Capítulo 3 Desisto, Jardim

Naquele momento perdi meu chão. Nada mais fazia sentido para mim, para quê viver neste mundo se o meu pai não está mais nele? Sem olhar para trás, mesmo em meio aos gritos da minha mãe, corri a passadas fortes e pesadas. Corri em direção à saída do hospital, afinal de contas, num momento como esses, o que seria melhor para aliviar a dor do que a morte? Ninguém precisa de mim, eu sou fardo. Eles ficarão melhor sem mim.

Eu estava quase à porta quando comecei a raciocinar: é improvável que eu de fato morra caso tente ser atropelada. Virei-me depressa, determinada. Tornei ao terceiro andar e entrei numa sala onde estavam guardados os medicamentos, equipamentos médicos e seringas. Nem me importei em fechar a porta, não me importei com nada. Vasculhei as caixas e encontrei o que procurava. Abri uma nova seringa que havia sido deixada em cima de uma pilha de caixas no centro da sala e a preenchi com potássio com uma boa dose de potássio. A parada cardíaca seria rápida e eu finalmente poderia parar de sofrer. E poderia também ficar com meu pai.

Ia quase aplicando o potássio quando uma voz gritou ao fundo:

-Não, Sophia! Para! - foi a primeira vez que eu vi Igor chorar desde que nos conhecemos - Sophie, para com isso. Você não pode desistir de viver só porque o seu pai não está mais aqui- ele tomou a seringa da minha mão e a jogou num canto da sala e depois me abraçou. Eu voltei a chorar cada vez mais intensamente - Ele te amava muito e tenho certeza de que ele não iria querer que você deixasse de viver, muito pelo contrário! Ele se orgulharia de ver você sendo forte e apoiando sua mãe seu irmão. - a essa altura, ele já chorava tanto que chegava a soluçar - Além do mais, o que vai ser da gente sem você? Nós precisamos de você já pensou nisso, sua egoísta? - ele falou a última parte com um leve sorriso por entre as lágrimas. Eu me afundei ainda mais nos braços dele chorando e apertando cada vez mais forte. Ele fazia carinho no meu cabelo - tá tudo bem chorar as vezes! Se tá doendo, conta pra gente! Chora, grita, esperneia... mas não desiste de tudo!

- Eu sei que é uma atitude covarde e egoísta, mas eu sinto muita falta dele! eu simplesmente NÃO POSSO ACREDITAR QUE O MEU PAI MORREU! Eu quero ver ele de novo! Vê como a vida é injusta comigo? eu nem pude me despedir!

- A vida não é justa pra ninguém

- É fácil falar, o SEU pai não morreu!

Houve apenas choro por alguns instantes, ficamos os dois sem falar nada até que eu retomei a fala:

- Desculpa! Eu... eu não quis ser tão grossa - eu disse enquanto me afastava um pouco para dizer olhando

nos olhos dele.

- Eu entendo, eu é que fui insensível - me puxou de volta para um abraço e eu fiquei ouvindo ele falar... sabe, é muito bom ter um amigo com quem contar num momento como esses - Primeiro, seus pais lhe colocaram para adoção assim que você nasceu com a desculpa de que você foi um acidente, depois passou cinco anos lá penando até ser adotada de fato... até ser adotada por eles. Lembro que você me disse que, no começo, a sua mãe não gostou muito da ideia mas estava tendo dificuldades para engravidar, mas o seu pai amou você desde o momento em que te viu no orfanato e quis que voicê fosse a filha deles, então fez de tudo para que pudessem ficar com você. Então, eu imagino que por isso vocês dois tenham criado um vínculo muito especial de pai e filha... então é claro que você ficaria desesperada com a morte dele! Eu é que fui um egoísta impaciente. Eu deveria cuidar de você, não brigar com você.

-Não, você é meu amigo, não o meu pai. Não tem a obrigação de cuidar de mim.

