Capítulo 5 Simbiose ou Possessão

- Elano, você está bem? - Belluzzi se aproxima para ampará-lo.

Kelmax encara a Capitã com um olhar vago. Delicadamente, retira a mão dela de seu braço.

- Não precisa me amparar Capitã, nós estamos bem. - a voz de Bongail ressoa pela boca de Kelmax.

- Bongail? - Belluzzi e Gavirn falam ao mesmo tempo.

- Sim, somos nós. Quando toquei em Kelmax, nós criamos um vínculo místico que nos permite unir nossa natureza em um só corpo.

- Você está dizendo que está usando o corpo do Elano, é isso? - Pela primeira vez Belluzzi demonstra irritação.

- Não, claro que não. Estamos usando mutuamente, esse corpo. O Kelmax está muito bem. Pense no corpo como um meio de transporte.

- Nada disso. Saia daí imediatamente. Eu não autorizei isso. Saia logo. - Belluzzi aponta a arma laser para Kelmax.

Bongail não se abala.

- Capitã, por favor, não vê que assim só vai ferir o corpo do seu amigo? Eu nada sofrerei.

- Elano, está me ouvindo, se estiver faz um gesto. Manda um sinal pra mim! - Gavirn se desespera.

- Ah, Gavirn, você é sempre muito passional, isso vai acabar contigo um dia, sabia? Não precisa gritar, as funções sensoriais desse corpo estão em perfeito estado... Aliás, faz tempo que não vejo um corpo assim. Músculos vigorosos, percepção aguçada e, olha só, uma leve admiração pela Capitã. Giullia, você sabia que o Kelmax tem desejos sexuais contigo?

- Pra você meu caro, eu sou CAPITÃ Belluzzi. Agora liberte o meu oficial, ou eu...

- Desculpe, Capitã Belluzzi, mas essas ameaças vazias não me afetam em nada. É melhor tomar cuidado com essa arma. Você pode machucar alguém. - Bongail empurra a mira da arma para o lado.

Gavirn avança pra cima de Bongail e agarra seu pescoço.

- Sai daí, maldito! Sai! Anda! Sai logo...

Giullia puxa Gavirn, que solta o pescoço do anima-signa, ainda com marcas arroxeadas dos dedos do médico.

- Calma Gavirn, assim nós não vamos chegar a lugar nenhum.

Bongail dobra os joelhos, tentando respirar. Quase sufocando, ele inspira o ar para voltar a normalidade.

- Seu doido, quase nos mata. Eu já disse: qualquer violência física só vai prejudicar o corpo do Kelmax. Será que é difícil pra vocês entenderem isso?

- Espera, vamos manter a calma. - Giullia segura Gavirn e o afasta para apascentar os ânimos. - Diga então, Bongail, o que você pretende fazer com o corpo do Kel?

- Ah, olha só, agora eu estou entendendo a sua confusão. Vocês não são desse tempo... - Bongail conversa consigo mesmo (ou com alguém), ignorando a pergunta de Giullia. - Mas, como eu disse, não sei todas as respostas. Vou precisar de ajuda para colocar vocês a par da situação.

- Tudo bem, o que faremos então? - Giullia tenta controlar a situação.

- Olha, nós temos o Mago que pode ajudar, mas ele está em ZeroUm e eu vou precisar da ajuda de vocês para resgatá-lo.

- ZeroUm? O que é isso? Um lugar? - Gavirn demonstra impaciência.

- Sim, é onde os anima-signas são mantidos pelos users. - Bongail começa a procurar alguma coisa.

- "Anima-signa", "users", espera aí, você tem que nos explicar esses nomes.

- Anima-signas são os humanos que dividem o corpo conosco, tal como eu e o Kelmax agora. Os users são os humanos que mantém as máquinas funcionando. - Bongail fala enquanto vasculha os cantos da sala.

- O que você está procurando? - Giullia se incomoda com a intimidade de Bongail com a nave.

- Ah, não se preocupe, Capitã. Deixe-me contar-lhes sobre o compartilhamento de corpo: tal como um aprendizado, aos poucos eu vou assimilando a memória do Kelmax. Isso significa que, quanto mais tempo ficarmos unidos, mais vou ter contato com o conhecimento tácito dele, apesar de não compreender nada sobre esse tipo de raciocínio. Enfim, ... achei... - Bongail interrompe a explicação com um tom alegre.

