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inverno/inferno 2009
Lembro-me da sensação de ser um dia congelante. Acho que nunca senti tanto frio na minha vida quanto naquele dia, por mais roupa que eu colocasse nada era suficiente. Já estava no lar de acolhimento há quase dois anos. Tempo suficiente pra entender mais ou menos como o sistema funcionava, idade suficiente pra saber que estava ficando velha para ser adotada, mentalidade suficiente pra criar esperança mesmo em meio a expectativas baixas.
Um casal tinha manifestado interesse em prosseguir com a minha adoção, no começo tentei não criar muita expectativa mas foi impossível, ver crianças saindo do Lar e não voltarem me deixava cheia de esperança de que a vida poderia ser boa comigo também.
Saía algumas vezes com Marco e Angel, era um casal simpático, já tinham um filho um pouco mais novo que eu, com quem eu até me dei bem no começo. Levavam-me algumas vezes para tomar sorvete, perguntavam-me sempre do que eu gostava de fazer e me perguntavam como estava indo na escola. Era estranho ver uma pessoa se interessando por aquilo que me interessava ou por quem eu era.
No início daquela semana, Ava e a assistente social conversaram comigo e disseram que eu me mudaria para a casa deles ainda naquela semana, e quando finalmente chegou o dia, eu nem sabia colocar em palavras o que eu estava sentindo. Finalmente eu teria uma família de verdade, finalmente não precisaria compartilhar o quarto com outras meninas estranhas.
E o mais importante, finalmente conseguiria criar e estabelecer relações reais com alguém. Estava muito empolgada. Já havia arrumado todas as minhas coisas - que eram poucas - dentro de uma mala e estava pronta esperando que Marco e Angel entrassem por aquela porta e me levassem, quando Ava gritou da sala.
– Sara, eles chegaram, pode trazer suas coisas.
– Já vou! - dei um salto da cama e fui o mais rápido possível com a minha mala. Os dois já estavam à minha espera na sala. Marco era um homem alto, de cabelo castanho e olhos profundos, tinha por volta dos 40 anos, e Angel era mais nova, ruiva e com o rosto cheio de sardas, era linda.
Ava já tinha explicado para as outras crianças o porquê de eu estar indo com eles, assim como fez com Amélia alguns anos atrás. Então eu apenas me despedi de Ava rapidamente, entrei no carro com eles e fui viver minha nova história entusiasmada.
Mal sabia eu que duraria tão pouco tempo.
Quando cheguei na minha nova casa, já tinham um quarto preparado para mim.
Angel abriu a porta do quarto e apontou para dentro.
– Pode arrumar suas coisas nesta cômoda e depois descer para o jantar - ela não era muito carinhosa, mas demonstrava mais afeto do que o Marco. Pra mim estava ótimo, era melhor do que qualquer coisa que eu já tinha tido acesso.
– Tudo bem! Eu já desço.
Do lado do meu quarto, era o quarto de John. O quarto dele era azul e estava cheio de brinquedos de menino.
O meu quarto tinha uma cor bege, uma cama e uma cômoda. A janela tinha vistas para a casa ao lado.
Lembro de ter enfiado minhas coisas na cômoda e descido as escadas correndo. Marcos estava na cozinha guardando algumas coisas no armário.
– Não desça a escada correndo, temos regras nessa casa e vamos conversar sobre elas.
– Desculpa, não vai mais acontecer - falei um pouco envergonhada. Eu já sabia que provavelmente eles já tinham uma rotina e regras na casa, e eu levaria um tempo até me acostumar com tudo, mas estava disposta a me esforçar ao máximo para conseguir me encaixar e viver bem com eles.
– Sara, quando não estiver na escola, terá algumas tarefas em casa, uma delas será tomar conta de John e ajudá-lo a fazer as tarefas. A partir das 21h os dois têm de estar na cama. É proibido assistir TV antes de fazer as tarefas da escola e só pode assistir 1h por dia. - Marco falou pacientemente as regras, dentre outras que fui listando na minha mente tentando não esquecer de nada.
– Certo. - murmurei.
– O jantar está pronto, vamos sentar - disse Angel.
Sentamos e jantamos em família, por um momento meus olhos arderam como se fossem lacrimejar, eu realmente não achava que seria possível ter essa oportunidade novamente. Depois de tudo que ouvi no lar de acolhimento, de que as pessoas preferiam crianças mais jovens e que seria um milagre alguma família me acolher antes que eu atingisse a idade de sair do lar.
