Capítulo 7 Deserto de Sangue (Ózis)

ATO I

No coração do céu, a imensa esfera de fogo primordial paira majestosa, sua chama colossal sendo a única barreira contra a consumação total do planeta pelo frio. Este Sol, um gigante ardente de luz e calor, banha Arcríris com sua luz tênue, lutando incansavelmente para afastar a mordida gélida do vazio cósmico.

Arcríris, um orbe de beleza congelada, jaz no confim do universo conhecido como o mais frio dos planetas. Sua superfície, um espetáculo de brilho e frieza, revestida com camadas sobre camadas de cristais translúcidos. Estes cristais, formados ao longo de eras, cobrem não apenas a superfície, mas se infiltram profundamente, entrelaçando-se com o próprio núcleo do planeta. Como veias de gelo, eles percorrem o interior de Arcríris, criando uma matriz complexa que irradia um brilho transcendental, emanando uma luz sutil que dança sobre a superfície gelada e ilumina o planeta com um esplendor congelado.

Nas vastas extensões de Arcríris, um fenômeno geológico único adiciona outra camada à sua tapeçaria natural: a areia vermelha. Espalhada por suas terras como um manto rubro, esta areia é dotada de propriedades divinas. Ela parece gerar um calor próprio, sutil mas persistente, que permeia o solo do planeta. Este calor, originário da própria areia, atua como um contraponto ao frio dominante, evitando que Arcríris se transforme em uma esfera completamente congelada no cosmos.

Esta areia vermelha, em sua singularidade, não só modifica o clima de Arcríris mas também lhe confere uma beleza desolada. As dunas e planícies de areia, com suas ondulações suaves e cor escarlate, contrastam dramaticamente com os cristais brilhantes que cobrem o planeta, criando um panorama de cores que é ao mesmo tempo estranho e maravilhoso.

Apesar dessa intrigante mistura de fogo e gelo, Arcríris permanece o mais inóspito dos planetas conhecidos. Até hoje, não há relatos de seres vivos que conseguiram chamar esse lugar de lar. Sua superfície, um estudo em extremos, parece repelir a vida, deixando o planeta como um enigma solitário no vazio do espaço.

No meio desse cenário de extremos, Tempórious se destaca. Com sua estatura elevada e postura ereta, sua pele alva e impecável, contrastando com a marcante sobrancelha escura e bem definida que arqueia ligeiramente acima dos olhos. Estes últimos são de um cinza cintilante e límpido, cercados por longos cílios, fixados no horizonte distante.

- Vamos logo! Este frio está me matando! - Tempórious exclama, seu fôlego se transformando em pequenas nuvens de vapor no ar gélido.

Ele esfrega as mãos vigorosamente, numa tentativa vã de gerar calor. Seus cabelos prateados, mesmo em desalinho pela ventania, emolduram sua testa larga, adicionando um toque de elegância ao seu semblante cansado. Seu nariz reto e lábios finos, normalmente em expressão neutra, agora se contorcem em desconforto pelo frio. As maçãs do rosto proeminentes de Tempórious ressaltam ainda mais sob a luz tênue, e sua mandíbula definida, mas não excessivamente quadrada, alinhando-se suavemente ao queixo firme.

- Fique quieto, Tempórious! Calma, A pressa não vai acelerar as coisas aqui - respondo com uma exasperação fatigada, sentindo o peso da sua impaciência como uma carga adicional em meus ombros já sobrecarregados. Minha voz, mais baixa que a dele, reverbera com cansaço. - Sabe como os cristais arcririsianos são resistentes. - As palavras saem de minha boca enquanto continuo a bater a lâmina da adaga contra os cristais teimosos. Cada golpe é firme, metodicamente calculado, mas os cristais parecem rir de meus esforços, reluzindo friamente sob o fraco brilho da colossal esfera de fogo no céu.

A adaga primordial vibra a cada contato com os cristais. - Mesmo usando a adaga primordial, talvez leve tempo para minerá-los. - A adaga, embora forjada para fins muito mais grandiosos do que a mineração, é forçada a se adaptar a esse papel indigno. A lâmina, cuja história está entrelaçada com a própria criação do Universo, agora é reduzida a um mero instrumento de escavação. - A adaga primordial não foi criada para isso. - murmuro, mais para mim mesmo do que para Tempórious, enquanto continuo a trabalhar nos cristais, cada golpe ressoando em frustração.

