Capítulo 2 Monumento de pedras 1

O sr. Crook veio me buscar, como combinado, pontualmente às sete horas da manhã seguinte. - Assim poderemos pegar o sereno nos botões-de-ouro, não é, menina? - disse ele, piscando para mim como um velho galanteador. Veio numa motocicleta, aproximadamente da sua própria idade, para nos transportar ao campo. As prensas de plantas estavam cuidadosamente amarradas às laterais de sua enorme máquina, como para-choques de um rebocador. Foi uma lenta excursão pelo campo tranquilo, ainda mais sossegado em contraste com o ronco estrondoso da moto do sr. Crook, repentinamente silenciado.

Descobri que o velho senhor realmente possuía um grande conhecimento das plantas locais. Não só onde elas podiam ser encontradas, mas suas propriedades medicinais e a maneira de prepará-las. Lamentei não ter levado um bloco de anotações para registrar tudo, mas ouvi atentamente a voz entrecortada e procurei gravar as informações na memória, enquanto guardava nossos espécimes nas pesadas prensas. Paramos para fazer um lanche ao sopé de uma curiosa colina de topo plano. Verde como a maioria de suas vizinhas, com as mesmas saliências e escarpas rochosas, tinha algo diferente: um caminho bem usado que subia por um dos ancos e desaparecia bruscamente atrás de um aoramento de granito. - O que há lá em cima? - perguntei, apontando com um sanduíche de presunto. - Parece um local difícil para um piquenique. - Ah. - O sr. Crook olhou para a colina. - Essa é a Craigh na Dun, menina. Eu pretendia mostrar-lhe depois do lanche. - É mesmo? Há alguma coisa especial a respeito desta colina? - Ah, sim - respondeu ele, recusando-se a dar maiores detalhes e dizendo meramente que eu veria quando chegasse lá. Eu tinha algum receio quanto à sua habilidade de subir um caminho tão íngreme, que logo se desvaneceu quando eu me vi arquejante, seguindo em seu rastro. Finalmente, o sr. Crook estendeu a mão e puxou-me para cima da beira do monte. - Aí está. - Fez um gesto amplo com a mão, como se fosse o proprietário. - Ora, é um monumento megalítico! - exclamei, encantada. - Um círculo de pedras em miniatura! Por causa da guerra, já fazia vários anos que eu viajara à planície de Salisbury, mas Frank e eu visitamos Stonehenge logo depois de casados. Como os outros turistas andando maravilhados entre os enormes blocos de pedra verticais do monumento, camos boquiabertos diante da Pedra do Altar ("onde os antigos druidas realizavam seus terríveis sacrifícios humanos", anunciara o sonoro guia turístico com seu sotaque cockney a um grupo de turistas italianos, que cuidadosamente tirava fotograas do bloco de pedra de aparência bastante comum). Com a mesma paixão pela exatidão que fazia com que Frank arrumasse as gravatas no cabide de modo que as pontas cassem exatamente da mesma altura, percorremos até mesmo a circunferência do círculo, medindo os passos entre os buracos Z e os buracos Y e contando os dintéis no Círculo de Sarsen, o anel mais externo das monstruosas pedras verticais. Três horas depois, sabíamos quantos buracos Y e Z havia (59, se quer saber; eu não quis), mas continuávamos sem fazer ideia da nalidade da estrutura, da mesma forma que as dezenas de arqueólogos prossionais e amadores que se arrastaram por aquele sítio nos últimos quinhentos anos. Não por falta de opiniões, é claro. A vida entre acadêmicos ensinara-me que uma opinião bem expressada em geral é melhor do que um fato mal expressado no que diz respeito a progresso prossional. Um templo. Um cemitério. Um observatório astronômico. Um local de execução (daí o nome inadequado de "Pedra do Massacre", inclinada para o lado, semienterrada em seu próprio buraco). Um mercado a céu aberto. Gostei dessa última sugestão, visualizando donas de casa megalíticas caminhando entre os dintéis, cestos