O vestido preto havia caído como uma luva em meu corpo, após eu emagrecer 4 kg. Enquanto me olhava no espelho, vi que meus olhos estavam vermelhos e senti que mais lágrimas queriam rolar em meu rosto. Consegui finalmente respirar fundo e em seguida peguei minha bolsinha preta, que sempre usava de lado, para guardar meu celular e outras coisas. Coloquei-a no ombro a fim descer as escadas, torcendo para que eu não chorasse mais do que já havia chorado durante toda a noite.
– Olá, querida! Conseguiu dormir um pouco? – Perguntou meu pai, o mais abatido de todos, assim que me viu.
Seus olhos que geralmente eram azuis, estavam com um tom cinzento, como se estivessem de luto individualmente, seus cabelos que eram escuros encontravam-se opacos e a postura tensa, como sempre ficava em situações que envolviam emoções. Balancei a cabeça em negativa e nos abraçamos. Ficamos naquela posição por um bom tempo e ouvi meu pai chorando acima da minha cabeça. Decidi então me aninhar mais ainda em seus braços grandes, como se dessa forma eu pudesse fazer a dor dele diminuir um pouco.
– Precisamos ser fortes! Ela iria querer isso. Somos apenas você e eu de hoje em diante e temos que nos unir mais do que nunca. – Ele fez uma pausa para respirar fundo. – Vamos ficar bem, um dia nós ficaremos bem! – Disse com a voz quase rouca.
Meu pai me afastou, olhou em meus olhos e depois me deu um beijo na testa. Juntos, seguimos para o carro a fim de irmos ao velório de minha mãe. Tudo o que eu sabia acerca do que havia acontecido foi o que os médicos nos disseram sobre um aneurisma cerebral que ela tinha e que veio a se romper enquanto dirigia, há mais ou menos uma semana.
O acidente que ela causou devido a isso não foi grande coisa. Ninguém morreu ou se machucou gravemente, o que deixou muitos confusos quando viram minha mãe morta dentro do carro. Como nossa família era bem conhecida na cidade, logo viram de quem se tratava e a levaram ao hospital, no entanto, assim que chegaram, declararam sua morte. O corpo ficou alguns dias com os médicos legistas, até que eles pudessem chegar à conclusão da causa do óbito e todos os documentos fossem preparados para o enterro.
Naquele dia fiquei até tarde na escola. Alguns professores, inclusive o diretor da escola ligou várias vezes para os meus pais, mas nenhum deles atendeu. O Sr. Hedges perguntou se havia mais alguém para quem ele poderia ligar e eu falei dos pais de Nícolas, meu melhor amigo desde os seis anos de idade. Quando minhas aulas já haviam terminado há mais ou menos três horas, a Sra. Sant'Anna chegou na sala do diretor, onde eu estava sentada em uma cadeira no canto, me perguntando onde estavam todos da minha família.
Me levantei rapidamente quando a vi entrando e a Sra. Sant'Anna correu para me abraçar, como sempre fazia ao me ver. Percebi que havia algo de errado e logo pensei que alguma coisa pudesse ter acontecido com meu pai ou minha mãe, afinal eles nunca se atrasavam para me buscar e se tivessem algum imprevisto, pediam para o Sr. ou a Sra. Sant'Anna me darem uma carona para casa.
– O que aconteceu? Onde estão os meus pais? Perdi minha aula de tênis hoje.
– Doreen querida, eu preciso lhe contar uma coisa... – A Sra. Sant'Anna trocou um olhar com o Sr. Hedges e entendi que se tratava de algo grave.
Assim que a mãe de Nícolas contou o que havia acontecido, pelo menos o pouco que sabia, só me lembro de tudo passar em câmara lenta e a senti me abraçando forte enquanto eu chorava desesperadamente. Alguns minutos depois chegamos ao hospital, onde encontrei meu pai, Nícolas e o pai dele. Eu e meu pai nos abraçamos e choramos sem cessar por um longo tempo.
Em seguida, um médico de cabelos brancos, se aproximou de nós cinco e nos contou que estava fazendo vários tratamentos com minha mãe há alguns meses, mas infelizmente os remédios não estavam surtindo efeito e o rompimento do aneurisma poderia se dar a qualquer momento. E foi o que aconteceu. Ela também não queria que soubéssemos que poderia morrer de repente, por isso manteve tudo apenas entre ela e a equipe de médicos que a atendia.
