Capítulo 2 Novos caminhos

PDV: Guilherme

Não foi só uma tempestade passageira. Tempestades nunca são passageiras, elas só vêm para destruir ou causar um grande impacto nas nossas vidas.

Minha mãe tentou, mas meu pai não quis mudar de ideia. Então acabo aceitando a ideia que ela me deu de passar uns dias nessa cidade minúscula e meio rural, até que a raiva do meu pai diminua e eu possa voltar para casa.

Não falo com Nico, Theo, Laura, nem nenhuma outra pessoa, e na verdade nem me questiono se estou fazendo certo ou errado. As pessoas com quem eu mais contei a maior parte da vida ou estavam mentindo ou envolvidos com coisas erradas, caso de Nico. Ele sempre foi tão responsável, como que foi capaz de fazer sua festa numa boate de um ex policial que prometeu que a qualquer confusão chamaria uma tropa? Laura e Theo, tão confiáveis, traíram a mim e à amizade que diziam ter com Nico. Eles só dariam justificativas que pra mim não servem de nada. Não é para existir segredo e traição entre pessoas que se gostam. Aquela sensação de acolhimento e pertencimento que sentia com eles jamais será a mesma. Pensando por esse lado, até deve ser bom me afastar um pouco, mas não para um lugar pequeno e atrasado como a cidade de Petros, que fica a uma hora e meia daqui. Eu gosto das coisas urbanas, da metrópole, prédios altos e modernos, carros e motos, barulho, agitação. Foi assim que eu cresci. Seria bom ir para o exterior, mas nem isso meu pai quis ouvir. Até tento fazer pesquisas sobre Petros, mas nada do que achei parece combinar comigo.

Meus pais saem de casa às 17h30min para um jantar de negócios. Meu pai mal olha na minha cara. Só minha mãe que pergunta se quero comida, mas eu nego. O combinado é que eu saia daqui amanhã cedo, mas mudo de ideia. Rapidamente arrumo uma mala, em que coloco todas as roupas que eu posso precisar, e em uma mochila grande ponho meus livros, cadernos e instrumentos da faculdade. Decido que vou sair agora, sem despedidas, e eu mesmo vou dirigir até Petros.

Esse não é nenhum ato de rebeldia, até porque estou indo para o lugar que eles querem que eu vá, só não quero ficar ouvindo mais sermões e dicas quando na verdade são mais atos controladores. Tenho vinte e um anos e sei cuidar da minha vida, eles aceitando isso ou não. Antes de sair, troco o chip que estava no meu celular, assim não fico com nenhum número antigo de ninguém e se tentarem ligar pra mim, não vão me achar. Apenas anoto meu número novo em um pedaço de papel e coloco no closet de roupas da minha mãe, para que ela ligue se quiser. Ela às vezes é marionete do meu pai, mas sei que se importa comigo, e não merece ficar se preocupando à toa. É hora de colocar novas prioridades na minha vida, e agora minha única prioridade sou eu mesmo. Visto uma calça jeans, camisa branca fina de algodão com mangas e botões, além de um tênis alto preto.

Pego minhas chaves e guardo a mala e a mochila no banco traseiro do meu carro. Verifico a gasolina e o endereço no GPS. Tudo pronto para partir.

Saio dirigindo por ruas familiares até pegar a primeira rodovia das duas que preciso para chegar. Petros é uma cidade montanhosa, fica nos pontos mais altos do estado, deve ser mais fria também... e também não gosto de frio. Mas enquanto dirijo e fico só com minhas reflexões, penso que esse pode ser um momento que sempre quis ter: não vou morar com meus pais, vou poder fazer o que quero sem prestar esclarecimentos a ninguém. Mesmo que o lugar não seja o dos melhores e eu esteja preso a uma faculdade e a um futuro que não quero, é um tempo só meu, um suspiro de liberdade. Tenho que fazer isso mais fácil para mim mesmo.

Tenho meu carro, posso ir a um lugar diferente nos fins de semana sem prova; ainda tenho minha mesada, posso comprar algumas coisas para me distrair. Por dentro estou decepcionado e confuso, mas assim que respirar novos ares e ter meu próprio espaço, vou me sentir melhor. Ou farei o máximo para me sentir.