Enquanto esmurro a lâmina da adaga primordial contra os cristais resistentes, sinto uma irritação borbulhar internamente. - Eu deveria estar acostumado com isso - reflito, ouvindo mais uma vez a reclamação de Tempórious. - Sua impaciência é como o vento incessante de Arcríris - sempre presente, sempre mordendo.

O frio do planeta parece se infiltrar em meus ossos, tão penetrante quanto a ansiedade de Tempórious.

Olho para ele, notando seus dedos avermelhados pelo frio implacável. Seus ombros largos, mas não exageradamente musculosos, consistentes com seu corpo esbelto e tonificado, se encolhendo. - Concentre-se - repreendo-me internamente, tentando afastar a irritação. - Este é o caminho que escolhemos, e reclamar não vai mudar nada - com esse pensamento, continuo a minha tarefa.

- Acho melhor eu patrulhar enquanto você termina - Tempórious anuncia.

- Claro, vá. Mas lembre-se, se topar com algum aliado de Máterum, volte e me avise, não tente lutar sozinho - digo, minhas palavras se misturando com o sopro gelado do vento. Enquanto falo, continuo a trabalhar nos cristais, minha atenção dividida entre a tarefa e a preocupação com Tempórious. No entanto, quando levanto os olhos, percebo que ele já se foi, minha advertência se perdendo na vastidão vazia e fria. Sinto uma pontada de frustração por ele não ter me escutado, misturada com uma preocupação inquietante. - Ele sabe se cuidar... eu espero - penso.

A solidão de sua ausência é imediata, e o silêncio que ele deixa para trás é quase tão penetrante quanto o frio que nos rodeia. Respirando fundo, foco novamente nos cristais, sentindo o peso da responsabilidade e a urgência de nossa missão ainda mais agora que estou sozinho.

Nota de rodapé

Areia vermelha - um elemento singular no mundo de Marum, assemelha-se à areia comum em textura, mas é distinta em sua cor vibrante de vermelho-sangue. Esta peculiar areia é dotada de propriedades curativas divinas, capaz de acelerar o processo de cicatrização de feridas quando aplicada diretamente sobre elas. Além de suas virtudes medicinais, a areia vermelha desempenha um papel crucial no equilíbrio climático de Arcríris: possui uma habilidade extraordinária, ainda desconhecida pelos deuses, de gerar calor. Essa capacidade térmica impede que o planeta sucumba às temperaturas extremamente baixas durante suas longas e rigorosas noites glaciais de seu deserto, mantendo assim a vida, ainda que inabitável, de seu ecossistema.

ATO II

À medida que o sol primordial começa seu lento declínio no horizonte de Arcríris, sua luz dourada se desvanece em tons de laranja e vermelho, espalhando sombras longas e frias sobre a paisagem. A descida do Sol não é apenas um lembrete da passagem do tempo, mas também um prenúncio do aumento do frio implacável que em breve envolverá tudo.

Sinto o frio se intensificar, insidioso, infiltrando-se no ambiente à medida que a escuridão se aproxima. O ar, já gelado, torna-se cortante. Cada respiração se torna mais visível, formando nuvens de vapor que se dissipam rapidamente no ar congelante.

Olho para os trapos finos que cobrem meu corpo, inadequados para o frio que se intensifica. Eles tremulam fracamente com cada movimento que faço, oferecendo pouca proteção contra o gelo que começa a se formar em minha pele. O tecido, já gasto pelo uso e pelo clima, parece quase zombar de minha situação, sua ineficácia tão clara quanto o resto de cristal que tento minerar.

Meu trabalho com os cristais se torna cada vez mais difícil, meus dedos começam a perder a sensibilidade, e cada golpe na adaga primordial se torna uma luta. Sinto a rigidez se apossar de minhas articulações, dificultando a tarefa que já era árdua. A cada impacto da adaga, uma dor aguda percorre meus braços, misturando-se ao crescente desconforto do frio.

- Preciso terminar isso rápido - penso, um senso de urgência se misturando ao desconforto físico. A ideia de ser pego pela noite neste planeta inóspito, sem Tempórious por perto, traz um receio surdo e crescente.