Bongail apanha um cinto com vários apetrechos eletrônicos que o Kelmax utiliza. Depois veste sua roupa de exploração espacial.

- Ah, então era esse traje que a Capitã usava quando me salvou. E eu pensando que era alguma criatura da minha realidade, hahahaha! Vejam só.

Gavirn e Giullia ficam olhando para Bongail enquanto ele parece conversar consigo mesmo. O capacete, aos olhos de Bongail, era o "olho" que cobria toda a cabeça. Percebendo a intenção de Bongail, Giullia também começa a vestir seu traje, passa as mãos no cabelo amarrando-os novamente para cima. Apanha uma pistola laser, um emissor de PEM (Pulso Eletromagnético) e mais alguns apetrechos. Gavirn, também começa a se vestir, mas a Capitã não permite. Ela o segura carinhosamente e o obriga a se sentar.

- O quê? - Gavirn protesta.

- (Não, Derek, você ficará na nave, ainda está muito abalado. Além do mais, precisarei da sua ajuda.)

- (Mas, Capitã, deixe-me ir com vocês, eu posso ser útil lá embaixo!)

- (Não, meu amigo... olhe para mim) - Giullia toca o rosto de Gavirn carinhosamente. - (Você será mais útil aqui em cima, nos monitorando).

- (A senhora tem certeza? Lá fora pode ser muito perigoso. Nada está da mesma forma de quando partimos...)

- (Sim, eu sei. Por isso eu tenho que ir: precisamos de respostas. Ao mesmo tempo em que a sua cobertura nos dará a segurança para seguirmos em frente.)

Bongail se intromete entre os dois:

- (Capitã, só pra registrar: como eu estou começando a compartilhar as memórias do Kelmax, compreendo parcialmente o que vocês estão dizendo.)

Giullia e Gavirn trocam olhares.

- Tudo bem, chega de brincadeira, para onde vamos Bongail? - Giullia muda de postura subitamente e intima o anima.

- Primeiro, eu preciso saber onde nós estamos pra dizer qual direção tomamos. - Bongail olha para os monitores, como se quisesse reconhecer as imagens externas.

Giullia aciona o comando do pulso. Um holograma em 3D global brilha à sua frente. Ela aponta o dedo em um ponto específico. A imagem é ampliada. Depois ela levanta as duas mãos e centraliza os dedos, abrindo-os levemente. Mais uma vez a imagem é ampliada.

Bongail e Gavirn assistem a tudo em silêncio. Alguns segundos depois a Capitã faz um gesto em que gira a imagem para o lado de Bongail e aponta um local.

- Nós estamos aqui, deveria ser a antiga Cidade do Cairo, mas as formações continentais estão muito diferentes. Você foi resgatado aqui...

- Nossa, estamos bem distante de ZeroUm. Como conseguiram fugir pra tão longe em tão pouco tempo? - Bongail olha para o holograma calculando o espaço.

- Pouco tempo? Você está conosco há uma semana. - Gavirn responde imediatamente.

Dessa vez foi a expressão do rosto de Bongail que modificou radicalmente.

- Não...! - Ele se senta abatido.

- O que é agora? - Gavirn percebe a frustração.

- U-uma semana? Não é possível. Quer dizer então, que... e-eu, não sei... como pode...?

- O que houve Bongail? Você não parece bem. - Giullia se aproxima para confortá-lo.

Bongail olha para a Capitã e Gavirn com os olhos lacrimejantes.

- Eu não tenho certeza de que encontraremos quem procuro. Não sabia que havia passado tanto tempo...

- Está bem, já que o caso é de extrema urgência, não percamos mais tempo. Gav, partiremos imediatamente.

Gavirn consente com a cabeça e presta continência a Capitã. Depois se dirige ao posto de comando tomando o assento da líder. Rapidamente, ele aperta os comandos no painel da nave. Os motores são acionados. Gavirn olha para Giullia e Bongail. Aguarda o comando da Capitã:

- Você quer voltar ao ponto em que o resgatamos? - Belluzzi dirige-se ao anima.

Bongail perde-se em pensamentos por alguns segundos. Parece em transe. De repente, começa a se debater, sacode a cabeça furiosamente. Os movimentos fazem-no perder o equilíbrio e cai sentado no chão. Giullia e Gavirn olham assustados. O médico ameaça apanhar algum aparelho para analisar o estado de Bongail, mas Giullia acena para que ele fique parado.

