Capítulo 2 Herpia

Eu sou alguém que morreu há muito tempo atrás...

Já li sobre reencarnação em algumas histórias de livros, mas acreditava que só existia na mente criativa das pessoas, nos filmes, nas páginas... Sua existência não se passava de uma imaginação fictícia.

Mas eu lembrava da minha morte, ela havia sido real! Os últimos suspiros, o desejo desesperado de viver e o sangue quente que beijava minha pele fria. Eu havia morrido naquela rua após um acidente de trânsito, sozinha e sem ser aparada por braços familiares, mas pela morte.

Todavia eu renasci em outro mundo.

Meu choro cheio de lamúrias saiu de minha boca pequena, experimentei as primeiras lufadas de ar em meus pulmões e deixei o oxigênio correr para dentro do meu corpo, me enchendo de vida. Estava viva, mas habitava em um corpo de um bebê.

Um rosto feminino de olhos cor de mel e orelhas pontudas me encarou com cautela, seus braços tremeram quando me pegaram e por um momento eu achei que ela tremia de felicidade e fadiga. Porém, seus olhos se arregalaram quando me olhou mais de perto, suas feições foram de surpresa para pavor.

- Diga a todos que minha criança morreu. - falou com uma voz arrastada.

Eu não sabia quantas pessoa estavam naquele recinto, meus olhos ainda não haviam se acostumado totalmente ao ambiente, apenas conseguia enxergar aquela mulher que tinha o medo estampado na face. Não compreendi suas palavras, não entendi a razão do seu medo e nem de pedir para que contassem que eu estava morta. Meu coração batia forte em meu peito, um símbolo que eu realmente estava vivia - não morta- mas aquela mulher, minha mãe, havia dito para espalhar a notícia para todos que eu era um cadáver.

Meu choro parou, engolido pelo desconforto de suas palavras, atenta sobre tudo que que ditaria do meu futuro.

- Querida...

Um rapaz de pele clara, cabelos negros, olhos azuis e alto, caminhou até onde minha mãe estava. Ele parecia hesitar nas palavras, seu silêncio delatava que estava escolhendo as palavras que ajudassem a melhorar o clima, mas não sabia se ele estava se decidindo se aceitava aquele pedido egoísta ou se descartava ele.

Esperava que estivesse a favor de me manter viva.

- Ela é um mostro! Olhe para esses olhos vermelhos sangue, tão vividos e líquidos, é um mal presságio! Não, minha filha não nasceria dessa forma... Ela está morta e foi engolida por esse mostro. - sibilou a mulher com uma voz raivosa.

- Então pelo menos, deixa-a viver. - replicou ele.

Eu encarei os dois sem poder dizer uma mísera palavra, sem poder gritar pela minha vida, sem poder me debater pela minha sobrevivência.

Era assombroso aquele silêncio que se instalava naquele ambiente, queria chorar e fazer que entendessem que eu estava viva e querendo viver, mas aquela mulher me queria morta e eu temia que se fizesse barulho ela cogita-se a proposta do seu marido e logo me atirasse as feras.

- Está bem. - concordou ela. - Não sou uma fêmea desprezível que mata um bebê indefeso. - replicou com uma voz banhada de falsidade.

Suas palavras haviam sido como facas, ela havia confirmado que realmente não me via como filha, que só me criaria porque aquele homem havia a impedido de ter desejos mais perversos. Tentei não me agarrar a tristeza, saber que iria viver era o suficiente. Não importava onde eu estivesse, ou o que era, mas eu iria sobreviver e me segurar a essa vida.

- Herpia, será o nome dela. - falou minha mãe enquanto me entregava aos braços quentes de seu parceiro. - Aquela que representa o monstro e a fúria.

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As nuvens se acumulavam, tremiam e anunciavam a chegada de uma possível tempestade pelo fim tarde. Eu rezei para que o cobertor esfarrapado e cheio de buracos que eu tinha, conseguisse me esquentar o suficiente quando os ventos fortes batessem contra a madeira que revestia minha pequena casa.

Haviam se passado cinco anos desde que eu nasci nesse mundo, um universo na qual precisei agarrar com meus pequenos dedos para não morrer de fome, ele era bonito, cheio de florestas e magníficos cenários de natureza e magia, porém guardavam nas profundezas de suas folhagens, criaturas tão feias e arrepiantes, que poucos sem treinamento ousariam explorar.

Acreditei que era apenas um mundo paralelo em que eu vivia, onde se podia haver féricos e magia, entretanto eu descobri mais verdades sobre essa realidade em que vivo. Dicas foram aparecendo com o tempo em que eu crescia, como a descoberta de uma muralha invisível que dividia o mundo férico do mundo humano, cortes que distribuía o reino férico e o principal, Amaranhta.

Inesperadamente, eu havia transmigrado não para qualquer lugar mágico, mas para o livro Corte de espinhos e rosas, da Sarah J. Mass. Tudo apontava para esse fato, um mundo na qual li e me apaixonei, sofri e rir... Agora pertencia a ele.