A escuridão se acomoda ao redor, e a noite de Arcríris cai como um véu pesado, envolvendo tudo em sua sombria quietude. Ergo a cabeça, surpreso com a rapidez com que o crepúsculo se instalou, e uma sensação de desorientação me atinge. - Já anoiteceu? Quanto tempo será que se passou? - Questiono-me. A exaustão de horas a fio de trabalho árduo pesa sobre mim como uma capa, cada músculo do meu corpo gritando por descanso.

Com movimentos lentos, fruto do cansaço que se acumulou em meus ossos, volto-me para a tarefa de recolher os cristais. Agacho-me, sentindo a rigidez em cada articulação, e começo a colocar os cristais em duas grandes bolsas feitas de folhas resistentes. A tarefa é mecânica, mas minha mente está em outro lugar - com Tempórious. - Ele deveria ter voltado já - penso, sentindo uma pontada de ansiedade. - Será que ele encontrou algum problema? Algum perigo? Espero que ele não tenha sido capturado. - A preocupação enchendo minha imaginação enquanto amarro as bolsas com mãos trêmulas e dedos entorpecidos pelo frio.

Levanto as sacolas, colocando-as sobre os ombros. Com um olhar inquieto, examino os arredores, a luz fraca do crepúsculo mal iluminando a vasta extensão de cristais e areia vermelha. A preocupação por Tempórious se transforma em determinação, e com um suspiro pesado, começo a caminhar, partindo em sua busca.

- Tempórious, onde você está? - Pergunto a mim mesmo, meus olhos vasculhando a escuridão, procurando qualquer sinal de meu companheiro. O frio da noite se aprofunda, e com ele, o medo de que algo ruim tenha acontecido a Tempórious.

Enquanto avanço pela paisagem gelada de Arcríris, uma mudança sutil no ambiente chama minha atenção. A característica superfície cristalina do planeta dá lugar a uma vastidão nua, desprovida dos habituais cristais reluzentes. Meus passos se tornam cautelosos, meus olhos varrendo a área com uma mistura de curiosidade e apreensão. - Isso não é normal - reflito, sentindo uma onda de estranheza percorrer minha espinha. O lugar parece um enigma, uma anormalidade no meio da uniformidade gélida de Arcríris.

Meu coração bate mais rápido, alimentado pelo mistério e pelo desconhecido. A ausência dos cristais é tão desconcertante quanto a presença de um novo perigo oculto. - Tem algo estranho - penso, meu instinto me alertando de que algo não está certo.

De repente, um barulho alto e inesperado irrompe atrás de mim, cortando o silêncio sepulcral. Viro-me rapidamente, a adrenalina inundando meu corpo. - Quem está aí? - Exclamo, colocando as bolsas pesadas no chão.

Meus olhos rapidamente se fixam em uma peculiaridade na areia vermelha, uma linha fina e precisa, como se traçada por algum instrumento afiado. Meu coração bate mais rápido, percebendo que esse rastro é recente, um sinal de que não estou sozinho. Com cautela, sigo o traço com o olhar, cada centímetro da marca aumentando a tensão em meus ombros.

A linha serpenteia pela areia, uma trilha misteriosa que me leva a uma descoberta ainda mais surpreendente. No final dela, quase emergindo das sombras da noite, está um pequeno ser azulado. Seus braços estão cruzados sobre o peito, e ele me encara com uma intensidade desafiadora.

O ser é de uma cor azul profunda, quase como se fosse esculpido do próprio céu noturno de Arcríris, marcado por linhas intrincadas que se assemelham a raízes, pulsando com energia viva. Seus olhos brancos de um vazio penetrante me encaram, quase como se ele pudesse ver através de mim. - Quem é essa criatura? O que ela quer? - Estas perguntas giram em minha mente, enquanto permaneço imóvel, tentando decifrar suas intenções.

As feições de seu rosto são afiadas, com maçãs do rosto proeminentes, orelhas pontudas. Os músculos dele ondulam sob a pele, as veias esbranquiçadas proeminentes nos braços e torso, e seu peito e abdômen exibem uma anatomia tenebrosa, evidenciando sua excepcionalidade.

