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- Gavirn, cadê minha rosca?
- O quê? Cara você precisa pensar antes de falar essas coisas. Pega muito mal!
- Para de palhaçada e devolve a minha rosca.
- É sério? Você vai insistir com essa linguagem de duplo sentido?
- Eu vou te esmurrar pra aliviar a minha fome.
- Está ali no micro-ondas, seu doido. Só dei uma esquentada pra você não comer fria.
Nesse momento o sinal do forno micro-ondas dispara. O homem faminto abre a porta, ele fica desconcertado, mas não dá muita ênfase ao juízo precipitado. Ele apanha seu petisco e põe no prato. Senta-se de volta à mesa de trabalho, onde estão a caneca e o notebook, em que estuda as leituras dos sensores externos.
- Kelmax, olha só quem resolveu dar o ar da graça...
A criança acorda arrebentando os fios dos instrumentos que supervisionavam a saúde física dela e os tubos intravenosos que a hidratavam.
- Acordou? - Kelmax se aproxima do colega.
- Espero que sim. Esses olhos abertos não são sinais de gente morta. - Gavirn ajuda a criança a retirar os fios e descartar os tubos.
O menino recém-acordado, se move com cuidado. Senta-se na cama com movimentos lentos e apalpa o colchão macio em que estava deitado. Toca-o como se fosse a primeira vez que se senta em alguma superfície confortável. Os homens conversando a sua frente não parecem oferecer perigo, por isso a sua atenção está voltada para o ambiente que o cerca.
As luzes piscando, o aroma doce do café, as fontes de luz, o som suave de uma ópera tocando, sem conseguir identificar a fonte de origem, a própria luz que não machuca seus olhos, tudo lhe parece agradável e confortador. O cômodo é realmente aconchegante, se comparado com o ambiente externo. O local é extremamente limpo e asseado, as paredes pintadas de branco e o ar é tão límpido que chega a ser refrescante. Aliás, a temperatura controlada em grau de conforto é mais um detalhe que impressiona. Apesar da boa sensação, sua mente custa a entender a circunstância em que se encontra.
- Gavirn, eu acho que ele não está nos vendo.
- Ou talvez não sejamos tão interessantes quanto a nave. Veja, é só uma criança.
O homem que anunciou o despertar do jovem tenta chamar sua atenção:
- Ei, rapazinho, tudo bem? Eu me chamo Gavirn, sou oficial-cientista, da Ark X, você me entende?
O jovem encara Gavirn como se estivesse se esforçando para compreendê-lo. Mas, logo volta a atenção para a roupa que usa: um tecido fino e levemente perfumado, macio de modo que não inibe seus movimentos. Lentamente levanta a mão, tateando o pescoço. Ao sentir o colar expressa uma sensação de frustração.
- Ei, você me entende? Será que ele é mudo Gavirn? - Kelmax fala articulando a boca e movimentando a mão à frente do rapaz.
O menino olha para o homem e aponta o colar, ainda trêmulo tenta balbuciar alguma palavra na boca, mas não fala nada.
Os dois homens se entreolham.
- Kelmax, eu acho que ele gostaria que nós retirássemos o colar dele.
- Parece que sim. - Kelmax se volta para o computador da nave. - Ark, você terminou a análise do pequenino?
[Sim, Sr. K. O corpo já não apresenta indícios de desidratação, mas, continua com forte anemia. A consciência da realidade está preservada. Não há sinais de mais nenhuma deficiência neurológica ou física. A queimadura da rajada laser já está cicatrizada.]
O som da voz do computador assusta o menino. Ele se encolhe a um canto da cama. Os olhos lacrimejam.
- Hei, hei! Calma, não é nada demais. É só o nosso computador. Você não precisa ter medo. - Gavirn suaviza o tom de voz para conquistar sua confiança e se aproxima do menino com gestos lentos.
- Ark, esse colar no pescoço dele, pode ser retirado? - Kelmax continua conversando com o computador.
[Processando o algoritmo Sr. K.]
Gavirn consegue abraçar o menino que continua tremendo muito. Enquanto acaricia a cabeça dele, olha para Kelmax, que está mais concentrado no mecanismo holográfico que o computador reproduz à sua frente.
- Olha Gavirn, ainda não tinha visto essa configuração. - Kelmax aponta para a imagem, chamando atenção do amigo.
- Sério? Será que eles avançaram tanto assim em apenas dez anos? Será possível?
- Sinceramente, isso está avançado demais.
- Se você, que era a maior autoridade em cibernética do mundo está confuso, imagine eu.
- Como assim: "era"? Eu morri?
- "Tô" falando porque você mesmo está com dificuldades para decifrar isso.
- Eu disse que nunca tinha visto e não que estou com dificuldades. Na verdade...
- O quê?
- Pronto, já achei. - Kelmax se levanta para pegar algum apetrecho no compartimento da nave. Um emissor de ondas ultravioleta.
Depois se aproxima de Gavirn e aponta o emissor para o colar do menino, que olha desconfiado para o que está acontecendo.
