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Depois que terminei o sorvete - ainda contrariada - caminhamos em silêncio até a porta da minha casa.
- Sophie... e se a gente fosse assistir um filme? - ele perguntou, com aquele sorriso que sempre me desarma.
- Agora?! Tipo... agora mesmo? Você tem noção de que horas são?!
- Tenho. E não é como se eu já não fosse me encrencar por ter pego o carro. Uma hora a mais ou a menos não vai mudar nada.
- Ai meu Deus do céu... O que é que eu faço com você?!
- Vamos! Deixa de ser chata! Tá passando um filme muito legal.
- Sei não...
- Eu te compro mais sorvete.
- Fechado - respondi, suspirando, mas já sorrindo.
Entramos no carro. Estava escuro e gelado - Igor, distraído como sempre, tinha esquecido de desligar o ar-condicionado.
Aquela atmosfera era tão confortável que eu poderia adormecer ali mesmo. Por um instante, mais um naquele dia, esqueci todos os problemas. Graças a ele, eu consegui respirar. Uma pausa, finalmente. Um alívio em meio ao caos.
O sorriso dele foi meu abrigo. Nenhuma palavra era necessária. O silêncio nos envolveu como um cobertor macio - e, por um momento, bastou. Nos entreolhamos e simplesmente... existimos naquela calmaria. Pareceu durar uma eternidade, mas foram apenas cinco minutos. Quando saiu do transe, Igor se inclinou para me ajudar com o cinto (mesmo com minhas tentativas falhas de convencê-lo de que não precisava) e deu a partida. Seguimos o caminho em completo silêncio - um silêncio bom. Às vezes, ele é o melhor companheiro: atento, gentil, reconfortante. E mesmo que passageira, aquela paz parecia eterna.
Era tudo o que eu precisava. Um instante bastava.
Chegando ao cinema, três opções de filme estavam disponíveis: ação, terror e comédia romântica.Ficamos com o terror. Não por gostarmos de sustos, mas era melhor que romance - e certamente melhor que ação.A sala estava vazia. Escolhemos as duas cadeiras centrais e nos armamos com pipoca, hambúrguer, batata frita e milkshake.Não tinha como ser melhor.Eu estava no paraíso.
Foi o momento mais feliz do meu dia - talvez até das últimas duas semanas. Eu poderia me preocupar depois. Mas, ali, naquele instante, não me permitiria desperdiçar a felicidade. Não por medo. Não pela tristeza. Eu precisava tentar ser feliz, nem que fosse por um minuto. Pelo papai. E, depois... talvez eu consiga encontrar uma boa solução. Pra cuidar de nós.
O filme até que tinha uma trama interessante, especialmente se comparado aos filmes de terror mais comuns. Havia sido lançado há cerca de um mês, e aquela era a última data de exibição. Era uma adaptação do livro Conto de Fadas, do Stephen King. Convenhamos, não tinha como o filme durar menos de três horas, considerando que o livro tem mais de 700 páginas! Mas, sinceramente, não acho que deveria ser classificado exatamente como terror. De qualquer forma, a história era muito envolvente e criativa.
Mas eu queria tanto que o príncipe "não tão encantado", Charlie, ficasse com a princesa Leia! Por que ele tinha que voltar pra Terra?! Simplesmente não dá pra engolir.
Enquanto eu me mostrava genuinamente indignada com o rumo da história, Igor assistia com toda a atenção do mundo. De vez em quando, eu percebia uma breve escapada do seu olhar, desviando da tela em minha direção. "Talvez ele ainda esteja preocupado", pensei.
Sinceramente, me pergunto: por que ele anda tão estranho ultimamente? Ele tem se mostrado cada dia mais prestativo, atencioso... e inconsequente. Mas não é só ele. O Marcos também. Não consigo entender por que os dois estão tão diferentes nos últimos dias. Ainda assim... confesso que estou gostando de toda essa atenção.
Era por volta das três horas da manhã quando ele me deixou em casa e finalmente nos despedimos. Ele não queria ir embora! Que folgado! Já ia se convidando para ficar para o café da manhã!!! Mas eu não deixei. Até porque, minha vó não sabe que eu saí, então não seria muito conveniente... mas eu não iria acordar ela só para falar isso.
Ao entrar na casa o peso da atmosfera caiu sobre meus ombros e me lembrei da dura e fria realidade que me esperava em casa... não importava o quão bom o meu dia fosse e o quanto tentassem me ajudar, desde que o papai nos deixou, assim que cruzo as portas desta casa, todo o alívio, toda a alegria se esvai... o que sobra de mim é apenas o "caco" uma casca vazia que um dia foi preenchida.