A voz da criatura azulada rompe o silêncio, suas palavras carregadas de um tom maligno. - Pelo visto tiveram a mesma ideia de Máterum - diz ela, um leve traço de sarcasmo tingindo sua fala. Sobre suas costas repousa uma espada dourada colossal, desproporcional ao seu tamanho diminuto.

- Onde ele está? - Pergunto, minha voz firme, mas internamente, uma onda de preocupação começa a se formar. Meus dedos tocam a bainha da adaga primordial, um gesto lento, preparando-me para qualquer eventualidade.

- Ele quem? Ah, entendi! Está falando do deus de cabelos prateados, não é? - O ser azulado responde com um tom de zombaria, claramente se referindo a Tempórious. Ele começa a avançar em minha direção, seus passos lentos, mas seguros. - Seu amigo está morto! - As palavras caem como um golpe, pesadas e cruéis.

A revelação me atinge com força, um misto de choque e negação inundando meus pensamentos. - Não, isso não pode ser verdade - penso, lutando para manter a compostura. Observo a criatura com mais atenção, notando sua estatura baixa em comparação à minha. Ele veste dois cipós grossos enrolados dos ombros ao torso, formando um "X" que sustenta a espada colossal em suas costas. A lâmina arrasta pela areia vermelha, dividindo-a em duas, um visual da desproporção entre o ser e sua arma.

A tensão aumenta a cada passo que ele dá em minha direção. Estou em alerta máximo, a mão ainda sobre a bainha da adaga, pronta para reagir. Meu coração bate acelerado, não só pela ameaça iminente, mas também pela possível perda e pela raiva que começam a fervilhar dentro de mim com a notícia da morte de Tempórious. A incerteza sobre a veracidade das palavras do ser azulado adiciona um elemento de receio as emoções que me envolvem.

- Sua presença é intimidante, sem dúvidas ele deve ser um dos planetas-vivos que Theos mencionou - penso, ignorando a falácia do planeta-vivo e apertando o cabo da adaga.

À medida que a tensão cresce, a atmosfera ao nosso redor parece condensar-se em uma expectativa palpável. O ser azulado, com um sorriso torcido de predador, anuncia sua intenção fatal. - Não se preocupe, vou reunir você ao seu amigo no além - sua voz é um sussurro cruel, cheia de ameaça.

Com uma agilidade surpreendente, ele retira a espada colossal de suas costas. A lâmina dourada reluz brevemente sob a luz do céu estrelado de Arcríris, antes de ser arremessada em minha direção com uma força devastadora. A areia vermelha se levanta em uma nuvem ao redor de seus pés, como se o próprio planeta reagisse à iminente violência.

Instintivamente, salto para o lado, evitando por pouco o golpe vertical da espada. A lâmina corta o ar, um zumbido mortal que ressoa na noite silenciosa. No entanto, a velocidade e a força da criatura são impressionantes, e antes que eu possa me recuperar, ele se lança em um movimento giratório no ar, a espada descrevendo um arco mortal.

Sinto o golpe antes mesmo de vê-lo. Uma dor lancinante irrompe em meu braço esquerdo, seguida por um calor úmido e viscoso que escorre pelo meu abdômen e coxa. Olho para baixo, horrorizado, ao perceber que meu braço esquerdo foi arrancado, pendurado apenas por alguns tendões. O sangue jorra em um ritmo frenético, pintando a areia vermelha com tons ainda mais escuros de vermelho.

O planeta-vivo, agora um artista de carnificina, crava sua espada no solo com um estrondo, levantando mais uma nuvem de areia. Ele agarra o cabo da espada e, com um olhar de satisfação sombria, desfere um chute violento em meu peito. O impacto é como um movimento final, esmagando meu esterno e forçando o ar para fora dos meus pulmões. Sou lançado ao chão, o impacto fazendo estalar meus ossos e enviando ondas de dor por todo o meu corpo.

Caído na areia, cada respiração é um tormento, e a visão do meu próprio sangue mesclando-se à areia me deixa atordoado. A dor é avassaladora, recheada pela agonia física e o choque emocional pela brutalidade do ataque. O céu estrelado acima de mim gira, e os grãos de areia vermelha parecem dançar em um balé macabro, refletindo cada estrela como milhares de olhos observando minha derrota.

ATO III

A violência do confronto, a rapidez com que tudo aconteceu, me deixa paralisado, tanto fisicamente quanto mentalmente. Luto para manter a consciência, enquanto o sangue continua a fluir, formando uma poça ao meu redor.

