Capítulo 2 Uma Dívida do Passado

O vento soprava quente no alto dos prédios. Os óculos de proteção ajudavam a enxergar sob a luz forte do sol. Doze homens preparavam seus equipamentos para o salto, a ânsia de aventura deixando os ânimos alegres. O céu estava claro e sem nuvens, nenhuma tempestade de areia para atrapalhar. Said parou ao lado do patrão e deu um suspiro entediado.

- Como podem se sentir tão animados para pôr a vida em risco? Morrer é tão atrativo assim?

Khaled olhou para o lado e não pôde evitar uma gargalhada.

- Não vamos morrer Said. Só queremos saltar com wingsuit.

Mesmo por baixo dos óculos escuros era possível ver o olhar reprovador do guarda costas.

- Não somos pássaros, não nascemos para voar. Ainda mais com isso... - E deu um olhar desconfiado para a wingsuit de Khaled.

O príncipe olhou para baixo para ver as próprias roupas. O traje com abas nas laterais, que serviriam de "asas" para planar durante o salto. Havia, de fato, risco de acidentes. Mas Khaled não achava que iria morrer.

- É divertido. - Respondeu simplesmente.

- Com todo respeito, Senhor - Said abaixou o rosto para olhar o chefe por cima dos óculos - Divertido é pegar um barco e ir para alto mar, pescar tranquilamente e ver o pôr do sol rodeado por suas próprias crianças.

Entendendo a indireta, Khaled ficou levemente irritado. Com 38 anos completos, aquilo estava começando a se tornar frequente.

- Ah, certo, Said. - Deixou o guarda costas e se dirigiu à beirada do alto prédio. Deu meia volta e com um sorriso zombeteiro completou - Se eu não morrer, resolvo isso quando voltar.

Quando todos estavam prontos, as câmaras preparadas, a adrenalina no limite, doze homens pássaros saltaram para a vazio de muitos metros até o chão.

O wingsuit retardava a queda e permitia que voassem entre os prédios sem perder altura rapidamente. Aquele era um dos momentos em que o príncipe se sentia verdadeiramente vivo e com tudo sob controle. Quando desafiava a natureza e os riscos. Sim, um deslize poderia ser fatal para ele. Mas isso era bem melhor que o tédio de se estar no chão.

O comentário de Said ainda ecoava em sua mente. Sempre quis ter uma família. Quando já não acreditava mais no amor, encontrou sua alma gêmea. Mas era tarde demais. Não havia mais tempo. Lynn Isabella foi a melhor coisa em sua vida, mas chegou e se foi rapidamente, deixando lembranças maravilhosas e um vazio enorme.

Infelizmente não era possível viver apenas disso. A vida tinha de continuar e as insinuações de todos a respeito de ele formar uma família não eram infundadas. Se não tivesse filhos logo, nem poderia aproveitar a vida com eles, estava envelhecendo. Talvez fosse hora de abandonar a primeira parte do plano : encontrar a mulher ideal. Já tinha experimentado um amor verdadeiro. Agora devia realizar a segunda parte e começar a construir sua família.

Não que estivesse solteiro, havia se casado duas vezes nos últimos dois anos. Porém não era possível ter filhos com nenhuma de suas esposas. Uma não poderia ter filhos e a outra ele simplesmente não suportava. Havia se casado por impulso, porque a moça estava em apuros por sua causa. Porém a gratidão infinita que ela mostrava, tornava impossível se manter muito tempo perto dela.

Além disso, nenhum desses casamentos havia sido " o casamento " que o príncipe precisava fazer : uma aliança pública e vantajosa com alguma filha de um respeitável sheikh nativo.

O cerco estava se fechando e ele precisava resolver a situação.

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Depois do voo bem sucedido, em que desviaram de prédios e planaram por algum tempo até saírem da cidade e pousarem no deserto, o príncipe seguiu para o escritório de Bashir. Tendo passado na Skydive apenas para um banho rápido e roupas adequadas.

Algo sério devia ter acontecido, pois quando pousou, um Said bastante agitado estacionava o carro no deserto. O secretário do pai havia ligado diversas vezes para o guarda costas pressionando pelo paradeiro do príncipe. Ao ligar o celular, Khaled encontrou nada menos que oito ligações do número pessoal do pai.

Não tendo tempo de secar os cabelos e havendo a necessidade de em breve colocar a ghutra branca , ele ajeitava os cabelos cacheados com as janelas abertas a fim de secar o máximo possível. O carro corria veloz pela estrada, o secretário de Bashir se recusou a dar informações pelo telefone, e o pai já não atendia mais ao celular.