– Obrigada pelo jantar. – murmurei enquanto dava a última garfada. Eles não conversavam muito à mesa, ficava me perguntando se era sempre assim, ou se era pelo fato de ser o primeiro dia com a minha presença na mesa. Levantei e fui lavar o meu prato e do John, essa era uma das coisas da lista de regras que eu deveria cumprir para ajudar em casa.
Quando terminei, nos despedimos e cada um foi para o seu quarto se preparar para dormir. As primeiras semanas foram assim, foram tranquilas. Eu ia para a escola de manhã, quando voltava almoçava e fazia as tarefas da casa e da escola. Ajudava o John com as tarefas dele, ele era três anos mais novo. Depois brincávamos um pouco e esperávamos Marco e Angel voltar do trabalho. John ia pra casa em uma van escolar. Eu voltava andando porque a escola era perto de casa.
Angel sempre tentava deixar o almoço quase pronto, e eu adiantava alguma coisa quando chegava pra eu e John almoçar.
Certo dia, eu não fui atenta o suficiente e esqueci que John não tomou banho antes deles chegarem. Ele ainda estava com uniforme da escola. Quando Marco chegou e viu John eu vi um lado dele que ainda não conhecia.
– Porque John ainda está com essa roupa? Você não tem capacidade nem de mandá-lo tomar um banho? - esbravejou ele com raiva pra mim. Fiquei tão assustada que agarrei na mão do John e levei ele direto para o banheiro e o fiz tomar um banho.
Quando voltei, Marco já parecia estar mais calmo. Angel chegou um pouco mais tarde nesse dia e esquentou o jantar para jantarmos. Jantamos em silêncio. A maior parte dos dias eram assim, o que eu achava que ia mudar, na verdade era a rotina normal da família.
Nesse dia, depois do jantar, quando levantei pra lavar meu prato, escorreguei e deixei o prato cair, fez um estrondo e todo mundo se assustou, na mesma hora John tinha levantado da cadeira pra me acompanhar e acabou furando o pé com um pedaço do caco. Começou a chorar, não foi grande corte, mas ele era meio manhoso.
Fiquei assustada, Marco empurrou a cadeira para trás e veio em nossa direção.
– Você não presta atenção em nada mesmo, garota. - me deu um empurrão para o lado a fim de chegar ao John. Minha perna vacilou e tombei para o lado, bati a testa no puxador do armário e senti o sangue quente escorrer pelo rosto.
Angel deu um salto da mesa e correu pra me levantar. Me levou até o banheiro, resmungando alguma coisa para Marco, mas eu não prestei muita atenção porque tava meio tonta. Pegou no kit primeiros socorros e me limpou o corte. Não foi nada de mais. Fez um curativo e me limpou.
– Como está Sara? Dói muito? Desculpa isso, ele não teve a intenção de te magoar, só ficou preocupado com John. - Eu assenti com a cabeça e segui ela de volta para a cozinha. Na maioria das vezes, Angel era simpática. Já tinha ouvido algumas noites o Marco erguendo a voz pra ela do quarto e tinha um pouco de pena dela. Mas não achava uma boa ideia interferir.
Voltei para a cozinha e comecei a juntar os cacos do chão. Marco já tinha tratado do pé de John. Ele terminou de jantar, colocou o prato na pia e subiu para dormir sem falar mais nada. Lembro de ter me sentido mal, não tive tempo para processar o que eu estava sentindo. Me sentia uma péssima pessoa por não ter conseguido cumprir minhas tarefas hoje. Mas também estava magoada pelo que tinha acontecido no jantar. Ele nem me pediu desculpas nem mostrou nenhum arrependimento.
Eles não eram capazes de demonstrar muitas emoções, então eu ainda não tinha conseguido criar grande vínculo com eles naquela altura. Na verdade eu imaginava que quando uma família me resgatasse seria tudo muito diferente do que eu estava vivendo naquelas semanas. Mas tentava me contentar com o que tinha, pensava que já devia ser muito difícil acolherem alguém que não era da família em casa.
Vez ou outra a assistente social nos faz uma visita. Uma semana depois daquele jantar desastroso, ela apareceu. Aquela semana tinha sido mais difícil. Marco parecia chegar sempre mal humorado em casa. Eu tentava sempre manter as coisas em ordem para ajudá-los. Minha testa ainda tinha um leve hematoma, mas estava quase cem por cento bem.