Claro, não é como se a minha vida fosse o tempo todo perfeita. Mas, desde que essa família me adotou, o meu sofrimento foi reduzido... e agora toda aquela sobra tornou a aflorar dentro de mim... mas, acho que não faz muito sentido eu dizer isso sem contar "o que" exatamente eu sofria, pode parecer que eu estou exagerando... então, antes de continuar a minha melancólica linha de raciocínio, vou lhe contar um pouco mais de antes disso tudo, antes do meu atraso, antes do ensino médio, antes da escola, antes de ser adotada, vou voltar ao começo de tudo.
Eu nasci sem ser desejada. Ainda antes de abrir os olhos pela primeira vez, já carregava nas costas o peso do abandono. Minha mãe, envolta em desespero ou talvez em pura frieza, cogitou simplesmente me descartar como quem se livra de um estorvo. Foi meu pai quem interveio - não por amor, mas por um resto de humanidade. Vagarosamente, foi de orfanato em orfanato, com a recém-nascida nos braços e a alma entre as mãos, mas nenhum lugar me queria. Nenhuma instituição aceitava uma bebê tão frágil, tão sem futuro, quase morta. Quando ele já estava à beira de desistir, no último orfanato da cidade, uma diretora se comoveu. Aceitaram-me, talvez por pena. E foi assim que minha vida começou: indesejada, doente, deixada com nada além de um nome e um passado do qual ninguém queria falar.
Eu cresci sozinha, em meio a paredes frias e olhares indiferentes. Nos primeiros dois anos, minha saúde era pouco mais que um fio prestes a se romper - vivia entre febres e silêncios. Mas então, algo inesperado aconteceu: com pouco mais de um ano, comecei a falar. Não eram palavras comuns de criança - eram difíceis, precisas, surpreendentes. Comecei a andar, fazer perguntas... muitas perguntas. Mais do que os adultos estavam dispostos a responder. E, quanto mais crescia, mais curiosa me tornava. Mas as respostas não vinham. O silêncio me cercava, tão cruel quanto a rejeição.
No orfanato, as outras crianças não me compreendiam - e por isso me rejeitavam. Eu era o alvo constante de xingamentos, tapas, zombarias. Certa vez, aos três anos, tropecei ao levar a louça para guardar. Um erro pequeno demais para a brutalidade que veio depois. Uma das funcionárias, incumbida de cuidar das crianças, perdeu o controle. Bateu em mim com tanta violência que precisaram me levar ao hospital. Eu quase morri. Tinha só três anos. Três.
Os anos se arrastaram. O tempo não curava, apenas acumulava cicatrizes. Eu assistia, dia após dia, outras crianças sendo levadas por famílias sorridentes, enquanto eu permanecia ali. Sempre ali. Até que um dia, inesperadamente, o destino mudou. Um casal atravessou os portões do orfanato com olhos cansados e corações abertos. Eles me viram - verdadeiramente me viram. E foi quando, pela primeira vez, eu tive algo mais que um nome.
Fui para casa com eles sem saber ao certo o que era "lar". As paredes ainda eram estranhas, os cheiros também. A cama era grande demais, macia demais. Dormir era difícil - meus olhos ficavam presos ao teto, esperando o momento em que tudo desmoronaria de novo. Mas os dias passaram. E, com o tempo, comecei a reparar nas pequenas coisas.
Papai - o homem que me levou nos braços - me tratava como se eu fosse feita de luz. Me chamava de filha sem hesitar, sorria sempre que eu olhava pra ele. Me pegava no colo, contava histórias, ou apenas ficava ali quando o medo voltava. Papai me via. E isso bastava.
Mãe, por outro lado, mantinha distância. Seus olhos eram sempre cuidadosos demais, seus gestos calculados. Não havia crueldade, mas também não havia afeto. Ao menos, não no início. E eu percebia. Sabia que seu coração não me queria ali, mesmo que sua boca dissesse o contrário.
Ainda assim, havia algo novo. Havia comida quente. Um cobertor. Um lugar na mesa. E, quando eu falava, papai escutava de verdade. Não com pressa, não por obrigação. Ele escutava como se cada palavra minha fosse preciosa.
Ainda demorou muito pra que eu confiasse. Trauma é um bicho silencioso, gruda nas costelas e morde de vez em quando. Mas houve um momento - pequeno, quase imperceptível - em que eu ri. Um riso curto, meio rouco, meio contido. E papai sorriu de volta. Foi quando eu percebi: talvez, só talvez... eu pudesse ficar.
Mas agora, depois "daquele dia" meu mundo tem cada dia mais desmoronado e o vento que antes era brisa, me empurrado para o fundo do abismo. Minhas mãos, já não podia mais me sustentar e eu fui caindo, chegando cada vez mais fundo. E, sinceramente, nunca achei que usaria filosofia para alguma coisa na vida, mas é como Nietzsch disse: "Um abismo traz outro abismo". E com o tempo passando a felicidade veio em picos, pequenos pedaços muito bem espaçados, tão rápidos que por vezes eram imperceptíveis.