O que me deixou furiosa foi o fato de minha mãe não ter compartilhado conosco o que estava passando, guardando tudo para ela. Se soubéssemos o que estava acontecendo, com certeza ficaríamos tristes, mas também preparados. Afinal saberíamos o que poderia acontecer.
Ao chegarmos à igreja, papai e eu fomos direto para os bancos da frente e nos sentamos juntos. Nícolas Van Sant'Anna, sentou-se ao meu lado pouco depois e segurou minha mão. Trocamos um olhar repleto de sentimentos e ele me abraçou bem forte em seguida. Não importava qual fosse o momento, Nícolas estava sempre ao meu lado. Fosse quando eu tirava uma nota ruim no colégio ou quando matávamos aula para passearmos pela cidade, apesar de suas reclamações acompanhadas de lições de moral.
Ele era mais alto do que eu, desengonçado, de um jeito fofo e mais esperto do que a maioria. Tinha cabelos escuros e olhos castanhos claro, como os meus, e amava construir cidades em jogos do celular como o City Island 4. Gostávamos das mesmas bandas de rock e o melhor de tudo, partilhávamos o gosto pelo mesmo gênero literário, especialmente as histórias de época. No entanto, eu lia mais Jane Austen e ele George R. R. Martin. As notas de Nícolas eram sempre A, enquanto as minhas eram sempre C ou D, vez ou outra tinha um B ou A. Fora isso, nossas personalidades e até mesmo nossa aparência, com exceção de poucas coisas, eram bem parecidas tanto que às vezes eu me assustava.
Se Nícolas não tivesse a família vinda da Holanda e Itália ou se a minha tivesse algum parente holandês ou italiano, poderia apostar que éramos primos distantes ou irmãos separados ao nascer. Afinal, tínhamos a mesma idade e comemorávamos aniversário no mesmo mês. A diferença era somente o dia.
Ficamos sentados lado a lado até o velório terminar. Meu pai foi à frente ao final e agradeceu aos que foram apoiar nossa família, depois nos dirigimos ao o pátio da igreja. Havia uma mesa enorme com comidas variadas e, naquele momento, não entendi como as pessoas conseguiam comer em uma situação tão triste.
– Pegue, coma alguma coisa. Você está muito fraca! – Disse Nícolas com o tom de voz autoritário.
– Não! Eu não quero nada! – Fiz cara de nojo para a comida, apesar do cheiro inebriante que entrava em minhas narinas. Estava com fome, não comia há pelo menos dois dias, mas não estava no clima para degustar nada.
– Você precisa comer, Doreen! Precisa ficar forte para estar com seu pai daqui para frente. – Ele olhou em meus olhos como sempre fazia quando tinha razão e queria me convencer a fazer alguma coisa.
– Eu não estou com fome!
– Não perguntei se você estava com fome, disse que precisa comer! Vamos, coma logo!
Olhei para meu pai, próximo de uma mesa com algumas pessoas conhecidas e captei seu semblante obscuro, apesar do sorriso entre dentes. Analisei o prato de comida com bolo e salgados e lancei um olhar de súplica para Nícolas.
– Nem adianta fazer essa cara! Não saio de perto de você enquanto não comer.
– Tudo bem! – Peguei um salgado, coloquei na boca e comecei a mastigar. Uma ânsia de vômito tomou conta de mim, talvez pelo fato do meu estômago estar vazio há dias, e Nícolas tapou minha boca com a mão.
– Não vomite! Coma! – Ele arregalou os olhos e eu engoli com força. – Agora tome o suco, é o seu preferido.
Nícolas tinha um jeito mandão, característica adquirida de sua árvore genealógica holandesa. Sem falar que prezava muito por sua liberdade de expressão e não podia negar que ele a usava com sabedoria. Mas às vezes era irritante Nícolas sempre querer estar certo, essa era uma das poucas coisas que não combinávamos. Lancei-lhe um olhar franzido, lembrando-me de suas peculiaridades que apesar de achar todas chatas, detestava quando ele as deixava de lado.
– Eu te odeio!
– Eu também te odeio! Mas nunca vou deixar você se autodestruir. Estarei sempre aqui para te proteger! – Ele passou o braço em volta de mim, deu um beijo em minha testa e outro em meu olho, como sempre fazia quando queria acalmar a fera dentro de mim.