nos braços, analisando o verniz do último carregamento de vasos e cerâmica vermelha, e ouvindo com ceticismo os proclames de padeiros da idade da pedra e de vendedores de contas de âmbar e de pás feitas com ossos de cervos. A única coisa que, a meu ver, contrariava essa hipótese era a presença de corpos sob a Pedra do Altar e restos humanos incinerados nos buracos Z. A menos que fossem os desafortunados restos mortais de mercadores acusados de roubar os fregueses no peso, parecia um pouco anti-higiênico enterrar pessoas no mercado. Não havia nenhum sinal de sepultamento no círculo de pedras em miniatura no topo desta colina. Por "miniatura" quero dizer apenas que o círculo de pedras verticais era menor do que Stonehenge. Ainda assim, cada pedra tinha o dobro da minha altura e proporções gigantescas. Eu ouvira de outro guia turístico em Stonehenge que esses círculos megalíticos ocorrem por toda a Inglaterra e Europa - alguns mais conservados do que outros, diferindo ligeiramente na orientação e na forma, todos de nalidade e origem desconhecidas. O sr. Crook cou sorrindo amavelmente, enquanto eu circulava pelas pedras, parando de vez em quando para tocar de leve numa delas, como se o toque de meus dedos pudesse deixar uma impressão nos monumentais blocos de pedra. Algumas das lajes verticais eram rajadas, listradas de cores quase imperceptíveis. Outras eram pontilhadas de ocos de mica que reetiam a luz do sol matinal com um brilho alegre. Todas eram notavelmente diferentes dos amontoados de pedras nativas que se projetavam das samambaias em volta. Quem quer que tenha construído os círculos de pedra, e para qualquer nalidade que fosse, achou importante ter extraído, modelado e transportado blocos especiais de pedra para a edicação de seu tributo. Modelado - como? Transportado - como e de que distância inimaginável? - Meu marido caria fascinado - disse ao sr. Crook, parando para agradecer-lhe por me mostrar o lugar e as plantas. - Vou trazê-lo aqui depois para que ele o veja. O idoso cavalheiro elegantemente me ofereceu o braço no alto da trilha. Aceitei-o, concluindo depois de dar uma olhada na íngreme ribanceira que, apesar da idade, ele provavelmente tinha as pernas mais rmes do que as minhas. Naquela tarde, desci a rua em direção ao povoado para buscar Frank na casa do vigário. Inspirava com satisfação aquela inebriante mistura das Terras Altas de urze, sálvia e giesta, temperadas aqui e ali por fumaça de chaminé e cheiro forte de arenque frito à medida que eu passava pelas poucas casas. A vila cava aninhada num pequeno declive ao sopé de uma daquelas elevadas escarpas que se erguiam quase verticalmente das charnecas das Terras Altas. As casas junto à rua eram bonitas. A prosperidade orescente do pós-guerra podia ser vista até em uma nova pintura e mesmo a propriedade do pároco, que devia ter pelo menos cem anos, exibia uma borda amarelo-viva em torno dos frouxos caixilhos das janelas. A governanta do vigário atendeu à porta, uma mulher alta e de ar severo, com três voltas de pérolas articiais no pescoço. Ouvindo quem eu era, pediu que eu entrasse e me conduziu por um corredor longo, estreito e escuro, coberto de gravuras em sépia de pessoas que podiam ter sido personagens famosos em sua época ou parentes queridos do atual vigário, mas que também podiam muito bem ser membros da família real, pelo que pude divisar de suas feições na escuridão. O gabinete do vigário, ao contrário, ofuscava com a luz que entrava pelas enormes janelas que cobriam uma das paredes, praticamente do teto ao chão. Um cavalete junto à lareira, ostentando uma pintura a óleo inacabada de penhascos negros contra um céu noturno, mostrava a razão das janelas, que devem ter sido acrescentadas muito depois da construção da casa. Frank e um homem baixo