*

Agora estou na estrada há mais de uma hora. Está escurecendo. O céu é uma mistura de azul claro e escuro. Há poucos carros passando nos dois lados da rodovia, o trânsito é bom. O GPS me indica que daqui a trezentos metros tenho que entrar em um desvio que me colocará na estrada de subida para Petros. Aproximo-me e pego esse desvio. Em três quilômetros estarei na última estrada antes de Petros.

O estranho desse lugar é que ele não é como a rodovia anterior. Ele é escuro e escondido por árvores grandes, sem anúncios e poucos postes de iluminação. Nas laterais da estrada eu vejo um pasto com vacas, fábricas abandonadas e algumas casas bem velhas, uma bem longe da outra, afastadas e cada uma com um terreno atrás, passam a sensação de que são afastadas de propósito. Mas são menos de cinco casas em um grande espaço. Sigo dirigindo, repetindo e fingindo para mim mesmo estar tudo bem, mesmo que a estrada que me leva a Petros não apareça em nenhum lugar no longo horizonte à minha frente. Eu prossigo.

Uns dois minutos se passam, e a estrada não aparece. Eu respiro fundo, já ficando preocupado. Olho para o GPS e me espanto ao ver um detalhe que já devia ter reparado antes.

- Que isso?! - pergunto-me confuso ao ver que o GPS marca que faltam três quilômetros para chegar na segunda rodovia, os mesmos três quilômetros que faltavam quando entrei nesse desvio que o próprio aparelho orientou. É como se eu não tivesse saído do lugar, ou se eu estivesse em um local errado. Mas eu sei que não errei.

Dou uma olhada na estrada para confirmar que não há nenhum obstáculo à minha frente. Estranho somente meu veículo estar passando por aqui. Estico meu braço até o GPS para tentar ver o que posso fazer, mas não consigo segurá-lo com uma só mão e ainda com o movimento do carro, e o aparelho escapa e cai no chão, debaixo do banco do carona.

Está ficando mais escuro. Acendo os dois faróis do carro. Apesar de ainda não ver a estrada que preciso, enxergo mais a frente uma pista de acostamento bem embaixo de um poste de luz branca. Eu decido que é melhor parar para eu procurar o aparelho do GPS e ver o que há de errado, porque eu preciso de ajuda para prosseguir. Olho para os lados da estrada. Não há ninguém nem nada além de uma imensidão verde com as luzes da cidade já muito, muito distante. É, eu preciso parar, mesmo que esse lugar esteja me parecendo bem sinistro.

Estaciono no acostamento e desligo o carro. Desço um pouco minhas costas no banco para que minha mão alcance o chão e começo a procurar pelo aparelho. Não acho rápido e meu pescoço começa a doer. Então mudo de posição: inclino meu tronco pra frente e ponho minha cabeça embaixo do banco de carona, e logo encontro o aparelho. Está perto da porta, minha mão jamais alcançaria na outra posição. Mas agora pego rápido.

O aparelho ainda está ligado, do mesmo jeito que estava quando me orientou a entrar nesse desvio esquisito. Penso que o sinal nesse local deve ser péssimo e pode ter travado o GPS. Decido então reiniciar o aparelho.

Enquanto espero o sistema se reorganizar, olho para o meu lado esquerdo: só vejo mato. Nada além de uma plantação irregular e descuidada, que se estende por toda essa estrada que parece sem fim. O meu lado direito deveria ser mais simpático, mas tudo aqui é tão macabro que nada consegue parecer familiar. Há uma casa branca de dois andares, só sendo possível ver o de cima por conta de um muro alto de concreto; duas janelas e um portão médio de madeira escura, telhas onduladas, há uma grande árvore plantada na parte traseira, com muitas folhas que crescem já para fora do muro da casa. Está tudo apagado e silencioso e tenho dúvidas se mora alguém ali. E na frente dessa casa há um tipo de bar construído, duas colunas finas que não foram finalizadas, cadeiras de plástico encaixadas umas nas outras formando uma torre de cadeiras. Parece um bar pela presença de anúncios velhos de refrigerante e cerveja, e uma tábua de madeira tampa o único buraco, ainda que pequeno, dessa construção. Tão escuro e silencioso quanto a casa à frente.