Gavirn se apressa em tranquilizar a criança. O afago carinhoso conforta o pequeno, construindo um sentimento de confiança entre ambos.
Após alguns segundos o colar se abre instantaneamente.
Ao sentir a liberdade do pescoço, a criança esboça um sorriso e estica os dedos como se quisesse tocar no tripulante. Kelmax olha para Gavirn, para saber se o amigo tem alguma objeção. Gavirn apenas balança a cabeça afirmativamente.
O toque da criança é frio, mas seus dedos parecem emitir alguma energia que percorre todo o corpo de Kelmax. Ele se afasta assustado, caindo sentado no chão. Gavirn se levanta rapidamente para apanhar seu amigo.
- O que foi Kelmax?
- E-ele, ele... - Kelmax aponta para a criança tremendo.
- Meu nome é Bongail, sou um transmuto, vim de Absentia. Peço que me perdoe, eu precisei tocar seu rosto para aprender a língua em que vamos conversar.
Kelmax e Gavirn se entreolham assustados.
- Ma-mas você é uma criança, como pode... - Kelmax tenta entender o que passa.
- Nem precisava fazer isso, nós temos implantes de tradutores universais. - Gavirn se intromete com uma informação.
- "Criança"? Nossa, faz tempo que não ouço essa palavra. Por favor, não se engane com esse corpo. Já tenho idade suficiente para merecer um título mais maduro.
- Espera aí. Você tem a consciência de um adulto e o corpo de uma criança?
- Na verdade eu não "tenho" um corpo de criança, fui colocado aqui dentro. - Bongail gesticula com os dedos no ar. Pontos de luz piscam à sua frente.
- Como assim, um tipo de possessão espiritual? O que é isso que você está fazendo? - Gavirn também faz esforço para entender.
- Não, um tipo de tecnologia que inibe a magia... Agora estou só matando a saudade dos meus poderes. Mas, eu também estou confuso, eu pensei ter visto uma criatura enorme com um olho envolvendo a cabeça, no entanto, vocês são iguais aos humanos daqui.
- Espera aí, o que você quer dizer com "humanos daqui"? O que é um "transmuto"? O que é Absentia? E cadê o restante da população? - Kelmax também está perplexo.
- Vocês não sabem o que aconteceu?
- Pelo jeito, nós perdemos os últimos capítulos da novela. - Gavirn tenta amenizar a situação.
- "Novela"? - Bongail fica curioso para entender a referência.
- Não liga para as besteiras do Gavirn. Eu me chamo Elano Kelmax, sou um Cientista da Computação, especialista em realidade virtual e esse é o Derek Gavirn, biólogo e médico. Mas, diga-nos o que está acontecendo?
Kelmax e Gavirn são dois jovens tripulantes da nave de exploração espacial Ark X. Ambos regulam em idade, Kelmax tem corpo atlético, moreno, cabelo cortado ao estilo militar, olhos castanhos escuros, extrovertido e sempre de bom humor, adora a própria profissão. Ele se perde por horas a fio investigando variáveis do mundo virtual. Gavirn é mais baixo, um pouco acima do peso, negro, cabelo militar, se mantém ocupado monitorando a saúde dos companheiros. O tipo da pessoa amiga, mas sempre nervoso e esperando o pior.
- Ora, eu estava sendo caçado e ia ser executado, quando uma criatura desceu do céu, daí em diante eu não lembro mais nada, até acordar aqui com vocês.
- Fui eu quem te salvou dos androides. De nada. - Uma voz feminina aparece, vindo da porta do quarto.
- Têm mais humanos? - Bongail se surpreende.
- Ah, sim, quero que você conheça Giullia Belluzzi, nossa Capitã. - Kelmax apressa-se em apresentá-la.
A mulher aparece na porta com um sorriso simpático, recosta-se no portal com uma xícara nas mãos, de onde exalava o doce aroma do café. Ela tem o rosto arredondado em traços finos, os cabelos negros presos em coque, os olhos verdes e brilhantes, o uniforme está arriado até a metade, as mangas enroladas na cintura e uma camiseta branca cobrindo o busto.
- Por que não começa nos contando a razão de você ser sentenciado a morte? - Giullia continua com sua voz suave, mas, firme.
- Ora, essa é fácil: porque eles não conseguiam mais extrair energia da minha magia.
- "Eles" quem? - Kelmax fica ansioso. - E como assim "magia"?
- Antes de respondê-los, por favor, me digam onde estamos? Quero saber se corremos perigo de ser emboscados pelas máquinas?
- Não se preocupe, a nossa nave está em modo de camuflagem total. Ninguém nos achará. - apesar da entonação serena a Capitã mantém uma postura de desconfiança.
A criança fica parada por alguns instantes, olhando para os três. Depois volta a cabeça para o céu e abre a boca. Súbito, uma luz surge do interior da boca e flutua no ar. A criança cai no chão. Gavirn apressa-se em ampará-lo.
- Ah, agora sim! Eu já estava ficando muito incomodado com esse corpo.
Gavirn olha para Kelmax e Giullia com dor. A criança deitada em seu colo está morta.