e gorducho, com um colarinho de padre, debruçavam-se confortavelmente sobre uma pilha de papéis velhos espalhados pela escrivaninha do outro lado da sala. Frank mal levantou a cabeça para me cumprimentar, mas o vigário educadamente abandonou suas explicações e apressou-se a vir apertar minha mão, o rosto redondo radiante de prazer. - Sra. Randall! - exclamou, apertando minha mão entusiasticamente. - Que prazer revê-la! E chegou bem na hora de ouvir as novidades! - Novidades? - Lançando um olhar no aspecto encardido e na tipologia dos documentos sobre a escrivaninha, calculei que as novidades em questão deviam datar de 1750. Portanto, não eram exatamente as manchetes do dia. - Sim, isso mesmo. Estivemos rastreando um ancestral de seu marido, Jack Randall, através dos despachos do exército na época. - O vigário inclinou-se em minha direção, falando pelo canto da boca como um gângster de lme americano. - Eu, hum, "peguei emprestado" os despachos originais dos arquivos da Sociedade Histórica local. Não vai contar para ninguém? Achando graça, prometi que não revelaria seu terrível segredo e olhei à minha volta em busca de uma poltrona confortável onde pudesse receber as últimas revelações do século XVIII. A poltrona mais próxima das janelas pareceu-me adequada, mas quando me aproximei para virá-la para a escrivaninha, descobri que já estava ocupada. O ocupante, um garoto com uma surpreendente cabeleira negra e lustrosa, estava enroscado no fundo da poltrona, dormindo profundamente. - Roger! - O vigário, vindo em meu auxílio, estava tão surpreso quanto eu. O garoto, acordado de repente, cou de pé num salto, os olhos verdes- musgo arregalados. - Ora, o que você está fazendo aqui, moleque? - o vigário repreendeu-o afetuosamente. - Ah, adormeceu lendo histórias em quadrinhos outra vez? - Pegou as folhas vivamente coloridas e entregou-as ao menino. - Agora, vá, Roger, tenho assuntos a tratar com os Randall. Ah, espere, esqueci-me de apresentá-lo. Sra. Randall, este é meu lho, Roger. Fiquei um pouco surpresa. Se houvesse um solteirão inveterado no mundo, eu diria que era o reverendo Wakeeld. Ainda assim, segurei a mãozinha educadamente estendida e apertei-a calorosamente, resistindo à necessidade urgente de limpar na saia certo resíduo pegajoso. O reverendo Wakeeld cou olhando afetuosamente o menino sair marchando em direção à cozinha. - Filho da minha sobrinha, na verdade - condenciou. - O pai levou um tiro na travessia do canal e a mãe foi morta durante um bombardeio, então eu quei com ele. - Muito generoso de sua parte - murmurei, pensando em tio Lamb. Ele, também, morrera durante um bombardeio, num ataque ao auditório do Museu Britânico, onde dava uma palestra. Conhecendo-o como conhecia, acho que seu último sentimento foi de satisfação pelo fato de a ala de antiguidades persas, vizinha à que ele estava, não ter sido atingida. - De modo algum, de modo algum. - O vigário balançou a mão, encabulado. - É bom ter um pouco de juventude na casa. Vamos, sente-se, por favor. Frank começou a falar antes mesmo de eu ter colocado a minha bolsa sobre a poltrona. - Uma sorte incrível, Claire - exclamou, entusiasmado, folheando a pilha já surrada. - O vigário encontrou toda uma série de despachos militares que mencionam Jonathan Randall. - Bem, parece que grande parte da importância deve-se ao próprio capitão Randall - observou o vigário, pegando alguns papéis de Frank. - Ele esteve no comando da guarnição em Fort William durante aproximadamente quatro anos, mas parece ter passado grande parte de seu tempo atormentando o interior da Escócia, acima da fronteira, em nome da Coroa. Este lote - cuidadosamente, ele separou uma pilha de documentos e espalhou-os sobre a escrivaninha - é de relatórios de queixas apresentadas contra o capitão por várias