Entre a casa e o bar, forma-se o que parece ser a entrada de uma rua. Não há asfalto nem nenhuma moradia, só mais um poste de iluminação. Mas de tanto observar, fica a impressão que essa rua ou passagem leva a algum lugar. A luz branca bate no chão, no muro da casa e na parede do bar e forma quase que uma fumaça com os reflexos, o que dá uma impressão muito assustadora. O silêncio e esse abandono só me deixam mais ansioso. Esse lugar parece o próprio fim do mundo. Não sei se Petros é assim, provavelmente há mais movimento por causa da faculdade, mas eu sei que não vou me dar bem em lugares como esse. É perda de tempo. Talvez eu deveria voltar pra casa agora mesmo, pedir perdão e prometer fazer tudo que meus pais queiram.

Espera...

No que diabos estou pensando? Que covardia!

Balanço a cabeça para afastar essas ideias. Olho para baixo, o aparelho do GPS está pronto para funcionar de novo.

- Não pense nisso novamente - digo para mim mesmo assim que começo a configurar o aparelho.

Ponho o aparelho para fora da janela, mantendo-o inclinado para cima e o vejo lentamente encontrar minha localização e se conectar com meu destino. O trajeto permanece o mesmo, mas os tais três quilômetros do início agora é apenas um quilômetro. Não sei porque demorou tanto, mas parece que estou mesmo no caminho certo. Suspiro aliviado. Apoio novamente o aparelho na posição que estava e giro a chave para continuar dirigindo.

Mas o carro não liga.

Estranho. Aperto meus olhos tentando imaginar o que está havendo. Giro novamente a chave, mas de novo o carro não liga. Então eu removo a chave e a ponho de volta... e o carro não liga.

Esbravejo, dou um soco no volante, começo a suar. Eu não entendo o que está acontecendo!

- Era só o que me faltava! - resmungo.

Saio do carro, vou até o capô e levanto a tampa. A luz do poste não é tão forte, mas consigo ver que não tem nada cortado ou fora do lugar, muito menos cheiro de queimado ou de combustível.

Não sei o que fazer, acabei de mudar o número do meu celular, não restou o de ninguém que eu pudesse pedir ajuda agora. Eu sou um imbecil pensando que estou crescendo ou me ajudando, mas eu sempre pioro as coisas. É tanta raiva dentro de mim que eu empurro a tampa do capô com tanta força que o barulho ecoa por todos os cantos desse lugar.

O que eu faço sozinho nesse nada? Estou perdido e sozinho. Acho que sei me cuidar mas talvez meu pai tenha razão e eu seja só um mimado ingrato que sempre recebeu tudo o que quis. Esse era o começo da prova a mim mesmo que eu podia me dar bem sozinho, mas fiz tudo errado achando que estava certo.

Como tudo foi ruir em tão pouco tempo? Sexta-feira estava indo encontrar meus amigos e minha namorada, estava de bem com a vida, contemplando minha cidade, me sentindo acolhido... e agora estou aqui. Eu nem sei onde é aqui, mas é um lugar assustador, no meio do nada; estou sem ninguém, fui estúpido ao me livrar de todos sem pensar que poderia precisar deles. Eu me superestimei muito e já estou me arrependendo. Sou um fracote.

Apoio minhas costas na porta do carro. Passo minha mão pelo cabelo, sinto suor pela minha testa e no couro cabeludo. Tiro meu celular do bolso e entro em todos os aplicativos, a tentativa desesperada de conseguir ajuda mesmo sem nenhuma conexão. Eu realmente não sei o que fazer. Sinto que vou ficar em pânico. Será que devo sentar e esperar algum carro passar, mesmo que não tenha passado nenhum até agora? Só mais uma coisa estranha sobre esse lugar.

- Você precisa de ajuda?