Sabia que estava vivenciando o reinado de Amaranhta, mas não tinha ideia de quantos anos havia se passado desde quando ela se sentou sobre a montanha ou quanto faltava para a Feyre aparecer. Descobriria eventualmente, com o tempo, no momento precisava focar em esticar meus braços o suficiente para que meus dedos tocassem nas frutinhas vermelhas que estavam protegidas pelos espinhos dos arbustos. Toquei na fruta uma vez e ela balançou com meu toque, mas ainda não havia conseguido a pegar. Precisei pressionar mais contra as folhagens para agarrar a comida, que no final, foi apanhada com veemência. Suspirei cansada após me machucar, juntei ela ao resto das outras que tinha colhido e sentei-me ao chão para começar minha refeição.

Meus pais, - se é que eles podem ser considerados progenitores com aquelas atitudes - contaram a todos do pequeno vilarejo que vivíamos que sua filha havia morrido, porém me mantiveram em sua morada. Minha convivência com eles podia ser considerada incômoda, pois minha mãe me dava pequenas refeições para comer e que eu me virasse sozinha para conseguir mais caso quisesse, ela não gostava de olhar para mim - monstro- era o que sibilava toda vez que se esbarrava em mim, e me proibia de sair de casa pela manhã, - precaução para que os outros féricos não me reconhecessem e começassem a desconfiar de algo.

Meus cabelos negros, pele clara e orelhas pontudas fariam qualquer um me identificar como um deles, porém meus olhos vermelhos líquidos, que brilhavam e atraiam eram como um alerta de perigo. Pensei que seria normal ter íris diferenciadas neste mundo - Rhysand tinha olhos violeta- mas parecia que os meus eram especiais. Pelo que ouvi de meu pai sussurrando pela noite, aquela cor lembrava o sangue, o sofrimento, a crueldade, além de não ser um bom presságio entre eles.

Se meus olhos podiam ser comparados a monstros abomináveis que rastejaram nessa terra e que assombrou eles no passado, eu não sabia, mas era uma hipótese que deixei aparecer em minha mente.

- Foi bom enquanto durou. - sussurrei após comer a última frutinha que estava em minha mão.

Precisava voltar, estava ficando tarde e não gostaria de me molhar na chuva antes de chegar em casa. Então, comecei a caminhar com passos apressados para meu lar, sempre com cuidado para que não me vissem, com a respiração controladora para meu coração não bater forte demais.

Féricos podiam ter sentidos apurados e desde que meus pais haviam concordado em falar para todos da aldeia que eu havia morrido, era sempre um empecilho esse fato para mim, que devia sempre me esgueirar para que não me notassem. A noite não era uma boa opção para sair, era quando os piores monstros apareciam, por isso, só me restava as tardes para colher o pouco para viver.

Eu gostava de féricos, até eu me tornar um e ser vista como o pesadelo vivo deles.

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Não demorei muito na floresta, voltei para minha casa com passos lentos, praticando a arte de ter passos silenciosos para não ser notada. O anoitecer chegou cedo e eu precisei me esgueirar para dentro de meu quarto pela janela.

O cômodo era pequeno, uma pequena cama de palha estava posta no canto da parede, minhas roupas surradas ficavam dentro de uma caixa, não havia decoração naquele lugar, nada digno de passar os olhos e admirar. A única coisa que eu odiava e gostava, era do espelho pendurado na porta.

Eu sempre olhava meu reflexo nele, antes para entender de onde tiravam todo aquele medo, eu era relativamente parecida com os outros féricos, então porquê? Aos poucos deixei de lado aquelas perguntas e passei a tentar me olhar sobre outro ângulo. Eu era linda, desde os cabelos, até os lábios pequenos e rosados, a pele macia e... Aqueles olhos. Ás vezes eu os odiava por ter sido o gatilho de terem feito meus pais me excluírem, mas eles eram tão bonitos e faziam parte de mim, então eu os admirava.

- Por quanto? - sibilou uma voz baixa.

Por ter uma audição aguçada, escutei os sussurros. Curiosa, aproximei da porta do meu quarto e coloquei minha orelha encostada na madeira que dividia espaço com o espelho, pelo que tinha assimilado, era minha mãe perguntando.

- Não sei... Mas você tem certeza que vai vender a Herpia? - indagou meu pai.

Imaginei os dois sentados nos bancos de madeira, comendo pão e queijo, enquanto discutiam. Minha mãe devia estar vestindo um vestido rosa e fazendo uma careta porque o tópico na qual conversavam era eu, ela odiava falar sobre sua filha. Já seu marido, trajando calças caqui, botas grossas e uma camisa branca aberta, provavelmente ouvia sobre a conversa com a cabeça apoiada na mão e com os lábios franzidos.

- Uma hora ou outra não conseguiremos esconder mais ela e não aguento mais acabar me esbarrando com ela em minha casa! Vamos vender ela, pelo menos a criança vai ter alguma utilidade nessa vida. - respondeu a fêmea com uma voz cheia de afirmação.

            
            

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