava violento com raiva de tudo e descontava toda raiva em cima de mim. Começou com puxões no cabelo, depois começou a me dar tapas e as coisas foram só piorando. Muitas vezes apanhava gratuitamente. Sem abrir a boca para nada, ele chegava e me esbofeteava. Batia-me com qualquer coisa que tivesse na mão: Chinelo, com o lado do facão, corda, cipó, etc. Meu mundo desabou, mas acreditava que ele poderia mudar, que esta situação era passageira. Procurei me culpar, mas não achava culpa. A maquiagem que sonhara, deu lugar as marcas roxas de tapas e socos.

Pedi para dar uma pausa para respiração. Parei de gravar. O dia estava lindo, todavia, era a hora das trevas, depois do almoço. O ambiente era debaixo de uma plantação de açaí. Durante esta pausa, fiquei pensando no dia em que a vi pela primeira vez. Eu estava jantando quando meu irmão chegou segurando-lhe pela mão para apresentá-la, já como esposa, para a nossa família. Ela chegou tímida e desconfiada. Dias depois foram morar em uma casinha de barro batido em uma rua atrás de casa na vila de Igarapé Grande no município de Capitão Poço. A referida vila do Riacho de onde provinha ficava no município vizinho, Ourém. A casa em que foram morar era de apenas um cômodo e um pequeno quintal. A renda consistia em um benefício pago pelo governo (o bolsa família) e o trabalho do meu irmão na roça. Aos poucos ia acontecendo o seu desvelamento. Descobrimos que ela tivera sete filhos, mas que apenas cinco haviam sobrevivido, mas como haviam morrido, ninguém sabia. Apenas que morreram ainda crianças.

Diante do desconhecido, é comum surgir especulações. Foi trazendo, aos poucos, seus filhos - Todos homens (ainda meninos). Muitos comentavam sobre a loucura do meu irmão, de unir-se com uma mulher já velha e cheia de filhos. Pioraram as coisas quando um homem surgiu e começou a ameaçar e perseguir meu irmão. Era o ex-marido, famoso por ser um homem demasiadamente violento. A vila inteira ficou revoltada com tal situação. Que meu irmão havia enlouquecido por suportar tal situação de calamidade. Após a pausa, retornamos à gravação, ela continuou, mas logo tivemos uma nova interrupção, pois a memória do celular encheu. Mudei o modo de armazenamento do celular do cartão SD para a memória interna e assim continuamos.

            
            

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