famílias e proprietários, reclamando de tudo, desde interferência dos soldados da guarnição com as criadas ao roubo de cavalos, sem mencionar diversos casos de "insulto" ou "não especicados". Não pude deixar de rir. - Quer dizer então que você tem um famoso ladrão de cavalos em sua árvore genealógica? - perguntei a Frank. Ele deu de ombros, sem se perturbar. - Ele era o que era e não há nada que eu possa fazer a respeito. Só quero descobrir. As queixas não são incomuns para a época; os ingleses de um modo geral, e o exército em particular, eram bastante impopulares nas Terras Altas. O que é estranho é que parece que nada aconteceu em decorrência das queixas, nem mesmo das mais graves. O vigário, incapaz de se manter quieto por mais tempo, interrompeu: - Isso mesmo. Não que os ociais naquela época tivessem que se pautar pelos padrões modernos; podiam agir praticamente por conta própria em questões de menor importância. Mas isso é estranho. Não é que as queixas tenham sido investigadas e descartadas; elas simplesmente nunca mais são mencionadas. Sabe do que eu descono, Randall? Seu antepassado devia ter um benfeitor. Alguém que podia protegê-lo da censura de seus superiores. Frank coçou a cabeça, estreitando os olhos para os despachos. - Talvez tenha razão. No entanto, tinha que ser alguém muito poderoso. No topo da hierarquia militar, talvez, ou um membro da nobreza. - Sim, ou possivelmente... - O vigário foi interrompido em suas teorias pela entrada da governanta, a sra. Graham. - Trouxe um pouco de chá, senhores - anunciou, colocando a bandeja com rmeza no meio da escrivaninha, de onde o vigário resgatou os preciosos despachos no momento exato. Ela me examinou de cima a baixo com um olhar perspicaz, com os braços e pernas nervosamente contraídos e o olhar ligeiramente vitricado. - Só trouxe duas xícaras, porque pensei que talvez a sra. Randall quisesse acompanhar-me à cozinha. Tenho um pouco de... Não esperei pela conclusão de seu convite e levantei-me prontamente. Pude ouvir as teorias irrompendo outra vez às minhas costas enquanto atravessávamos a porta de vaivém que levava à cozinha. O chá era verde, quente e perfumado, com pedaços de folhas dando voltas no líquido. - Hummm - disse, abaixando a xícara. - Há muito tempo não tomo Oolong. A sra. Graham assentiu, radiante com o meu prazer por sua bebida. Ela certamente se esmerara, colocando paninhos de renda bordados à mão sob as xícaras de na porcelana e oferecendo creme espesso e coalhado acompanhando os pãezinhos. - Sim, eu não o conseguia durante a guerra. No entanto, é o melhor para a leitura. Tive muita diculdade com o Earl Grey. As folhas se despedaçam tão depressa que ca difícil ler qualquer coisa nelas. - Ah, a senhora lê folhas de chá? - perguntei, achando engraçado. Nada poderia estar mais distante da concepção popular de uma adivinha cigana do que a sra. Graham, com seu permanente curto grisalho e seu colar de pérolas de três voltas. Um gole de chá percorreu visivelmente o pescoço longo e vigoroso e desapareceu sob as contas reluzentes. - Ora, certamente, minha querida. Assim como minha avó me ensinou e minha bisavó para ela. Esvazie a sua xícara e eu verei o que tem aí. Ficou em silêncio por um longo tempo, de vez em quando inclinando a xícara para iluminá-la melhor ou girando-a lentamente nas mãos magras para obter um ângulo diferente. Colocou a xícara de volta no pires cuidadosamente, como se receasse que fosse explodir no seu rosto. As linhas em torno de sua boca aprofundaram- se e as sobrancelhas se uniram numa expressão intrigada. - Bem - disse, nalmente. - Essa é uma das mais estranhas que já vi. - É mesmo? - Eu ainda estava achando engraçado, mas comecei a car curiosa. - Vou conhecer um estranho alto e moreno ou fazer uma viagem através do oceano? - Poderia