A zombaria da criatura azulada corta o ar frio e denso de Arcríris. - Esperava mais de um dos primogênitos de Máterum! - O escárnio de sua voz cospe em minha vulnerabilidade, enquanto ele descansa casualmente contra a espada que ainda está fincada na areia, manchada com meu sangue. Ele olha para mim com desprezo, como se estivesse desapontado pela facilidade da vitória.

Deitado no chão gelado, sinto o peso esmagador da derrota. Meu corpo se afundando na poça de sangue que se alastra. O lugar onde meu braço esquerdo deveria estar arde com uma dor insuportável, um vazio que pulsa com cada batida do meu coração. O corte profundo na coxa e no abdômen enviando ondas de dor aguda através do meu corpo.

Contra toda a lógica e toda súplica do meu corpo ferido, começo a me levantar. Apoio-me no braço direito, que treme sob o esforço, como um galho prestes a se partir. A força para me erguer vem de um lugar desconhecido, alimentada pela adrenalina e pela recusa em aceitar a derrota. Meus olhos, embaçados pela dor, se fixam no toco sangrento do meu braço amputado. A visão é grotesca, os tendões expostos, a pele rasgada irregularmente.

Levanto-me trêmulo, ofegante, cada respiração um desafio. O sangue escorre pelo que restou do meu braço, pingando na areia, formando um rastro sombrio. A dor é quase insuportável, uma tortura constante que ameaça me dominar. Mas, apesar da agonia física, não me permito desistir. A humilhação de ser derrotado tão facilmente, a ameaça à minha vida, tudo isso alimenta um desejo ardente de resistir, de lutar, de sobreviver a essa noite cruel em Arcríris.

Cada respiração minha rasga o ar gelado de Arcríris, pesada e irregular, uma névoa sombria que se eleva de meus lábios trêmulos. Sinto o desespero me cercando como um espectro impiedoso, sua presença escura ameaçando me engolir por inteiro. A dor, o medo, a incerteza, tudo se mistura em um desespero que ameaça me dominar. - Como isso foi acontecer? - A pergunta ecoa em minha mente, uma voz trêmula de incredulidade e pavor.

Com um esforço delirante, forço a calma sobre mim mesmo. - Calma. Calma! CALMA! - ordeno mentalmente, tentando afastar o pânico que se alastra. Minha mão direita, agora a única que me resta, move-se com determinação trêmula. Desfaço a bainha da adaga e, com movimentos ágeis, mas dolorosos, tampo o coto sangrento do meu braço esquerdo. - Não vai durar muito, mas é o suficiente por enquanto. - murmuro, cada palavra um esforço, uma tentativa de me manter focado e lúcido apesar da dor lancinante.

Olho para o ser azulado, percebendo sua postura relaxada caçoar do meu estado . - Ele é muito veloz, nem fui capaz de ver seus movimentos. - reconheço, a realidade da situação tornando-se cada vez mais clara. Apesar da dor insuportável e da perda de sangue, me esforço para ficar de pé, usando toda a minha força de vontade para não cair.

Seguro a adaga primordial com firmeza em minha mão direita. - A luta... a luta ainda não terminou - declaro, minha voz um aviso rouco de desespero. - Preciso distrai-lo o mais rápido possível, senão acabarei morto - penso, enquanto uma estratégia desesperada começa a se formar em minha mente. Cada movimento é calculado, cada pensamento focado em sobreviver a essa luta desigual. A dor e o medo se transformam em combustível para minha persistência.

Meus pés descalços afundam na areia vermelha, cada grão parecendo se unir à minha causa. Olho para o meu oponente, cujos olhos brancos parecem ausentes de sentimentos. Ele se move com uma confiança arrogante, certo de sua vitória. Mas mesmo nesse estado de fraqueza, recuso-me a ser uma presa fácil.

A adaga primordial em minha mão direita é o último fragmento da minha resistência. - Ele pode ser mais rápido, mas não parece muito inteligente. Porém, não vou conseguir ganhá-lo neste estado. Tenho que fugir - planejo rapidamente, minha mente trabalhando febrilmente apesar do caos ao redor.

