Alicia deixou primeiro Jamal na escola, que era antiga escola de Joana e depois seguiu para o colégio novo de dela, Alicia conversou com a filha incentivando a aproveitar o ensino médio, se conectar com novos amigos e aproveitar que neste ano o Tarso ainda vai estar lá para cuidar dela, eles são muito amigos, quase irmãos, sempre estão juntos, são confidentes. Joana passou pela catraca do Colégio São Marcos, como quem atravessava a fronteira entre o que já foi um sonho e o que finalmente se tornava realidade. Usando o uniforme novo - blusa branca de botão, saia de pregas azul-marinho, que batiam no meio das coxas, meias altas 3/4, e ainda tinha uma fita que formava um laço no colarinho da camisa - e isso não escondia o frio na barriga de quem estava começando o ensino médio. Mas não era só por isso. Era por ele, seu amigo quase irmão, que povoava sempre seus pensamentos. Depois de anos convivendo juntos nos almoços de final de semana, nas festas de família, nas viagens em que os pais se juntavam para fugir da rotina, ela finalmente estudaria na mesma escola que Tarso, não que isso já não tivesse acontecido antes, mas eles já estavam há dois anos sem estarem na mesma instituição, isso era um bônus porque logo ele iria para universidade e ficarão por cinco anos separados, se ele não fizer a especialização que tinha duração de mais dois, então seriam sete anos longe. Joana e Tarso cresceram juntos, literalmente. Desde sempre, pois quando ela nasceu ele já estava lá. Dividiam castelos de areia, sobremesas escondidas e até castigos coletivos. Todo mundo os via como irmãos, mas Joana em algum momento percebeu que ele não era seu irmão. E era exatamente aí que morava o problema. Ela andava pelos corredores de um novo mundo, mas com a esperança boba de que algum detalhe familiar a fizesse se sentir em casa. E então, como se tivesse sido convocado pelo pensamento dela, ele apareceu, o seu lar, ela sentiu que estava no lugar certo. - Sabia que ia te encontrar assim: toda arrumadinha, nervosa e atrasada - disse a voz grave, meio risonha, atrás dela. Joana virou com um sorriso contido. Tarso estava ali, já era um homem, ela se lembrou de que ele fez 18 anos na semana passada, ele era de fevereiro, como sempre, viajaram em família, para comemorar seu aniversário antecipado. Dessa vez foram para o frio, em Aspen e curtiram muito. Aconteceu que em um dia apenas os dois foram esquiar, porque seus pais preferiram ir andar pela cidade, com Jamal. Os dois ficaram impressionados com o quanto foi incrível curtir a neve, e na volta só tinha um vestiário disponível, eles não reservaram anteriormente, e não viram problema em se trocar juntos, porque tinha uma divisória entre os espaços do armário e do chuveiro. Ele foi para cabine do chuveiro e fechou a porta, quando chegou lá percebeu que não pegou a mochila com as roupas dele e sim a com as roupas dela, então voltou para trocar as mochilas, e quanto chegou ao espaço do armário acabou vendo Joana apenas de roupas intimas procurando suas roupas e ficou um tempo parado olhando para ela, sem reação, na verdade pensando em todo que ela estava despertando nele já algum tempo e não conseguiu se mover com medo de tomar uma atitude errada e estragar tudo. Joana foi quem fez a troca das mochilas e perguntou brincando sem graça, se ele queria um babador, eles riram envergonhados, ela por perceber Tarso admirando seu corpo e ele por ter sido pego em flagrante. Ele se virou e voltou para o chuveiro. Voltando a realidade Tarso estava ali com a mochila jogada em um ombro, o uniforme de jui-jitsu, calça amarrada na cintura, chinelo e camiseta, todo amarrotado e o mesmo olhar que ela conhecia desde criança - mas agora em um rosto mais marcado, com um corpo definido e aqueles olhos caramelo que a deixavam alucinada todas as vezes que a fazia se perder neles, pena que ela sabia que ele ia embora. - To nervosa nada. Estou... pronta para arrasar - ela respondeu, tentando parecer indiferente, como sempre fazia. - Primeirão, hein? Aproveita. É seu primeiro ano... e meu último. A frase dele bateu como uma verdade incômoda. E não era porque ele já estava abraçando ela pelos ombros mesmo todo suado, Joana já sabia. Ela tinha escutado no churrasco de aniversário dele ontem, quando os pais contaram com orgulho da bolsa que Tarso havia conquistado para jogar futebol em uma universidade nos estados unidos. Mas ouvir dele tornava tudo mais real. - Vai sentir minha falta - ela disse mais provocativa do que