Tomo o maior susto da vida quando ouço uma voz feminina soar atrás de mim, certeza que meu corpo treme todo. Viro-me para trás e ali vejo uma garota... Na verdade uma mulher já. Ela não é muito alta, tem a pele morena, coxas grossas e quadris largos. Não que eu esteja olhando tanto assim, mas ela veste apenas um top preto, que deixa todo o seu abdômen de fora, e um short também preto com algumas linhas brancas. Reparo que há um piercing em seu nariz e há dois piercing em seu umbigo. Seus olhos são castanhos e seu cabelo é tingido de um vermelho bem forte, quase cor de fogo, estão soltos e bagunçados.

- Minha nossa, eu te assustei!? - Ela arregala os olhos e tampa a boca com uma mão.

- Não - respondo. - Eu só...

Não consigo pensar e falar ao mesmo tempo. Olho na direção da casa que estava reparando agora há pouco, ela continua escura e silenciosa. Essa garota não saiu dali, eu teria percebido algum movimento. Do jeito que estou, não seria surpresa se ela fosse só uma miragem.

- Da onde você saiu? - pergunto.

- Eu moro bem ali atrás. Ouvi um barulho forte, pensei que fosse algum acidente. Mas pelo visto não - diz olhando para a frente do carro.

- Infelizmente não. Bem que eu podia ter capotado dentro desse carro - falo.

- Não diz isso, não, moço - ela responde e vem até a minha frente. Reparo que está descalça. - Mas o que foi que houve? Talvez eu possa ajudar.

- Não sei. Não tá pegando. - Dou de ombros.

- Não é a gasolina? - pergunta.

- Não mesmo.

- E o que você está fazendo aqui a essa hora da noite?

- Não é tão tarde assim. Estou indo para Petros. Vou estudar lá.

- O problema não é ser tarde, mas assim que fica escuro essas estradas são muito perigosas. Todo mundo sabe disso, tanto que só você está passando por aqui.

Olho para trás e respiro fundo. Realmente, ainda não passou um só carro desde que peguei esse desvio. Talvez seja por isso que meus pais quisessem que eu só viesse amanhã de manhã. Mais uma vez o idiota está errado. A parte boa é que eu não pareço estar perdido, ela não me corrigiu quando eu disse pra onde estava indo.

- Você conhece Petros? - pergunto-lhe.

- Não exatamente. Sei onde é. Conheço uma pessoa lá.

- Mas esse caminho pelo menos leva até lá?

- Ah, isso sim. Tem vários desvios por aqui. Você deve ser sortudo, pois pegou o pior. - Ela ri.

- Foi o GPS.

- Hmm... - Ela balança a cabeça como se tivesse compreendido a situação toda apenas com essa informação. - Nem sempre essas coisas modernas têm a solução pra tudo.

Não respondo nada. Então nós dois trocamos um olhar de curiosidade, como se um esperasse do outro a próxima palavra ou próximo passo do que fazer. Mas minha mente não formula nada além de pensamentos confusos, um deles sendo o que essa garota está fazendo aqui comigo. Ela então fala:

- Eu vou chamar meu pai. Ele vai saber como te ajudar com o carro.

- Não, por favor, não precisa fazer isso. - Tento impedi-la. - Não quero atrapalhar ninguém.

- E o que você vai fazer? Ficar parado aí? - Ela cruza os braços.

- Talvez... Posso conseguir sinal de internet ou telefonar para algum reboque.

- Entendi...

Ela parece segurar uma risada e então sai andando devagar, ainda com os braços cruzados. Reparo novamente em seus pés descalços. Continuo lhe observando e ela passa direto pela casa escura e o bar abandonado, e segue em reto pela rua enfumaçada pelos reflexos da luz. Em menos de um minuto ela some da minha visão.

Entro novamente em meu carro. Tento mais uma vez ligar, mas não adianta. Inclino um pouco o banco para trás e me deito para relaxar as costas. Seguro o celular e o olho fixamente, como se isso fosse trazer um sinal do além. O máximo que acontece é acender apenas uma das barrinhas, fraco demais para fazer qualquer coisa, e ela também logo se apaga e fica assim por alguns minutos seguintes. A minha opção deve ser somente esperar alguém passar por aqui mesmo, o que pelo visto vai demorar.

Esse silêncio me deixa com sono. Nem mesmo os grilos cantam como nos filmes. Talvez até eles evitem esse lugar. Fecho os meus olhos e espero que qualquer barulho na estrada me faça levantar.

