Olhando para o computador a minha frente suspiro percebendo que não vou conseguir fazer nada de útil com essa tela embaçada, não que ela esteja suja, mas minha visão não me deixa ver uma linha que esteja a minha frente. Só queria ir para casa e passar o resto do dia na cama, mas isso não é possível agora, tenho trabalho a fazer e não é nem meio dia ainda.
Continuo olhando para o computador decidindo o que farei primeiro, então opto por responder alguns emails pendentes. Eles se tornaram mais frequentes esse mês depois que a clinica teve uma matéria especial na TV. Todo mundo está muito eufórico com isso, é a realização de um sonho. Nosso sonho.
Estou tão concentrada que quase caio da cadeira quando a porta da minha sala é aberta e invadida por alguém.
- Preciso falar com você. - Antes que eu possa falar qualquer coisa ou contestar a repentina invasão ela continua. - Tenho só uma palavra para você: Férias.
Beatriz está parada a minha frente de braços cruzados, em uma posição autoritária que indica que ela está muito zangada com alguma coisa, mas eu logo vou descobrir o que.
- Tá bom. Se você quer férias, por mim tudo bem, acho que você merece mesmo um descanso.
Me volto mais uma vez para o computador agora abrindo um novo e-mail.
- Não me venha com gracinhas, doutora Emilly. - Me recosto na cadeira olhando-a com mais atenção.
Beatriz não mudou muita coisa nesses últimos anos, continua igualzinha, ainda com os mesmos cabelos cacheados, muito ranzinza e engraçada, sempre moleca e aprontando com todo mundo e é minha melhor amiga e companheira em tudo. Exceto que agora é noiva e tomou rumo na vida com Jhonatas.
Quem diria não é mesmo?
- Odeio quando me trata assim, Doutora Beatriz. - A encaro desafiadora por cima do meu óculos de grau. Ela bufa sentando na cadeira a minha frente.
- Você sabe do que estou falando Milly, a três anos você não sabe o que é descansar. Passa o dia e se deixarmos a noite trancada nessa clínica. Você também precisa descansar.
A mais ou menos três anos resolvemos abrir nossa clínica. Estávamos formadas e tínhamos um projeto e em pouco tempo colocamos ele em prática. No início foi bem difícil e quase desistimos, mas aqui estamos nós, tendo reconhecimento nacional. Todo nosso esforço valeu a pena quando começamos a ver vidas sendo salvas através do nosso trabalho.
Beatriz e eu fizemos psicologia clínica juntas, ao abrirmos a clínica tínhamos como objetivo ajudar os nossos jovens que lutam todos os dias contra depressão, ansiedade, transtornos bipolares, transtornos alimentares e entre tantos outros. Mas a gente viu que queríamos mais, então entramos em contato com nossos colegas de faculdade e recrutamos mais pessoas, mais médicos de diferentes áreas para nossa luta.
Mas o que faz um psicólogo clínico? Bom, diferente do que a maioria das pessoas acham, um psicólogo é bem mais do que sentar, ouvir e dar alguns conselhos. Psicologia clínica é a área da psicologia dedicada ao estudo dos distúrbios mentais, seus sintomas, causas, tratamentos e intervenções psíquicas. É exatamente isso que temos feito todos os dias, escutamos cada um de nossos paciente, ouvimos suas histórias e a partir daí estabelecemos um diagnóstico, só então os orientamos em como buscar alívio emocional, em como eles podem se conhecer melhor e consequentemente, como eles podem lidar com seus anseios e sentimentos de forma mais tranquila e saudável.
Voltei minha atenção para Beatriz que me olhava com uma sobrancelha arqueada.
- Eu sei. Porém não posso tirar férias agora. Temos alguns compromissos marcados, tenho meus pacientes. Não posso simplesmente largar tudo e viajar.
- Essa é a questão. Você tem vívido para o trabalho. Olha só para você, está com uma cara péssima, parece não dorme direito a dias. - A desgraçada sabe me analisar bem. - Tem tido pesadelos, não é?. - Me limito a assentir, minha cabeça não parava de latejar. - Viu? Você precisa de descanso, e não é como se a clinica fosse ficar entregue as moscas. Eu estou aqui, temos uma equipe incrível e preparada que pode dar conta de tudo enquanto você estiver descansando.
Relaxo meu corpo na cadeira suspirando. Eu sei que ela tem rasão, mas não sei se é o momento para me afastar de tudo. Me sinto um pouco sobrecarregada, o trabalho tem sido minha válvula de escape, quando estou aqui esqueço de tudo. Esse lugar me faz bem, aqui eu posso ajudar pessoas. Sem falar da equipe que se tornou uma família para mim. Mas um descanso seria bem vindo, não lembro qual foi a última vez que dormi uma noite inteira. Olho para Beah que me encara com olhar avaliativo, tenho certeza que ela está tentando imaginar o que se passa por minha cabeça.
- Ta bom. Vou pensar sobre isso. - Me dou por vencida fazendo ela soltar todo ar dos pulmões.
- Já é um bom começo. Então vá pensar em casa, você está com uma cara horrível. - Abro a boca para protestar, mas ela é mais rápida já sabendo o que eu iria dizer. - Nada de mais, pode deixar que eu cuido dos seus pacientes de hoje. Tente dormir um pouco.