Um grito de fúria desprende da boca de Bongail.

- GIO!!!!!!

- Elano, é você? - Giullia apressa-se em ampará-lo.

Com a cabeça apoiada nos braços da Capitã, Kelmax fala quase sufocando. A respiração forçada indica que ele está fazendo esforço máximo para falar.

- Ssso-socorrr...! E-eu estou aqui dentro... O-o colar, Gio, o co-co...

Novas convulsões. Dessa vez Elano começa a espumar pela boca. Gavirn salta para próximo a eles e traz um analisador biológico, ele escaneia o corpo de Elano, depois puxa uma seringa para aplicar em seu braço.

- O que é isso Derek?

- É um anestésico forte. O Elano está entrando em estado de choque. Preciso estabilizar os batimentos cardíacos.

Gavirn se levanta para preparar a dose, enquanto Giullia mantém o corpo do Kelmax sob seus braços para evitar que ele bata a cabeça no chão. Assim que se prepara para aplicar o sedativo, Kelmax segura a mão de Gavirn, recita uma palavra incompreensível, a seringa da vacina se transforma em uma corda que se contorce com velocidade envolvendo o pescoço do médico. Gavirn se assusta e cai no chão, com as mãos tenta se livrar do nó que o enrosca. Como se fossem puxadas por mãos invisíveis, a corda começa a apertar sua garganta.

As luzes começam a piscar com intensidade energética que emana no ar, a própria nave parece estar passando por uma turbulência, tanto que tremula. Giullia grita o nome do transmuto. Da mesma forma que começou, tudo fica calmo e a luz é restabelecida. Gavirn sente a corda afrouxar e senta no chão. A corda é transformada em líquido, escorre e retoma a forma de seringa.

Giullia fica perplexa com a situação e se afasta de Kelmax. De repente ele fica quieto, olhando para a Capitã e começa a gargalhar.

- Hahahahahaha! Vocês precisavam ver suas caras! Nossa, faz tempo que eu não me divertia tanto.

- Bongail? - Giullia se afasta do corpo.

- Sim, sou eu de novo. O seu amiguinho Kelmax é bastante persistente, hein? Ele precisa entender que: quanto mais rápido aceitar a situação, melhor será.

- Meu aplicador... - Gavirn ainda está assombrado com a mágica do anima.

Ignorando o apelo de Gavirn, Bongail se levanta, passa a mão na cintura, verifica se nenhum dos objetos que pegou se desprendeu do cinto. Ele age naturalmente como se nada tivesse acontecido. Giullia ainda para alguns instantes observando-o, ela faz sinal para que Gavirn aja naturalmente e volte ao seu posto. Esfregando o pescoço, Gavirn consente, mas mantém os olhos fixos em Bongail.

- Eu preciso saber como o Kelmax está. - a Capitã fala enquanto se arruma.

- Eu garanto que ele está bem. Não é um processo fácil para quem nunca dividiu um corpo conosco, mas a adaptação é rápida. Olha, ele só precisa se acalmar para perceber que não sofre nenhuma dor. Agora o Kelmax está em Absentia e, lá nada poderá machucá-lo.

Juntamente com as mãos, Bongail pronuncia algumas palavras e um pequeno portal brilha no ar, a imagem parece com o rasgo em tecido. Olhando para o interior da fenda dimensional, Giullia consegue distinguir as formas do amigo. Ele parece caminhar lentamente, com as mãos espalmadas a frente, como se estivesse em um lugar muito escuro. Ela balança a cabeça concordando com o anima.

- Certo, por hora vamos aceitar a sua palavra. Agora diga-nos, pra onde vamos. - Giullia mostra-se determinada.

- Aqui!

Bongail aponta o lugar onde eles o encontraram.

- Por que você simplesmente não se teleporta para lá? - Gavirn pergunta sem olhar para Bongail. E inicia os procedimentos de partida.

- Porque eu não tenho esse poder. Apenas consigo manipular a matéria. Sou classe B, lembra?

- Como se isso significasse alguma coisa para mim... - Gavirn resmunga enquanto traça a rota no painel de navegação.

Apesar da confusão, todos os sistemas da nave estão operacionais. Gavirn aciona os propulsores e trava a direção até o ponto determinado. A partida é suave.

                         

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