Pouco tempo passa até que eu escute esse barulho. Ouço batidas na janela do carro e, sem nem mesmo ver o que era, saio num pulo de dentro do carro.

É a garota de novo, e trouxe seu pai. Por que as pessoas desse lugar surgem sem nenhum aviso? Meu pedido para não atrapalhar ninguém pelo visto foi ignorado. O pai dela também é baixo e também tem a pele morena, os olhos bem escuros, sobrancelhas grossas, o cabelo cortado bem curto, preto e encaracolado. Apenas veste uma bermuda cinza, está sem camisa, e segura um cigarro que eventualmente leva à boca.

- Qual o problema com seu carro, meu jovem? - ele pergunta. Sua voz é áspera.

- Eu também não sei, senhor. Dei uma parada e ele não ligou mais.

- Já levantou o capô?

- Já. Não tem nada de errado.

- Então o problema não tá aí na frente. Vou ver a parte de baixo pra você - ele avisa e se dirige para a parte de trás do carro.

- Deixa eu ajudar o senhor - digo e vou atrás dele. A filha dele também nos segue, e vejo que está segurando uma caixa de ferramentas.

Então ele se deita no chão e sem nem hesitar coloca metade do tronco para baixo do carro.

- Filha, a lanterna, por favor - ele pede e sua filha obedece. Abre a caixa, retira uma lanterna média mas com uma luz fortíssima, e se abaixa para entregá-la a seu pai. Ele segura e a deixa erguida.

Embora eu esteja aliviado por estar sendo ajudado, é uma surpresa ver pessoas estranhas de um lugar estranho fazendo isso por mim, um outro estranho pra eles. Sempre ouvi dizer que essas pessoas do interior são humildes, mas como ter certeza se eles estão fazendo isso só para ajudar mesmo, ou se estão almejando algo em troca? É difícil saber. Eles nem mesmo puxam um assunto ou trocam palavras, o homem se mantém debaixo do carro, com uma mão segurando a lataria e a outra mantendo a lanterna de pé, e sua filha se mantém ao meu lado também calada, apenas observando o pai.

Passado algum tempo, eu me agacho no chão. Vejo o homem tentar sacudir o carro, deixando a lanterna no chão para usar as duas mãos.

- O senhor encontrou alguma coisa? - quebro o silêncio.

- Tem duas peças soltas aqui, não sei se isso é suficiente para fazer o carro morrer. Mas vamos tentar. - Ele respira fundo e então aumenta a voz. - Renata, pega aquela chave que eu sempre uso.

Eu olho para cima e estico a mão aberta. "Renata" então retira da caixa uma ferramenta que nunca vi antes, não me arrisco a tentar perguntar se é essa mesmo, apenas a seguro e a repasso para o homem rapidamente. Ele não reclama, na verdade começa a utilizá-la a julgar pelos barulhos vindos debaixo do carro. Algum tempo depois, ele pede novamente:

- O martelinho!

E novamente Renata me passa uma ferramenta, dessa vez um martelo pequeno que eu também passo a seu pai. Ouço o som de suas marteladas lentas, mas com pouco intervalo. E logo depois, barulho nenhum. Levanto-me do chão ao perceber que o homem começa a sair debaixo do carro. Ergo minha mão para ajudá-lo a levantar e ele aceita. Logo assim que fica de pé, acende um outro cigarro.

- Como eu disse, tinham algumas peças soltas, pode ser que tenha a ver com o tanque de gasolina. - Pausa para soltar uma baforada de fumaça fedorenta. - É melhor você testar.

Concordo e vou até lá rapidamente. Abro a porta e nem a fecho, só sento logo no banco e tento ligar o carro com a chave. De primeira não pega. Na segunda vez, chora, mas pega. Todo o painel acende e o motor faz barulho. Eu me sinto aliviado.

- Funcionou! - digo animado.

- Então era isso mesmo... Eu só dei uma encaixadinha, é melhor você ver isso com algum profissional logo.

- Nossa, muito obrigado mesmo, senhor. - Eu levanto do banco, mas sem desligar o carro. Tiro minha carteira do bolso de trás da calça e a abro. - Quanto o senhor quer de retribuição por isso que fez por mim?