O planeta-vivo, em sua arrogância, parece se divertir com a situação. - Sinceramente. Até que estou bastante impressionado - ele admite, um sorriso zombeteiro se formando em seus lábios. - Não achei que resistiria ao ataque da espada primordial - diz, seus olhos azuis profundos fixos em mim, o sorriso desaparecendo, substituído por uma expressão sombria - Infelizmente, tenho que acabar logo com isso. Não fique assustado, mas saiba que só um sairá vivo desta noite. E já lhe adianto: serei eu - afirma, e com um movimento ágil, arranca a espada da areia, levantando uma nuvem de poeira vermelha.

Ele avança, a espada gigantesca, com um assobio ameaçador, rasga a noite, criando um rastro de vento e areia em seu caminho. Seu ataque é veloz, mas previsível, assim consigo antecipá-lo e, ignorando a dor lancinante em meu corpo, recuo rapidamente. Salto para trás, a areia vermelha dispersando sob meus pés, evitando por pouco o golpe que teria sido fatal. Mantendo uma distância segurando entre nós.

- Arf! Arf! Se ele me acertar mais um ataque, será meu fim - penso freneticamente, meus olhos vasculhando o ambiente em busca de algo, qualquer coisa, que possa servir como distração e me proporcionar uma chance de fuga.

O planeta-vivo, percebendo meu distanciamento, exclama com fúria. - Não fuja! - Ele se lança em minha direção com velocidade. A areia vermelha é jogada para cima com a força de seu avanço, formando uma cortina de poeira.

No último segundo, com um impulso desesperado, salto para o lado, evitando por pouco o golpe. Em um movimento rápido, quase instintivo, retalho o ombro do planeta-vivo com a adaga primordial. A lâmina corta a pele azulada, abrindo um ferimento profundo que imediatamente começa a expele sangue, um líquido escuro que se mistura à areia vermelha abaixo.

A expressão de ódio do ser azulado amedronta a escuridão da noite. Ele solta a espada, o objeto pesado caindo na areia com um baque surdo. Meus olhos se fixam na arma, vendo nela uma oportunidade. Com um esforço doloroso, me lanço em direção à espada, mas a dor intensa e avassaladora de meus ferimentos me trai. Meu corpo, traído pela perda de sangue e pelo trauma, cai de bruços no chão.

Caído, enfrento a realidade da minha vulnerabilidade. Cada grão de areia sob meu rosto parece zombar de minha situação, enquanto o sangue continua a fluir. Levanto o olhar, vendo o planeta-vivo se recuperar, o sangue escorrendo de seu ombro ferido, seus olhos me encarando com uma ferocidade vingativa. A espada, agora fora do meu alcance, parece um vislumbre cruel do quão perto estive da virada, e quão rapidamente ela me foi arrancada.

Exausto e ferido, minha situação se torna cada vez mais desesperadora. Com um grito rouco de desafio, ordeno ao meu corpo debilitado: - LEVANTA! - Mas a realidade é implacável; minhas pernas não respondem, um formigamento sinistro substituindo qualquer sensação. Com a adaga primordial firmemente presa entre os dentes, começo a me arrastar pela areia, cada movimento uma luta contra a dor e a fraqueza.

Antes que eu possa avançar, o planeta-vivo, como uma sombra antagônica, me alcança. Ele me pressiona brutalmente contra a areia, enterrando meu rosto no solo vermelho. A lâmina da adaga corta o interior da minha boca, o gosto metálico do meu próprio sangue se misturando com o sabor amargo da areia.

- Mandei não fugir! - Ele exclama, sua voz um trovão de raiva. Com uma mão cruel, ele agarra meus longos cabelos, puxando minha cabeça para trás e colocando meu pescoço vulnerável adjacente à lâmina fria de sua espada. A sensação do metal contra minha pele é um final aterrador de minha situação precária.

Em um ato de desespero, murmuro um - Mova-se! - quase inaudível, retiro a adaga de minha boca. Com um movimento rápido, corto parte dos meus próprios cabelos e, em um reflexo de sobrevivência, lanço a adaga com toda a força que me resta em direção à cabeça do planeta-vivo.

Para meu desespero, ele reage velozmente, interceptando a adaga antes que ela possa atingir seu alvo. Seus olhos exibindo um triunfo cruel enquanto ele segura a adaga, agora um troféu de sua superioridade.