Pensamentos tensos corriam por sua mente. 'Seria algum desastre? Seus irmãos estariam bem?' E sentiu o corpo gelar quando seus pensamentos recaíram sobre sua mãe. Desviou o pensamento dessa possibilidade com um sacudir de cabeça.

Recentemente sua irmã Mahra havia tido problemas sérios de saúde e agora se encontrava internada em uma clínica para tratar problemas psiquiátricos. Aquilo o abalou muito. Apesar de serem filhos de mães diferentes, sempre simpatizou com a irmã, que era bem mais nova. Mantiveram muito contato desde que a moça, que até a adolescência se chamava Christina, se mudou para Dubai para estar mais próxima da família paterna. Ela se esforçou muito, mas somente Khaled e Latifa cederam as suas tentativas de aproximação. Decepcionada, e com sérias diferenças com o pai muçulmano, a jovem trocou seu nome para Mahra ( amarga) e retornou à Grécia, para o lado da mãe.

Na época, ele mesmo pensou que se tratava apenas de uma breve decepção. Mas agora estava claro que os problemas de Mahra eram mais sérios. Estava sempre rodeado de seus muitos irmãos, e se sentia culpado pela solidão da meia irmã.

Esperava que nenhum outro membro da família estivesse em apuros. "Deve ser apenas um desastre econômico em que ninguém sairá machucado", pensou quase implorando a Allah que fosse isso.

Mal esperou o carro parar e saltou, segurando a guthra enquanto corria para o elevador. Subiu as dezenas de andares pensando se não teria sido melhor ir pelas escadas. Pelo menos não precisaria ficar parado olhando para a porta enquanto seu coração quase saía pela boca.

Quando as portas finalmente se abriram, ele quasse correu e entrou no escritório do pai, ignorando o secretário.

Ao ver o filho irromper pelas portas, Bashir que estava sentado atrás da mesa, sorriu alegremente.

- Que bom que chegou, preciso que assine isso. - O pai disse casualmente, empurrando algumas folhas impressas e uma caneta.

Ainda ansioso e com o coração acelerado, Khaled apanhou a caneta e começou a escrever o nome, quando o absurdo da situação se abateu sobre ele.

- O que é isso? - Disse soltando a caneta e erguendo a folha para ler.

- Um contrato. Seu tio já assinou, e eu também. Falta apenas você.

- Mas isso parece... Não. Isso é um contrato de casamento.

- Sim, meu filho, sabemos disso. Estou acertando o casamento entre você e sua prima.

Apesar do susto, não era tão ruim. Sabia que acabaria tendo de se casar com uma das suas dezenas de primas, como era costume em seu país.

- Qual delas? - Perguntou , com a folha meio assinada ainda nas mãos.

- Oras, mas isso é óbvio. A mesma.

Havia algo ali que ele não sabia. E sua cara devia estar demonstrando isso claramente, pois seu pai continuou.

- Aquela que você iludiu, Khaled. Você vai se casar com Yassemin bint Sayed.

Ele havia iludido Yassemin? Quando? Lembrar que aquela moça ainda respirava o deixou com o humor bem mais ácido do que o normal.

- Na verdade foi ela quem me iludiu. Além de não ter medido esforços nem pensado em danos à sua reputação ao tentar pôr as garras em Rashid...

- Peço que seja cuidadoso ao falar sobre minha pobre primogênita, Khaled. Desde que você interferiu na vida dela, a pobrezinha não soube mais o que fazer. Tem sido impossível encontrar alguém para ela , já que se recusa a aceitar qualquer pretendente.

Khaled se surpreendeu com a presença do tio, pois não se deu conta da Sayad estava ali. Teve de engolir a ideia de citar que casar uma mulher árabe na idade da prima também não era um desafio fácil. Ela era apenas uns anos mais jovem que ele. E infelizmente para ela, isso poderia ser um ponto negativo.

- Peço desculpas, tio.- O tom de voz irritado do príncipe deixava claro que as desculpas não eram sinceras. - Fui pego de surpresa. Ninguém me falou sobre isso antes, de forma que não compreendo bem a situação. Por que acham que eu a iludi?