- Não, meu jovem! - ele ergue a mão esquerda e a balança de um lado pro outro. - Não faço isso pelo dinheiro, não se preocupe.

- Mas estou muito agradecido de verdade, o senhor salvou minha viagem e minha vida. Aliás, vocês. - olho rapidamente para a filha dele. Ela sorri fraco.

- Não precisa agradecer, já me satisfaz saber que te ajudei. - Ele olha para a traseira do carro. - Então você está viajando? - confirmo e ele prossegue. - E aonde quer chegar? Pois eu temo que meu curativo não dure muito ali.

- Estou indo estudar em Petros - respondo e sou surpreendido por uma expressão de desgosto do homem. A filha dele olha para o chão.

- Sei... Então você deve chegar lá - ele responde. - Deve faltar uma hora, no máximo. A estrada é bem ali na frente. - Aponta com a cabeça. - Está escuro. Cuidado com a estrada.

- Eu tomarei. Muito obrigado, senhor...? - Estico minha mão para cumprimentá-lo.

- Ricardo. - Ele aperta minha mão com a sua.

- Certo. Eu me chamo Guilherme.

- Boa viagem, Guilherme! Espero que chegue bem.

- Muito obrigado mesmo. - Volto para o carro e fecho a porta. Ainda falo uma última vez com eles pela janela aberta. - Tenham uma boa noite!

- Boa noite! - só Ricardo responde.

Antes de soltar o pé no acelerador, lanço um último olhar para o rosto da filha de Ricardo, a quem chamou de Renata. Ela tem uma expressão transparente mas ao mesmo tempo misteriosa, como se denunciasse algo de errado mesmo sem falar nada. Eu não sei se o problema está aqui neste lugar bizarro, na relação deles de família, ou até mesmo na minha futura cidade. Agora é tarde demais para refletir, e saio dirigindo sem pensar muito no que acabou de acontecer. A noite chega totalmente, mas junto dela um vento fresco e gelado que entra pela janela e faz meu cabelo voar. Isso serve para me aliviar um pouco, mas o que me satisfaz é ver, alguns segundos após avançar, a estrada de acesso para Petros.

*

Ricardo felizmente acerta. Após entrar na estrada que me foi indicada por eles, eu passo uma meia hora subindo e subindo. Sigo todas as placas. A estrada é apertada e, diferente da outra, não estou dirigindo só. Tem algumas voltas e os vidros do carro ficam embaçado pela umidade desse lugar alto. Petros fica nas montanhas, mas pelo visto também perto de cachoeiras e vales. Eu fico cansado, quase tomado pelo sono, mas fico falando comigo mesmo para me incentivar a seguir em frente pois estou quase conseguindo. E finalmente vejo um grande monumento com os famosos dizeres: "Bem vindo a Petros!".

Dirijo por baixo de um arco e parece que finalmente estou no lugar. Passo primeiro por uma cabine da polícia e algumas casas bem grandes, mas com muros altos e grandes portões que não me permitem reparar muito. Preciso achar um hotel para ficar por enquanto. Essa parte da cidade parece ser residencial e, como já é tarde, está deserta. Mas sigo dirigindo, confiante de que vou achar algo sozinho. Porém, de repente, acontece o que eu menos queria: começa a chover. Está escuro e não consigo me guiar direito por essas ruas desconhecidas. Minhas vistas também estão fracas e cansadas. A única coisa que consigo enxergar é um grande telhado colado a um prédio que está com algumas das luzes acesas. Eu decido e estaciono embaixo desse telhado, desligo o carro e resolvo esperar a chuva passar para tomar qualquer decisão para onde ir.

Enquanto os limpadores trabalham para tirar as gotículas grandes do para-brisa, eu inclino novamente o banco. Ligo o rádio mas nenhuma estação pega, então sou acompanhado apenas pelo som da chuva mesmo. Deito-me no banco e tento respirar fundo...

Hoje foi um dia difícil, e ainda não terminou. Preciso de um lugar para dormir. Mas como a chuva só aperta, mantenho minha decisão de esperar aqui dentro. Por fim, o cansaço me vence. Acabo adormecendo.

            
            

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