A areia vermelha em volta de nós é marcada pelo confronto, manchada com sangue. A Gáilus de Arcríris ilumina a cena, sua luz fria e distante lançando sombras longas e sinistras, enquanto a batalha alcança seu clímax cruel e visceral.

A brutalidade do planeta-vivo se manifesta com um chute devastador que atinge meu rosto. A força do impacto é tão grande que sou lançado para trás, o mundo girando em uma tormenta de dor. Meu nariz quebra com um estalo horrível, o sangue jorrando livremente, espalhando-se sob meu torso.

Antes que eu possa sequer tentar me recuperar, ele executa outro chute, desta vez atingindo minha barriga com uma força contundente. Uma dor aguda irradia pelo meu abdômen, como se minhas entranhas estivessem sendo rasgadas.

Ele se aproxima de mim com um olhar macabro, seus olhos brancos e puxados fixos com semblante vazio de bondade. - Máterum solicitou que eu levasse um dos filhos comigo, caso encontrasse - ele diz. - No entanto, vou te matar aqui mesmo.

Incapaz de me conter, xingo-o, a raiva e o desespero se rendendo à dor insuportável. Em um ato desesperado, encho minha mão de areia e a lanço em seu rosto. Mas ele cobre rapidamente o rosto com o braço.

- Que golpe baixo, Ózis - ele zomba, desferindo outro chute violento em meu peito. O golpe é tão forte que sinto como se cada osso do meu peito estivesse se quebrando, o ar sendo novamente forçado para fora de mim.

Ele então sobe sobre meu corpo, ajoelhando-se sobre meu peito, aumentando ainda mais a pressão e a dor. - Me desculpa - pede, com um rosto desdenhoso. - Isto não é pessoal, Ózis. Eu só te acho... perigoso demais para ficar vivo - suas últimas palavras acompanhadas de um riso irônico.

Começo a reclamar, mas sou silenciado por uma coronhada brutal da adaga na minha testa. A dor explode em minha cabeça, deixando-me desnorteado, minha visão piscando entre a luz e a escuridão.

- Quieto! - ordena o planeta-vivo, sua mão apertando meu pescoço com uma força implacável, enquanto manipula a adaga primordial em meu abdômen, causando um tormento indescritível, a lâmina cortando a pele e desenhando na carne a figura de dois medianos círculos cerrados entrelaçados.

As lágrimas involuntárias se misturam ao sangue em meu rosto, enquanto suplico por misericórdia com uma voz rouca e fraca. As mãos trêmulas tentam em vão segurar o pulso dele, mas a diferença de força é abismal.

A cena é um pesadelo de dor e desespero, a cruel realidade de um deus caído diante do poder avassalador de seu adversário. A noite de Arcríris testemunha um espetáculo de violência e sofrimento, um momento gravado na memória do planeta, tão sombrio e intenso quanto as estrelas que brilham indiferentes no céu.

A crueldade do planeta-vivo se revela não apenas em seus atos violentos, mas também em sua indiferença. Após terminar seu ato de tortura, ele casualmente limpa a lâmina ensanguentada da adaga no meu torso ferido. O zérum frio arrasta-se pela minha pele, reabrindo feridas e espalhando mais sangue sobre a areia vermelha, como se estivesse assinando sua obra de dor com um toque final de desprezo.

Com uma leveza perturbadora, ele se ergue, uma gargalhada fria escapando de seus lábios. - Na verdade, acho que é pessoal sim - confessa ele, olhando para baixo, para mim, com um sorriso sádico. - Este símbolo te lembrará da minha superioridade e de minha benevolência, pois decido não te matar. Deixarei isso na mão do destino - diz ele, claramente se deliciando com as lágrimas de sangue que escorrem dos meus olhos.

Sua voz é cheia de uma ameaça fria enquanto ele continua: - Se por acaso sobreviver, saiba que na próxima vez que nos encontrarmos, não terá a mesma sorte. Ele pega as duas bolsas que contêm os cristais que tanto esforço me custaram coletar, e sem um olhar para trás, parte, deixando-me ali, uma figura derrotada e quebrada, para me afogar no meu próprio sangue sob as areias vermelhas de Arcríris.