– Ei, como está? - pergunta ela logo que põe os olhos em mim - O que aconteceu com a sua testa? - perguntou com um ar de preocupada. Deve ter percebido em meu rosto também que não esbanjava a felicidade que talvez teria uma criança que acabou de conseguir uma família.
Marco vinha descendo as escadas quando ouviu a pergunta dela, e respondeu antes mesmo que eu pudesse abrir a boca.
– Caiu brincando com o John, são muito desajeitados.
Normalmente eu ficava na sala com eles durante a conversa, ela sempre perguntava como estavam indo as coisas, se tínhamos tido alguma dificuldade, como estava indo na escola. Acredito que eram perguntas padrões. Naquele dia Marco pediu para eu esperar no quarto. Angel me olhou com um olhar trêmulo e triste. Eu obedeci e subi para meu quarto.
Antes de ir embora, Emma, a assistente social me chamou e disse que no outro dia iria me buscar para ir ao psicólogo e fazer uma visita ao antigo lar de acolhimento. Achei um pouco estranho. Nenhuma das outras crianças que saía da casa, voltavam para uma visita. Mas assenti e esperei que viesse me buscar no outro dia.
No outro dia, quando ela apareceu na minha porta, Angel arrumou meu cabelo e me deu um abraço, que era raro de acontecer.
Lembro de que naquela época eu não gostava muito das idas à psicólogo, achava as perguntas dela sempre invasivas e me sentia desconfortável, mas hoje eu vejo como foram essenciais com o passar do tempo. Quando cheguei no consultório tive que esperar um pouco até que me chamassem. A Dra vestia um jaleco branco e a sala dela parecia um pouco mais colorida do que deveria ser.
– Olá Sara, uau, você é tão linda quanto me falaram. Sente-se - confesso que me senti um pouco feliz com o comentário, não costumava receber muitos elogios. Quando sentei, Emma sentou ao meu lado.
A partir dali começamos uma longa conversa sobre minha estadia na casa nova. E resumindo, me informaram de que eu teria de voltar a morar no lar de acolhimento. Era como se tivessem tirado o chão debaixo dos meus pés. A única coisa que eu conseguia perguntar era "porque?". Nenhuma das respostas que elas formularam pra me consolar me convenciam. Lembro de ter começado a me culpar compulsivamente, vasculhando cada memória em busca de erros que eu tinha cometido, à espera de encontrar algum que fosse tão terrível a ponto de terem decidido me devolver. Sei que essa palavra é pesada, mas foi realmente o que aconteceu.
– Eu sei que não fui perfeita com as tarefas e tivemos algumas brigas, mas eu juro que me esforcei para fazer o que era certo. Tentei ser parte da rotina e não ser um incômodo. Não faz sentido. - tentei justificar e as lágrimas escaparam por meus olhos. Me debrucei apoiando o rosto sobre as mãos e fiquei ali por um tempo.
– Nós sabemos querida, não é culpa sua, você não fez nada errado. - falou Emma com o ar triste e passando as mãos pelas minhas costas. Deixaram-me ficar naquela posição ainda por um tempo até me convencerem de que eu precisava voltar para o Lar.
Entrei naquele carro realmente derrotada. Sem esperanças. Me sentindo rejeitada. Abandonada. Como se tivesse sendo engolida por um buraco negro. Jurei na frente delas que nunca mais ia sair daquele Lar pra outra família. Que só sairía de lá quando não pudesse mais ficar lá.
Quando cheguei na casa, Ava me esperava na porta, já fazia um tempo que não via ela, lembro que parei na porta e fitei-a por um tempo.
– Seu quarto continua o mesmo, bem vinda de volta Sara. - disse com um pesar na voz.
Passei direto para o meu quarto sem dizer uma palavra. Quando cheguei lá, minhas coisas já estavam todas organizadas no armário, fico me perguntando se enquanto eu estava no psicólogo eles estavam aqui arrumando minhas coisas. Realmente não tinha hipótese alguma de eu os ter convencido a não voltar. Não que o lar fosse ruim que eu não quisesse ficar, mas eu sabia que no ciclo normal, eu não deveria estar nessa casa a tanto tempo.