queria. - Já estou sentindo - ele respondeu, com aquele sorriso torto, aproximando o rosto dos cabelos dela para sentir mais de perto seu perfume, a encarando com olhos que pareciam querer falar mais do que havia dito. Ela riu, tentando disfarçar o impacto que ele sempre lhe causava. Tarso era o tipo de cara que fazia barulho até em silêncio. Craque do time de futebol, faixa marrom no jiu-jitsu, olhos caramelos que pareciam desvendar no profundo de quem ousasse encará-los por tempo demais, além ser moreno e alto. Enquanto eles caminhavam juntos pelos corredores, ele contou que teria um campeonato, ela falou do nervosismo do primeiro dia, e por um instante tudo pareceu normal. Dois amigos, dois irmãos de criação. Mas cada gesto, cada toque mesmo que não de forma intencional, cada silêncio entre risadas, gritava uma verdade que ninguém ousava dizer: eles estavam perigosamente perto do que nunca foi previsto. E o hoje o dia só estava começando Os dias seguintes passaram como um furacão calmo, se é que isso existe. A rotina nova, os horários diferentes, os professores desconhecidos. Joana tentava se adaptar à nova realidade enquanto sua cabeça se dividia entre o presente e o inevitável futuro que se aproximava com o fim daquele ano: a partida de Tarso. Na segunda-feira, já no primeiro horário, teve aula de filosofia. Do professor Marsal, um homem magro com cara de quem já viu muita coisa na vida, entrou na sala e soltou: - Vocês acham que existem verdades absolutas? Joana nem teve tempo de pensar. A menina do cabelo colorido atrás dela levantou a mão e soltou uma teoria sobre como as redes sociais moldavam a percepção da verdade. Foi quando Joana percebeu que aquele ano seria diferente de tudo. No intervalo, sentava com dois colegas novos e com sua amiga da escola anterior e visinha de rua, Alana, Clara, que falava sem parar e queria ser atriz, e Yuri, um garoto tímido que andava com fones de ouvido no pescoço e parecia ler um livro diferente todo dia. Tarso sempre aparecia, mesmo que fosse por cinco minutos, para checar se ela estava bem, fazer piada com a saia dela "tá torta desse jeito de propósito ou é tendência?" e roubar metade do seu suco. Ele ficava a observando de longe nos momentos em que não podia se aproximar. Aos seus olhos ela era uma princesa tirada dos livros, pele morena, cabelos compridos que caiam em ondas nas suas costas quase batendo no seu quadril, lábios carnudos sempre brilhantes, os olhos, eram como uma imensa floresta de tão verdes, ele sempre se perdia a admirando e agora não foi diferente, e ficou imaginando qual seria o gosto de seus beijos. Na aula de educação física, Joana teve que correr na quadra de areia. O sol parecia querer testar sua paciência. Tarso apareceu no meio da corrida, apenas para dizer: - Borá, atleta! Estou treinando para o campeonato e você aí andando como se estivesse no shopping! Ela gritou com ele e sorriu. Sempre sorria para ele. O tempo parecia correr mais rápido quando ele estava por perto. Mas havia algo diferente, mesmo nas conversas mais banais. O olhar dele, às vezes, durava segundos a mais. E o dela, também. Ela tentava fingir que nada estava mudando. Mas estava. E ela sentia tudo na pele. Teve dias que ele a levou embora e dias que ela esperou pela mãe. Alicia amava celebrar as pequenas conquistas, então marcou um jantar na sexta, já que domingo o almoço seria na casa da avó de Tarso, ela faria aniversário, eles estavam sempre juntos, seja na casa de Alicia e Oliver, pais de Joana e Jamal, ou na casa de Sophia e Leonardo, pais de Tarso, quando não, na casa dos avós, ou em restaurantes. A semana passou rápida e o jantar de sexta-feira era tradição. Pontualmente na primeira sexta do mês, as duas famílias se reunião, contudo neste mês foram dois jantares de sexta, mas isso não era problema, pois eles amavam passar tempo juntos, Alicia pediu para dona Maria, sua secretaria do lar, organizar tudo da casa e decoração, ficando ela mesma responsável de preparar a comida com sua amiga de longa data, elas sim eram como irmãs. A casa de Joana transbordava alegria, com as conversas e risadas das três mulheres na cozinha, mãe, filha e tia. Uma musica ambiente tocando ao fundo, a mesa posta com mais requinte e o dobro de pratos, comida que Alicia fazia ao lado de Sophia era saborosa e sofisticada - nada de delivery ou lanchinhos. Elas caprichavam nos temperos, nas receitas de família e na sobremesa que só elas sabiam fazer, eram as receitas secretas e os