ser. - A sra. Graham percebeu o tom irônico em minha voz e imitou-o, sorrindo ligeiramente. - E poderia não ser. Isso é que é estranho sobre a sua xícara, minha querida. Tudo nela é contraditório. Há a folha curvada para uma viagem, mas está cruzada pela folha quebrada que signica permanecer no lugar. E há estranhos, sem dúvida, vários deles. E um deles é o seu marido, se eu li as folhas direito. Meu ar zombeteiro se dissipou um pouco. Após seis anos separados e seis meses juntos, meu marido de certa forma era realmente um estranho. Embora eu não conseguisse entender como uma folha de chá pudesse saber disso. A sra. Graham continuava com a testa franzida. - Deixe-me ver sua mão, minha lha - disse ela. A mão que segurou a minha era ossuda, mas estava surpreendentemente aquecida. Uma fragrância de alfazema emanava da cabeça grisalha e bem arrumada que se inclinava sobre mim. Examinou minha mão cuidadosamente por um longo tempo, de vez em quando traçando uma das linhas com o dedo, como se seguisse um mapa cujas estradas acabassem todas nas águas de uma costa arenosa ou em terras ermas e desertas. - Bem, o que diz aí? - perguntei, tentando manter um ar despreocupado. - Ou o meu destino é horrível demais para ser revelado? A sra. Graham ergueu os olhos inquisidores e tou o meu rosto pensativamente, mas continuou segurando a minha mão. Balançou a cabeça, enrugando os lábios. - Ah, não, minha querida. Não é o destino que está em sua mão. Apenas a semente dele. - Inclinou a cabeça para um lado, considerando o que dizia. - Como sabe, as linhas da mão vão mudando ao longo do tempo. Em outro momento de sua vida, elas podem ser bastante diferentes do que são agora. - Não sabia disso. Pensei que a gente nascesse com elas e pronto. - Eu reprimia uma vontade premente de retirar minha mão. - Nesse caso, de que adianta a leitura da mão? - Não queria parecer mal-educada, mas estava achando aquele escrutínio um pouco desconcertante, especialmente depois da leitura das folhas de chá. A sra. Graham sorriu inesperadamente e fechou os meus dedos sobre a palma da minha mão. - Ora, as linhas de sua mão mostram quem você é, querida. É por isso que mudam, ou deveriam mudar. Em algumas pessoas, não mudam; naquelas sucientemente infelizes para nunca mudarem interiormente, mas são poucas assim. - Apertou minha mão dobrada e deu-lhe um tapinha. - Duvido que você seja uma delas. Sua mão já demonstra mudanças demais para alguém tão jovem. Deve ser por causa da guerra, é claro - disse, como se falasse para si mesma. Fiquei novamente curiosa e abri a mão voluntariamente. - O que sou, então, segundo a palma de minha mão? A sra. Graham franziu o cenho, mas não segurou minha mão outra vez. - Não sei dizer. É estranho, porque a maioria das mãos tem semelhanças. Veja bem, não estou querendo dizer que se você viu uma, viu todas, mas em geral é assim. Há padrões, sabe? Sorriu repentinamente, um riso estranhamente simpático, exibindo dentes muito brancos e evidentemente postiços e prosseguiu: - É assim que a adivinhação funciona. Faço isso para a quermesse da igreja todos os anos. Ou fazia, antes da guerra; acho que voltarei a fazer, agora. Mas uma jovem entra na tenda e lá estou eu, ostentando um turbante com uma pena de pavão que peço emprestada ao sr. Donaldson e "trajes de esplendor oriental", que é o roupão do vigário, repleto de desenhos de pavão e amarelo como o sol. De qualquer forma, eu a examino de cima a baixo enquanto njo estar olhando sua mão e vejo que usa uma blusa decotada quase até o umbigo, um perfume barato e brincos que vão até o pescoço. Não preciso de uma bola de cristal para lhe dizer que terá um lho antes da festa do ano que vem. - A sra. Graham fez uma pausa, os olhos acinzentados acesos de malícia. - Mas se a mão que você estiver