O tio se aproximou com um monte de papéis amarelados amarrados com uma fita rosa de cetim. Eram uma boa quantidade de páginas escritas a mão , e eles as jogou sobre a mesa de Bashir. Com um calafrio, Khaled percebeu que era sua própria letra, as datas de sua adolescência. Lembrou- se o tipo de coisas que estavam escritas ali. Expressões apaixonadas e poesias imensas.

-Sei o que estão pensando, mas sabem que essas cartas foram escritas há quase vinte anos. Antes de Yassemin se tornar noiva de Rashid.

- Não fosse essas cartas, e sua atitude - Tio Sayad disse enquanto andava para se postar ao lado de Bashir - Talvez ela tivesse se casado com seu irmão e nada dessas coisas houvessem acontecido.

- Foi Rashid quem não quis se casar com Yassemin! Eu nada tive a ver...

- Ele sabia que você a iludia, e que estava apaixonada por você e acreditando em suas promessas.

- Não! Rashid se casou por amor. Ele e Rashyda eram um casal perfeito. Ele jamais se contentaria com Yassemin.

- Seja respeitoso, Khaled - O pai ralhou com ele como se fosse um menino - Seu tio trouxe uma causa justa, meu filho. Ele tem provas de que você mudou o pensamento e o destino de sua prima.

- Baba! Isso não faz sentido, Yassemin ficou feliz de ser a noiva de Rashid. Ela queria se casar com ele!

- Ela estava cumprindo o seu dever, porque era o meu desejo - Tio Sayad falava cínico - Mas a custa de muito sofrimento, pobre menina.

- Ah qual é? Yassemin é uma interesseira. Além disso, a vi poucos anos atrás, se tornou médica e está muito bem. Ela cuidou da minha falecida esposa.

Bashir assistiu a discussão tranquilamente, com as mãos entrelaçadas sobre o colo. Mas só de olhar seu rosto impassível, Khaled soube que não tinha o favor do pai.

- É impossível casar Yassemin. Todos sabem que esteve envolvida com você e foi noiva do seu irmão. Se ele estivesse aqui, poderíamos pensar em outras soluções. Mas não temos outra opção. Você vai consertar a situação, e salvar a reputação da sua prima. Vai dar a ela o que prometeu.

- Ela criou essa situação. Foram as escolhas dela que trouxeram essas consequências! Não tive culpa!

O tio fez menção de falar, mas foi interrompido por Bashir.

- Creio que isso é algo para resolver em particular , cunhado. Se puder nos deixar a sós.

Sayad pegou suas cartas e se retirou. Dirigindo um olhar venenoso ao sobrinho.

- Baba, isso é ridículo, odeio essa mulher!

- Vai dar um jeito de não odiar mais. Não precisa amar Yassemin. Só precisa se casar e ter filhos. Já é casado com as mulheres que escolheu, não vai ser tão difícil assim.

- Yassemin é uma cretina, me trocou pelo meu irmão. Como posso confiar nela?

- Você não precisa confiar nela, pode controlar a vida dela. Se acha que ela pode ser sinuosa, então use sua autoridade. Ponha sua mulher na linha.

Sabia ao que pai se referia. Castigos, surras e o puro medo poderiam subjugar uma mulher. Khaled poderia tornar a prima um animalzinho enjaulado. Mas não era assim que ele via o mundo. Não queria ter Yassemin em sua vida de jeito nenhum.

- Não caso. - Foi firme.

- Casa sim.

- Não!

- Se não casar, torno Abdul herdeiro em seu lugar.

Khaled sabia que não era uma ameaça vazia.

- Não caso. - Repetiu virando as costas para sair.

- Vai sim! - Ouviu a voz do pai, mesmo depois de bater a porta.

Seus irmãos Abdul e Ahmad estavam no corredor, de cabeça baixa. Obviamente tinham ouvido os gritos.

- Não vou me casar com aquela golpista - Repetiu para os irmãos.

- Tem que fazer isso Khaled. - Abdul o encarou - Se o lugar de herdeiro me for oferecido, vou aceitar. Você sabe disso.

Ahmad o olhou, e Khaled viu que ele compreendia seus sentimentos. Para Ahmad, o amor era necessário.

- Você não foi o único a receber essa convocação. - Disse com um sorriso irônico.

- O que? - Khaled olhou de um para o outro.

- Também vamos nos casar. - Ahmad sorriu desanimado.

-Um belo e emocionante casamento triplo. Para abalar as estruturas do Oriente - Abdul respondeu com ironia. - Ou então o Baba irá nos eliminar do testamento.

                         

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