Capítulo 2 Pedra sobre pedra

Entenda, me isolar nunca foi proposital. Sempre fui o tipo de pessoa que vivia rodeado de amigos, que me enturmava com facilidade e participava de todo e qualquer evento que aparecesse pelo caminho. Mas depois do houve, estar com as mesmas pessoas era difícil, exigia muito esforço e parecia um trabalho inútil.

Obviamente nenhum dos meus antigos amigos tinha culpa do que tinha acontecido, "foi uma fatalidade" eles diziam. Como se soubessem toda a verdade. Se fosse esse o caso, com certeza não tentariam me animar com tanta frequência.

Mas, pra ser sincero, me isolar foi o único jeito. Era extremamente cansativo ter que aguentar os olhares de pena e ouvir coisas do tipo: "você precisa seguir em frente" ou até o clássico "ela não ia gostar de ver você desse jeito". A vida não é minha? Então a dor também é, e eu tenho o direito de lidar com ela como eu bem entender. Ninguém sabe melhor do que eu sobre o buraco que existe no meu peito.

– "William, você precisa enfrentar isso. Precisa falar sobre o que aconteceu." – Disse o meu terapeuta – "Imagine que o seu silêncio é como uma pedra. Toda vez que você decide omitir o que sente ou guarda pra você os seus pensamentos, uma nova pedra é acrescentada na sua mente. E a cada pedra um muro vai se erguendo ao seu redor. E diferente do que você pensa essa muro que não é capaz de te proteger, mas apenas de te limitar. No fim, você pode não ser mais capaz de impedir que essa construção tombe e te machuque."

Não respondi, como sempre. Apenas pensei: "Já estou machucado. Falar sobre o assunto não vai resolver nada." Afinal, o que eu penso de mim sendo pensado e... dito pelos outros... só pioraria ainda mais as coisas. Apenas daria a todos o motivo que precisam para me manter afastado. Então, honestamente prefiro a piedade deles do que falar a verdade sobre ela.

Por esse motivo no último ano o único pensamento em que me mantive focado foi em melhorar as minhas notas e entrar para uma faculdade bem longe dali, onde eu pudesse recomeçar. Uma mudança de ares certamente me faria bem. Pelo menos foi o que achei.

Nesse momento o despertador tocou.

– "Isso foi muito bom Arthur. Mesma semana que vem?" – Falei com sarcasmo.

– "Sim. Mas antes de ir quero pedir uma coisa..." – Me olhou com uma cara de quem faria um pedido difícil, que eu provavelmente seria contra. – "Quero que faça uma lista... Apenas dez itens..."

– "Sobre?"

– "Gratidão. Três coisas pelas quais você é grato." – Arthur fez uma pausa, suspirou e disse: – "Precisa estar relacionado com... bom... com ela. Sei que deve ter pelo menos uma coisa boa sobre o que você viveu. Não vai precisar lê-la pra mim, mas terá que me entregar."

Não lembro de ter respondido. Apenas de sair bufando e com raiva. A verdade é que o buraco no meu peito não seria esquecido tão facilmente. Acho até que nem me mudando resolveria. Ela tinha cavado bem fundo. Não seria tão fácil seguir em frente, principalmente quando tudo ao meu redor me trazia lembranças. Os lugares que eu costumava frequentar, a maldita melodia da biblioteca da escola e até mesmo o perfume impregnado no banco do meu carro me causava dor. Continuar existindo parecia impossível, insuportável.

Por que eu deveria estar passando por isso? Onde estava a justiça? O que eu fiz para merecer? Depois de tudo o que aconteceu, depois de ter dado tudo de mim, por que comigo? Eu deveria poder gritar de ódio, deveria poder dizer a verdade. Mas não... mesmo não ligando para o que os outros pensavam, eu não podia fazer isso... O que mudaria? Qual seria a diferença? Primeiro que provavelmente ninguém acreditaria em mim, e segundo, que isso só iria magoar ainda mais aqueles que já estavam sofrendo. Eles não precisavam passar por isso. Então, já que isso não resolveria nada e não traria benefício algum, tudo o que restava era aguentar sozinho até essa tempestade passar, e guardar dentro do meu peito a triste história inacabada. Vivendo um dia de cada vez...

É claro, que me livrei de tudo o que eu podia... cartas, roupas, discos, fotos, livros... mas isso não adiantava. O problema andava comigo... dentro da minha mente. Eu repetia pra mim, esquece isso... não era o que você pensava... era tudo mentira... não dê tanta importância assim... Mas isso só me fazia pensar em todas as minhas escolhas, em tudo o que tinha me levado até aquele momento. E todos os "e se..." possíveis.

Como eu poderia ser grato? O que tinha para agradecer? Eu estraguei tudo! Não... não... não! Eu não! Ela estragou tudo! A culpa não era minha. Não 100% pelo menos. Eu não deveria ter que arcar com todas as consequências sozinho.

A semana passou correndo enquanto eu pensava na maldita lista. Já era quase terça quando eu sentei em minha escrivaninha e comecei. "Sou grato por..." Minha escola? Não, já estava sendo um saco ter que ir. Pelo quê então? Estar vivo? Não parecia ser algo pelo que se orgulhar. Pela minha família? Eles não estavam me deixando em paz, mas teoricamente estavam fazendo o que podiam... Então Ok. "Sou grato por ter uma família que me ama". O que mais?

Uma hora se passou enquanto eu olhava para o meu lápis e os espaços em branco no meu mural sobre a mesa. Ainda dava pra ver as sombras das minhas antigas fotos e bilhetes que estavam ali. Consegui visualizá-los quase como se ainda estivessem.

Então desisti. Não tinha muitos motivos para agradecer. A única coisa que eu podia fazer, era não repetir o mesmo erro... nunca mais. Talvez esse fosse um pensamento radical, mas naquela situação, era apenas isso que eu tinha tirado de lição. Então, nesse momento peguei o papel e acrescentei: "Sou grato por tudo ter acabado e pela lição que eu aprendi." Ele não precisava saber qual era. E se perguntasse, eu não responderia. Ele já estava acostumado.

No dia seguinte entreguei para o Arthur a minha lista e disse que foi o melhor que eu pude fazer. Então ele me parabenizou e passou o restante da hora me dizendo como eu tinha dado um grande passo e que eu era capaz de fazer grandes coisas. No fim da sessão me desafiou a fazer uma lista de três coisas boas todas as vezes em que pensasse em desistir ou quando tivesse que fazer algo que me desafiasse ou fosse desconfortável. Naquela hora pareceu um absurdo, mas depois de um tempo virou quase um hábito.

O restante do ano passou arrastado. Algumas pessoas até tentaram se aproximar. Algumas a pedido dos pais e professores, outras por livre e espontânea vontade, por que julgavam saber o que dizer ou como eu me sentia. O que obviamente não era o caso. Nunca fui grosso com ninguém, não xinguei, não destratei, não ignorei, apenas deixei claro que não queria ajuda, ou o que quer que quisessem fazer.

Sempre que algo acontecia eu pensava: "Minhas notas estão cada vez melhores. Faltam poucos meses para eu ir embora. Logo tudo isso vai ficar para trás."

            
            

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