-Mas infelizmente ele não pode mais cuidar de você. E eu quero cuidar de você. - ele colocou meu cabelo atrás da orelha cuidadosamente, o que eu achei estranho. Mas eu não reclamei nem me afastei devido as circunstâncias - Lembre-se de que você tem a mim e o Marcos, e sua mãe e seu irmão tamém, é claro. Pode me chamar a qualquer hora. Eu venho, dou a minha palavra, hum? - Ele me fez cosquinhas e eu ri um pouco. Me senti bem mais aliviada depois de falar com ele, mas ainda não descartei a possibilidade de desistir. Se der tudo errado de novo... eu não sei se vou suportar. Mas é como ele disse. Eu preciso ser forte, por ele, pelo Marcos e pelo que restou da minha família.

-Muito obrigada! Eu me sinto muito melhor.

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Bem, no momento, estamos nos dirigindo ao velório do meu pai. Ele já disse milhões de vezes que odeia o clima de velório e que quando ele morresse não queria que fizéssemos uma cerimônia monótona e queria que lembrássemos apenas dos bons momentos. Mas é claro que ele não imaginava que aconteceria tão cedo. Na verdade, nenhum de nós. Como a minha mãe ainda está num processo de profundo choque, eu mesma tive de organizar o velório. Tenho que seguir firme, por ela.

A cerimônia foi de dia, por volta das dez horas. Aos invés dos típicos trages pretos, todos estavam vestidos de laranja, a sua cor favorita. A todo instante os presentes se seguravam para conter as lágrimas, já que ele detestava ver as pessoas chorando. Temos fazer tudo que está ao nosso alcance para fazer somente o que ele gosta durante o velório dele. Levou umas duas horas para terminar. Após o pastor ter orado pelo corpo, chamaram os parentes para discursarem homenagem a papai:

-Agora, gostaria de convocar um dos familiares para fazer um discurso. -ao ouvir o pastor dizer isso, minha mãe desabou soluçar por entre as lágrimas, então eu mesma fui-

- Primeiramente, muito obrigada a todos que vieram, eu tenho certeza de que se ele visse o quanto todos estão se esforçando para fazer o que ele gosta, ele ficaria muito feliz. -parei para suspirar por um instante, tentando conter o choro- Ele sempre foi um bom pai e um bom esposo para a minha mãe. Dava para notar o cuidado dele por nós nas pequenas ações, como quando ele catava as ervilhas da pizza para Yuri porque ele não gosta, ou quando eu não ia muito bem na escola e ele dizia que aquilo só deveria me inspirar a tentar novamente e dar o meu melhor. Ele os mostrava as nossas melhores versões e quando a gente aprontava, ele não nos batia ou brigava conosco, mas nos mostrava, pacientemente, o quanto aquilo poderia afetar negativamente na nossa vida e na dos envolvidos. Quando minha mãe ficava doente ou mesmo quando sentia uma simples dor de cabeça, ele deixava tudo o que estivesse fazendo para cuidar dela. Mesmo que às vezes ele parecesse distante, ele estava sempre cuidando de nós do seu jeito. E tenho ceteza de que ele era muito bom com cada um de vocês que estão aqui hoje e o conhecem a, provavelmente, bem mais tempo do que eu. Mesmo eu não sendo filha biológica dele, papai é o mais próximo que eu já tive de ter um pai e eu o amo muito. Eu.. já disse tudo o que tinha para dizer... obrigada!

Depois, por volta das 14 horas, foram todos para a minha casa. Eles se agrupavam pelos cantos petiscando a comida enquanto conversavam num triste mumúrio. Eu saí da sala e sentei debaixo de uma árvore grande que tinha no nosso quintal, ao lado do balanço, e tentei continuar sorrindo enquanto encarava o céu limpo do fim de ano.

Estava tão concentrada em tentar não chorar que mal vi Igor se aproximando com alguns petiscos:

-Pegue alguns. Sei que você está sem apetite mas acredito que sua última refeição deve ter sido antes de saber do acontecido e se continuar nesse ritmo você vai acabar morrendo também! Come, vai, por mim, hum?