segurando estiver sem anéis, é diplomático prever primeiro que ela se casará em breve. Eu ri e ela também. - Então, a senhora não analisa as mãos delas? - perguntei. - Só para vericar os anéis? Ela pareceu surpresa. - Ah, claro que examino. É que você já sabe com antecedência o que vai ver. Geralmente. - Fez um sinal com a cabeça indicando minha mão aberta. - Mas nunca vi um padrão assim antes. O polegar grande - nesse momento, ela realmente se inclinou para frente e tocou-o de leve -, isso não mudaria muito. Signica que você tem força de vontade e uma determinação que dicilmente pode ser contrariada. - Piscou os olhos para mim. - Imagino que seu marido já tenha lhe dito isso. Da mesma forma, isso aqui. - Apontou para o montinho carnudo na base do polegar. - O que é? - Chama-se Monte de Vênus. - Comprimiu os lábios nos com força, embora não conseguisse impedir os cantos de se elevarem. - Em um homem, eu diria que signica que ele gosta de mulheres. Para uma mulher, é um pouco diferente. Para ser delicada a respeito, farei uma pequena previsão para você e direi que seu marido provavelmente não se afastará muito de sua cama. - Deu uma risadinha surpreendentemente profunda e imoral e eu quei levemente corada. A idosa governanta examinou minha mão cuidadosamente outra vez, batendo com o dedo em riste aqui e ali para enfatizar suas palavras. - Bem, vejamos, uma linha da vida bem denida; está com boa saúde e é provável que permaneça assim. A linha da vida está interrompida, signicando que sua vida sofreu uma grande mudança. Bem, isso é verdade para todos nós, não é? Mas a sua é mais retalhada do que eu normalmente vejo; toda em pedacinhos. E a sua linha do casamento - balançou a cabeça outra vez - é dividida; não é incomum, signica dois casamentos... Minha reação foi de descrença, que reprimi imediatamente, mas ela percebeu e no mesmo instante ergueu o olhar. Achei que ela devia ser uma adivinha muito perspicaz. Ela assentiu com a cabeça grisalha em minha direção, procurando tranquilizar-me. - Não, não, menina. Não signica que vá acontecer alguma coisa com seu marido. É que, se fosse isso - e ela enfatizou o "se" apertando ligeiramente a minha mão -, você não seria do tipo que iria denhar e car de luto pelo resto da vida. O que signica é que você é uma dessas pessoas capazes de amar novamente se perder seu primeiro amor. Apertou os olhos míopes para a minha mão, percorrendo delicadamente, com uma unha dura e pontuda, a minha profunda linha do casamento. - Mas a maioria das linhas do casamento é interrompida, a sua se bifurca. - Ergueu os olhos com um sorriso brincalhão. - Certamente você não é uma bígama em segredo, não é? Balancei a cabeça, rindo. - Não. Quando teria tempo para isso? - Em seguida, virei a mão, mostrando a borda externa. - Ouvi dizer que pequenas marcas no lado da mão indicam quantos lhos você vai ter. - Esperava ter falado em tom casual. O decepcionante lado externo da minha palma era completamente liso. A sra. Graham fez um gesto com a mão, desdenhando a ideia. - Que nada! Depois de ter um ou dois lhos, vai ter linhas aí. Mais provavelmente vai tê-las no rosto. Não prova nada de antemão. - Ah, não? - Fiquei tolamente aliviada de ouvir aquilo. Estava prestes a perguntar se as linhas profundas na base do meu pulso signicavam alguma coisa (um potencial para o suicídio?), quando fomos interrompidas nesse ponto pelo reverendo Wakeeld, que entrou na cozinha carregando as xícaras vazias. Colocou-as na pia e começou uma busca desajeitada e espalhafatosa no armário, obviamente na esperança de que alguém fosse ajudá-lo. A sra. Graham pôs-se de pé num salto para defender a santidade de sua cozinha e, empurrando o reverendo habilmente para o lado, começou a reunir acompanhamentos de chá na bandeja para levar ao gabinete. Ele me