Só conseguia sentir raiva desse sistema e daquelas pessoas sem coração.
Afundei meu rosto no travesseiro e chorei todas as lágrimas que eu podia até não ter mais nada pra colocar pra fora pelos olhos. Lembro de me sentir nauseada e com o estômago girando. Corri para o banheiro e coloquei pra fora também todo meu almoço. Lavei o rosto e os dentes, e fiquei me observando um tempo no espelho.
Meu cabelo estava bem maior do que quando cheguei no lar alguns anos atrás. Mas escureceu um pouco, o loiro parecia estar mais escuro. Meu rosto e meus olhos estavam completamente inchados. Os olhos vermelhos e marejados quase faziam parecer que meus olhos eram castanhos, mas na verdade são verde escuro. Lavei os olhos novamente, fui à cozinha, peguei uma maça e fui ao terraço da casa.
Aquele era o lugar que eu mais gostava. Eu tinha colocado uma cadeira, e sentava-me nela nos dias que estava mais reflexiva. Fui a procura desse lugar pra ver se meu coração encontrava um pouco de paz.
Pra minha surpresa tinha um garoto sentado nela. Ele estava de costas para mim, então não viu quando eu cheguei. Dava pra ver que tinha os cabelos pretos, e estava contemplando o pôr do sol. Quando ele percebeu que tinha mais alguém com ele ergueu a cabeça pra mim.
– Ei, sou o Jame. Você é nova por aqui não é? - falou num tom mais empolgado do que deveria.
– Não diria nova. Certamente estou aqui mais tempo que você. Essa cadeira é minha inclusive - respondi, dava pra sentir a tristeza saindo junto com a minha voz. Era inevitável.
Ele ficou logo em pé, deu pra perceber que era pelo menos um ano mais velho que eu. E era bonito. Realmente era bonito. Até fez eu me arrepender de ter subido no telhado com aquela cara. Eu nunca tinha me preocupado em como os meninos me viam, mas eu estava realmente preocupada naquele momento. Apesar de que tinham coisas piores me afligindo naquele dia.
– Ó, me desculpa, eu não sabia. Cheguei a poucos dias, e nunca tinha visto ninguém aqui, então tenho vindo aqui regularmente ver o pôr do sol. - ele se afasta fazendo sinal pra que eu sentasse na cadeira.
– Não se preocupe, está tudo bem, realmente a vista é deslumbrante - disse sentando-me na cadeira. Ele se apoiou com as mãos no muro e sentou de frente para mim, mas um pouco distante, e de costas para o pôr do sol.
Ficou me fitando por um momento como se tivesse perguntas para me fazer, até que eu desviei o olhar e foquei-o no pôr do sol, não estava afim de responder naquele momento, nem ser simpática com ninguém. Torci pra que ele ficasse calado ou fosse embora.
Fiquei me perguntando qual seria a história dele. Porque ele veio parar aqui. Se ele não tinha família também. Fui listando algumas perguntas mentalmente para lhe fazer mais outra hora.
Ficamos em silêncio. Parecia que ele compreendia pelo meu olhar que eu não estava para fazer naquele dia. Ele se virou um pouco de lado e voltou a contemplar o pôr do sol. Comi a minha maçã e fiquei ali sentindo a brisa do ar. Ainda estava bem frio. E tinha levado uma coberta pra me enrolar.
Ele estava vestindo um casaco que não era grande coisa. Acho que por isso deu um salto de cima do muro e se ajeitou para ir em direção a porta do terraço.
– Bem, acho que vou voltar para dentro antes de congelar. A propósito, você gosta de pôr do sol? - ele disse antes de se afastar e eu apenas assenti com a cabeça.
– Ava disse que hoje ia fazer sopa para o jantar. Você não vai querer perder. É a melhor sopa que eu já comi em todos os tempos. Ela coloca até carne. - disse ele quando chegou à porta, com uma empolgação na voz que eu achei até estranho.
Que vida será que ele tinha tido que ficava impressionado por ela colocar carne na sopa? Confesso que fiquei curiosa quanto ao Jame.
Enfim, resolvi ficar ali por mais um tempo antes de ir jantar. Só queria que aquele dia acabasse e que eu esquecesse que os últimos meses aconteceram. Quem dera eu pudesse apagar algumas coisas da memória. Até pensei em depois tentar me aproximar de Jame, ele parecia um garoto legal.