Eu nem pude responder, ele enfiou uns bioscoitos na minha boca.

-Eu não quero! -disse de boca cheia-

- Agora já é tarde.

Por um tempo ficamos ali, sentados, sem dizer nada. Ele colocou o braço por trás do meu pescoço, me abraçando, e me dava alguns biscoitos e outros petiscos de tempos em tempos.

-Você é realmente muito forte. Eu sei que por dentro você está destruída, não precisa continuar se esforçando para sorrir num momento como esse. Se quiser, te dou meu ombro para chorar... quando eu disse para não desistir, eu não quis dizer que tinha que esconder o que está sentindo, pode contar para mim e para o Marcos se precisar. Hum? -mesmo assim eu resolvi que não choraria, meu pai gostaria de que eu seguisse em frente. Quero deixá-lo orgulhoso.-

-Eu realmente não quero chorar. Ele não gosta de me ver chorando e eu quero que ele descanse em paz. Ele ficaria preocupado e não conseguiria ir... então não vou chorar. Pelo menos... não hoje.

-Tá..- ele esboçava um leve sorriso de canto, em tom de compreensão- mas se precisar de mim, é só me chamar, hum? -eu já mencionei o quanto eu acho fofo como ele sempre faz "hum?" sempre que me diz algo quando estou triste?-

Permanecemos assim pelo que pareceu meia hora mais ou menos, até que Marcos apareceu:

-Ah, então é aqui que estão vocês? Procurei pelos dois a casa inteira!!! Me senti traído! Vocês estão aí abraçados, sozinhos embaixo dessa árvore? Por acaso vocês estão namorando?

-Não, seu ciumento! Senta aqui com a gente! -eu disse, puxando-o para o meu lado- Igor só estava me forçando a comer um pouco...

-Hum... e porque não me chamaram? Vocês são mesmo meus amigos?

-Ah, deixa de ser ciumento, Marcos! -Igor deu um tapinha na cabeça dele-

Passamos mais um bom tempo sentados lado a lado debaixo da árvore, conversando... mas pouco antes do pôr do sol, meu irmãozinho, Yuri, apareceu pela porta. Ele tinha ficado na casa da vóvó durante esse tempo. Ele veio correndo, meio destrambelhado, até nós com os olhinhos vermelhos lacrimejantes e me abraçou, acabando sentado no meu colo com as pernas e os braços me cercando. Depois de um longo e apertado abraço, ele a fastou o rosto para falar:

-Tava com saudade! Mana, porque tá todo mundo aqui? E porque eles tão chorando? E cadê o papai? Eu não vejo ele faz um tempão assim - ele abriu bem os braços para exemplificar- Hein? E porque mamãe não tá falando? Ela tá parada no quarto olhando pra parede como se tivesse um bicho!

Eu levantei com ele no colo e me despedi dos meninos dizendo que ia levar ele para tomar banho, comer algo e só depois explicar o que estava acontecendo, ele parecia bem confuso. Depois de tudo feito, era a hora deexplicar para ele:

-Yuri, escuta bem o que mana vai falar, ok?

Ele balançou a cabeça e seus cachinhos saltavam.

-Não vamos mais ver o papai. Tudo isso tá acontecendo porque um carro bateu no de papai quando ele tava voltando da viagem de trabalho e o carro explodiu. Papai morreu, isso significa que ele não existe mais. É como se ele tivesse num sono bem pesado, só que não tem como acordar ele. Ai, as pessoas colocaram ele numa caixa de madeira gigante e enterraram na terra.

Ele começou a chorar "NÃO!!!!!! Eu quero o papai! Você tá mentindo! Porque colocariam ele debaixo da terra? ! Onde tá o papai? Eu quero ver ele!!!!" Ele chorou até cair no sono.

            
            

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