Não vai adiantar discutir com ela, nem tenho argumentos para isso. Beatriz levanta vindo ate mim para me abraçar. Retribuo seu abraço apertado. Ela não deixou de ser a minha irmã protetora mesmo após esses anos, pelo contrario, seus cuidados redobraram. Sempre que pode esta me dando uns puxões de orelha.
- Eu só quero seu bem, te ver feliz novamente. - Suspiro já prevendo suas próximas palavras. - Você precisa sair mais para se divertir, conhecer pessoas. Não me lembro qual foi a última vez que te vi com alguém legal. – Fecho meus olhos por breves segundos. Ela pega minha mão me fazendo encara-la. – Já se passou bastante tempo Emilly, eu sei o que tem feito. Tem feito desse lugar seu escape. Mas eu não vou mais deixar que isso aconteça, já está na hora de você começar a viver novamente.
A abraço novamente sentindo minha garganta doer. Aquela maldita vontade de chorar me invadiu denunciando o quão frágil ando nos últimos tempos.
– Eu amo você, Emilly. Não vou deixar que você viva mais dessa forma.
– Eu também te amo. – Saio dos seus braços para olhar em seus olhos.
– Então se organize. Vou lhe ajudar, daqui duas semanas você sai de férias.
E sem deixar que eu fala nada ela sai me deixando sozinha naquela sala.
E se ela tiver rasão? E se eu realmente precisar conhecer outras pessoas? Não que eu não tenha tentando, pois eu tentei, mas não deu muito certo. Porém está na hora de recomeçar de novo.
Apos algum tempo perdida em meus pensamentos, arrumei minha sala para ir embora, tudo que mais preciso é de um banho e minha cama. Vou ser um novo ser humano depois de dormir algumas horas. Saio da minha sala começando a andar pelo amplo corredor do segundo andar da clinica, algumas pessoas sorri para mim ou me cumprimentam. É inacreditável todo trabalho que conseguimos fazer nesses três anos. Olho para algumas salas onde algumas crianças brincam enquanto enfermeiros e voluntários fantasiados de personagens procuram anima-las. É bom ver que ainda existem pessoas dispostas a fazer o bem sem querer nada em troca.
Quando meus saltos tocam o piso do primeiro andar a primeira pessoa que vejo é o Tiago que conversa com uma das enfermeiras, ele tem uma prancheta em mãos e aponta para ela como se passasse instruções a moça. Um sorriso se expande em seus lábios assim que seus olhos repousam em mim. Ele dá suas ultimas instruções a enfermeira antes de vir até a mim.
- Boa tarde, meu bem. - Me cumprimenta gentilmente enquanto me abraça com força.
- Boa tarde, Tih. - Tento retribuir seu sorriso e seu abraço a mesma altura.
Tiago virou meu braço esquerdo na clinica, obvio que a Beah é o meu direito. Mas foi ele que agarrou a causa junto a nós desde o inicio, nos apoiou e nos ajudou em tudo. Beah e eu estávamos atrás de parceria, eles dois já se conheciam na faculdade ate que ela nos apresentou. Foi paixão a primeira vista. Ele cursava oncologia pediátrica e ficou encantado com nosso projeto e idéias, nem pensou duas vezes para se juntar a nós. Hoje ele é responsável por toda a Ala pediátrica que temos. Sou suspeita para dizer, mas ele faz um trabalho lindo com as crianças.
- Esta tudo bem? - Ele me pergunta ao me soltar. Apenas confirmo com um sorriso fraco. -Tem certeza? Esta com uma carinha tão cansada.
Tiago me olha atentamente. O moço a minha frente é dono de uma beleza invejável, sua pele bronzeada contrasta perfeitamente com seus olhos castanhos escuros e seus cabelos pretos revoltos lisos. Quem olha aquela cara de mal, nem imagina o coração enorme que ele tem. Mas digamos que seus cabelos desgrenhados e sua barba por fazer, não ajuda muito para que tenha uma aparência de bom moço, exceto quando está sorrindo, o que é difícil dele não fazer. Onde quer que seja ele sempre está com um sorriso no rosto. Seu sorriso é contagiante, um dos mais lindo que já vi. Na verdade tudo nele emanava alegria e pureza e as vezes sensualidade.
- Realmente estou muito cansada. Preciso dormir, por isso a Beah me mandou... quer dizer, me expulsou daqui. - Suspiro mais que derrotada recebendo uma risada da pessoa a minha frente. - Por isso estou indo embora para casa.
-Ela esta certa, você realmente precisa descansar um pouco. Tem trabalhado de mais. - Será que todo mundo resolveu ficar contra mim hoje? - Quer fazer alguma coisa mais tarde? Seria bom você se distrair um pouco.
- Acho melhor não, realmente preciso dormir. Podemos deixar para outro dia?
- Claro que sim. Vá descansar. - Ele pega em minhas mãos fazendo com que eu o encare
- Você sabe que estarei aqui para o que for, não é? - Assinto sorrindo. - Então muito bem, qualquer coisa me ligue.
- Obrigada. - O abraço recebendo um afago nos meus cabelos. Me afasto um pouco recebendo carinhosamente um beijo em minha testa.