puxou para o lado, fora do caminho. - Por que não vem ao gabinete tomar outra xícara de chá comigo e com seu marido, sra. Randall? Fizemos uma descoberta extremamente graticante. Pude notar que, apesar do aparente comedimento externo, ele estava esfuziante de alegria com o que quer que tivessem descoberto, como um garotinho com um sapo no bolso. Obviamente, eu teria que ir ler a conta da lavanderia do capitão Jonathan Randall, o recibo do conserto das botas ou algum outro documento igualmente fascinante. Frank estava tão absorto com os papéis corroídos que mal ergueu os olhos quando entrei no gabinete. Entregou-os relutantemente nas mãos gorduchas do vigário e deu a volta para car de pé atrás dele e espreitar por cima de seu ombro, como se não pudesse suportar que os papéis cassem fora de sua vista nem por um instante. - Sim? - disse educadamente, manuseando os pedaços de papéis encardidos. - Hummm, sim, muito interessante. - Na realidade, a caligraa manuscrita oreada estava tão desbotada e era tão rebuscada que não parecia valer a pena decifrá-la. Uma folha, mais bem preservada do que o resto, ostentava uma espécie de timbre no topo. - O duque de... Sandringham, não é? - perguntei, analisando atentamente o timbre, com a gura desbotada de um leopardo deitado e as letras impressas embaixo, mais nítidas do que o texto manuscrito. - Sim, isso mesmo - disse o vigário, ainda mais radiante. - Um título agora já extinto, como sabe. Eu não sabia, mas conrmei inteligentemente com um aceno da cabeça, conhecendo como eu conhecia os historiadores no afã desvairado da descoberta. Raramente era necessário mais do que assentir de vez em quando, exclamando "Ah, é mesmo?" ou "Absolutamente fascinante!" a intervalos apropriados. Após certa dose de troca de deferências entre Frank e o vigário, o último ganhou a honra de me contar a respeito da descoberta. Evidentemente, toda aquela papelada velha indicava que o antepassado de Frank, o famoso Black Jack Randall, não fora apenas um valente soldado da coroa, mas um agente de conança - e secreto - do duque de Sandringham. - Quase um agente provocador, não diria, sr. Randall? - O vigário elegantemente passou a bola de volta para Frank, que não perdeu a oportunidade. - Sim, é verdade. A linguagem é muito velada, é claro... - Virou as páginas delicadamente com o indicador bem limpo. - Ah, é mesmo? - exclamei. - Mas parece, por esses documentos, que Jonathan Randall foi incumbido da tarefa de trazer à luz sentimentos jacobitas, se existia algum, entre as proeminentes famílias escocesas de sua área. O objetivo era eliminar qualquer baronete e chefe de clã que pudesse estar abrigando simpatias secretas nessa direção. Mas isso é estranho. O próprio Sandringham não era suspeito de ser um jacobita? - Frank se virou para o vigário com o cenho franzido, numa expressão inquisidora. A cabeça lisa e careca do vigário se enrugou numa expressão idêntica. - Ora, sim, acho que tem razão. Mas espere, vamos vericar no Cameron. - Deu um salto em direção às prateleiras de livros, abarrotadas de volumes com capa de couro. - Certamente ele menciona Sandringham. - Absolutamente fascinante - murmurei, deixando minha atenção se desviar para a enorme placa de cortiça que revestia uma das paredes do gabinete, do chão ao teto. Estava coberta com uma impressionante diversidade de objetos; a maioria papéis de algum tipo, contas de gás, correspondências, avisos do Conselho Diocesano, páginas soltas de romances, bilhetes de próprio punho do vigário, mas também pequenos itens como chaves, tampas de garrafas e o que pareciam pequenas peças de carro, presas com tachas e barbante. Dei uma olhada lânguida pela miscelânea, mantendo um dos ouvidos atento à discussão que transcorria atrás de mim. (O duque de Sandringham provavelmente foi