Luto para manter a consciência, cada respiração um esforço hercúleo. A dor é abrangente, consumindo cada pensamento, cada fragmento do meu ser. Meus olhos turvos tentam focar nas estrelas acima, buscando um último vislumbre de beleza em um mundo que se tornou um inferno de dor e sofrimento. A areia, ou meu sangue, já não sabendo mais diferenciar, parece me abraçar, puxando-me para mais perto de seu abraço frio e eterno.

Nota de rodapé

Espada Primordial - a primeira arma criada pelo Universo. Sua lâmina, de aproximadamente dois metros de comprimento, exibe um brilho proporcionado por seu revestimento de cristal arcririsiano dourado em suas bordas sobre sua lâmina de zérum. Sua superfície é tão polida que parece espelhada, refletindo qualquer feixe de luz com uma claridade deslumbrante. Ao centro, um filão de ouro, entalhado com símbolos místicos, corre ao longo da lâmina, ampliando-se sutilmente até a ponta, que se bifurca elegantemente em dois gumes afiados, reminiscentes de uma lança. O guarda mão é uma exibição extravagante de artesanato, com extensões que se assemelham a asas, ascendendo e curvando-se para trás em direção ao punho. Este design não só protege a mão. A empunhadura é robusta, envolta em um material de couro escuro, enrolado firmemente para oferecer uma aderência segura e confortável. O pomo no final do punho é um contrapeso elaborado, adornado com ouro e desenhado para refletir o guarda-mão, completando a simetria e o esplendor da espada. No caminho da guarda mão a ponta de sua lâmina, contém uma pequena lâmina curva, capaz de prevenir de outras armas deslizarem por sua lâmina e prendê-las.

ATO IV

A noite em Arcríris continua, indiferente à tragédia que se desenrola em sua superfície. Ózis jaz à beira da morte, sua existência reduzida a uma luta solitária contra a inevitabilidade do fim. O frio implacável do planeta se torna um companheiro constante, um abraço gelado que o envolve enquanto ele luta para mover-se, para emitir até mesmo um grito. Mas o choque e a dor, mestres cruéis, dominam seus sentidos, aprisionando-o em um casulo de agonia e desespero.

Dentro de Ózis, uma raiva amarga começa a borbulhar, fervendo em seu peito e espalhando-se por sua alma. É a raiva da injustiça, a indignação de ser traído pelo destino, de ter sua história interrompida por um ato de brutalidade insensível. "Por quê?" A pergunta ressoa em sua mente, um badalar de sino doloroso que se repete incessantemente. Por que ele? Por que seu fim deve ser aqui, neste deserto gelado, sozinho e esquecido?

A incerteza se arrasta até ele, encobrindo-o como uma mortalha gelada. O medo de morrer. A morte, sempre uma certeza distante, se transformou em uma ameaça iminente, uma realidade sombria. Ele está impotente perante ela, fraco demais para lutar, muito ferido para escapar. O terror dessa impotência agarra seu coração com garras de cristais, fazendo-o tremer de medo e frio.

E, finalmente, tristeza. Uma tristeza tão profunda que quase ofusca a dor física. Ele se pergunta se isso é tudo que restou para ele, morrer sozinho neste lugar frio e hostil, longe do calor de sua casa, longe do abraço de seus irmãos. Lágrimas de impotência e lamento se misturam ao sangue que mancha seu rosto, desenhando marcas tristes e solitárias na areia vermelha sob ele.

Ózis, outrora a essência vital do Universo, agora apenas uma sombra de si mesmo, abandonado. Seu sangue, uma marca permanente na areia, é um testemunho silencioso de seu sofrimento, ecoando na vastidão vazia da noite. E enquanto a figura do planeta-vivo desaparece no horizonte, Ózis contempla o céu estrelado de Arcríris pela última vez. Um grito de dor e desespero se forma em sua garganta, mas é engolido pelo silêncio.

Seus olhos, que já refletiram a vastidão do universo, fecham-se lentamente, resignando-se ao frio e silencioso abraço de Arcríris. No final, Ózis se rende, não à morte, mas à inevitabilidade do ciclo da vida, onde até mesmo os deuses não estão imunes ao destino.

Não há mais dor, talvez, não haja nem mais vida. Os olhos se fecham e a vida se vai lentamente, onde o sangue se camufla na própria areia, idem as lágrimas no oceano de seu olhar.

            
            

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