maridos ficavam na varanda conversando e saboreando suas bebidas. - Tarso vem hoje? - perguntou Jamal, vindo correndo pelo corredor, pois estava em seu quarto brincado, quando ouviu que seus tios haviam chegado, ficou esperando Tarso ir lá jogar vídeo game com ele, como não apareceu, Jamal veio conferir se Joana já tinha roubado a atenção de seu irmão mais velho. - Vem sim - respondeu Sophia, com um sorriso de lado para Joana, ela sabia que a sobrinha gostaria de perguntar. - Já já ele chega, ficou no treino de futebol até mais tarde hoje. O campeonato começa amanhã, e o time precisava ajustar as estratégias do jogo. Joana sentiu o coração acelerar como se ele fosse chegar para um encontro romântico, isso já vinha acontecendo há tanto tempo que nem se lembrava mais quando começou a se sentir diferente em relação a ele. Entretanto ela sabia que era só um jantar em família. Só um jantar. Ela tentou parecer indiferente, como sempre fazia, mas colocou uma blusa que a deixava mais bonita, um short de alfaiataria e passou uma maquiagem, para acentuar o quanto era linda, estar arrumada e perfumada denunciava o esforço. Tarso chegou cheirando a banho tomado, cabelo úmido, camiseta branca, bermuda e chinelo, mas estava lindo. Abriu um sorriso meio bobo no rosto ao ver Joana de avental, ajudando a sua mãe e sua tia na preparação dos pratos. - Uau, já está pronta pra casar - ele disse, ao passar por ela na cozinha, abraçando com uma mão em sua cintura e dando um beijo no topo de sua cabeça e pegando com outra mão uma coxinha de frango da travessa, esse era o jogo deles, sempre implicavam um com outro. - Já você, se não largar a mão de ser folgado, vai sair daqui sem sobremesa - ela retrucou, fazendo cara brava, com as bochechas vermelhas pelo que ele falou e fez. As adultas riam dos dois. Durante o jantar, as risadas vinham fáceis. Alicia contou uma história do tempo em que ela e a mãe de Tarso dividiam a mesma república na faculdade. Elas sempre repetiam as histórias de como se tornaram irmãs e de quando conheceram seus pais e resolveram se casar... Jamal ria alto, soltando gracinhas e interrompendo todo mundo, enquanto Tarso e Joana trocavam olhares cúmplices. Depois, ficaram todos na sala, com as luzes baixas, assistindo um filme antigo. Tarso e Joana se sentaram no mesmo sofá, separados por uma almofada que, a certa altura, desapareceu sem ninguém perceber. Em um determinado momento, as mãos se encostaram sem querer. Nenhum dos dois afastou. Foi sutil, quase imperceptível. Mas foi. Eles sempre foram assim nunca conseguiram ficar desgrudados por muito tempo, os pais meio que já sabiam no que isso iria dar. Quando o filme acabou, os pais de Tarso já foram se despedindo, saindo da casa e entrando no carro, ele se despediu com um abraço longo em Joana, o tipo de abraço que demorou a se desfazer. Que segura firme. Que diz tudo que as palavras ainda não disseram. Joana fechou a porta e encostou as costas nela, sentindo o calor daquele toque ainda presente. Talvez, pensou o problema nunca tenha sido o sentimento. Talvez o problema fosse mesmo... o tempo. Ou o pouco tempo que ainda tinham, mas o fato é, será que ele também nutria sentimentos por ela, ou pior se dessem esse passo, como ficaria a amizade deles, e se não dessem certo, eles ainda seriam amigos? São tantos questionamentos que se passavam pela mente dela, que às vezes parecia sair fumaça da sua cabeça. Joana não se deu conta de quanto tempo ficou imaginando todos esses cenários e sua mãe estava na frente da escada a observando e pensando até quando eles vão ficar apenas no amor platônico, era até engraçado ver sua filha suspirando pela casa só de falar no nome dele e quanto ele estava presente ela se fazia de distante. No dia seguinte foram todos acompanhar o primeiro jogo da temporada de Tarso, ele jogava na posição de centroavante, como sempre eles ganharam, não foi um jogo fácil, entretanto haviam se preparado bastante e conseguiram fazer todos as jogadas ensaiadas e venceram de 1 a 0. Quando acabou o jogo muitas pessoas entraram no campo para comemorar com o time e Tarso veio até família, foi abraçado por todos, Jamal pulou em suas costas em comemoração, depois de cumprimentar os familiares, foi até Joana a pegou no colo e a rodou, ao coloca-lá no chão falou em seu ouvido, fiz aquele gol para você, o único gol que aconteceu no jogo foi seu. Joana sentiu borboletas em seu estomago e deu um beijo na bochecha dele em agradecimento. E o ano só estava começando.