um jacobita, concluíram.) Minha atenção foi atraída por um mapa genealógico, pregado com cuidado especial, à parte, com quatro tachas, uma em cada canto. O topo do mapa incluía nomes datados do começo do século XVII. Mas foi o nome na parte inferior do mapa que chamou minha atenção: "Roger W. (MacKenzie) Wakeeld." - Desculpe-me - disse, interrompendo uma discussão nal sobre o leopardo no timbre do duque ter um lírio na pata ou um açafrão. - Essa é a árvore genealógica de seu lho? - Hein? Ah, sim, é, sim. - Tendo a atenção desviada, o vigário se aproximou às pressas, mais uma vez radiante. Desprendeu cuidadosamente o mapa da parede e colocou-o na mesa à sua frente. - Não queria que ele esquecesse a própria família - explicou. - É uma linhagem muito antiga, do século XVI. - O dedo indicador grosso e curto traçou a linha de descendência quase reverentemente. - Dei-lhe meu próprio nome porque me pareceu mais adequado, já que ele vive aqui, mas não queria que esquecesse suas origens. - Deu um sorriso contrafeito. - Receio que minha própria família não seja nada de se orgulhar, em termos de genealogia. Vigários e curas, com um ou outro livreiro para variar, e só pode ser rastreada até 1762. Registros bastantes falhos, sabe - disse, abanando a cabeça pesarosamente diante da letargia de seus antepassados. Já estava cando tarde quando nalmente deixamos a residência do vigário, que prometeu levar as cartas para a cidade e copiá-las logo de manhã cedo. Frank foi tagarelando alegremente sobre espiões e jacobitas durante a maior parte do caminho de volta à pousada da sra. Baird. Finalmente, entretanto, ele notou meu silêncio. - O que foi, amor? - perguntou, segurando meu braço atenciosamente. - Não está se sentindo bem? - A pergunta foi feita num tom misto de preocupação e esperança. - Não, estou perfeitamente bem. Só estava pensando... - hesitei, porque já havíamos discutido a questão anteriormente. - Estava pensando em Roger. - Roger? Fiz um gesto de impaciência. - Francamente, Frank! Como pode ser tão... desligado?! Roger, o lho do reverendo Wakeeld. - Ah. Sim, é claro - disse vagamente. - Uma criança adorável. O que tem ele? - Bem... é que existem muitas crianças como ele. Órfãs. Lançou-me um olhar penetrante e balançou a cabeça. - Não, Claire. Realmente, eu gostaria, mas já lhe disse como eu me sinto a respeito da adoção. É que... eu não iria car confortável com uma criança que não fosse... bem, do meu próprio sangue. Sei que isso é ridículo e egoísta da minha parte, mas é assim que eu me sinto. Talvez mude de ideia com o tempo, mas agora... - Andamos alguns passos num silêncio pesado. De repente, ele parou e se virou para mim, tomando minhas mãos. - Claire - disse com voz rouca -, eu quero o nosso lho. Você é a coisa mais importante do mundo para mim. Quero que seja feliz, acima de tudo, mas quero... bem, quero você para mim. Receio que uma criança de fora, com quem não temos nenhum relacionamento verdadeiro, venha a ser um intruso e eu me ressentiria disso. Mas poder lhe dar um lho, vê-lo crescer em você, vê-lo nascer... eu o veria como se fosse mais uma... extensão de você, talvez. E de mim. Uma parte verdadeira da família. - Seus olhos estavam arregalados, suplicantes. - Sim, tudo bem. Eu compreendo. - Estava disposta a abandonar o assunto, por enquanto. Virei-me para continuar andando, mas ele tomou- me em seus braços. - Claire. Eu amo você. - A ternura em sua voz era irresistível e apoiei minha cabeça em seu casaco, sentindo seu calor e a força de seus braços em volta de mim. - Eu também amo você. - Ficamos ali abraçados por alguns instantes, balançando ligeiramente ao vento que varria a rua. De repente, Frank recuou um pouco, sorrindo para mim.

            
            

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