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Desde aquele momento em que a imagem invadiu minha mente – o barulho da chuva, os faróis, um grito –, eu não consegui mais ignorar a sensação crescente de que algo estava fora do lugar. Era uma fagulha perdida em meio ao vazio, mas, de algum modo, parecia real. Tão real quanto o peso do meu corpo naquela cama.
No dia seguinte, Daniel voltou cedo. Ele sorriu quando entrou no quarto, carregando uma pequena sacola e um copo de café.
- Bom dia, dorminhoca - disse ele, colocando o copo sobre o criado-mudo. - Como você está hoje?
A voz dele tinha um tom ensaiado, como um ator em cena. Aquilo me irritava.
- Melhor, eu acho - respondi, encarando-o com cuidado. - Você dormiu em casa?
- Não. Fiquei no hospital, perto de você. Não conseguiria dormir de outro jeito. - Daniel puxou uma cadeira e se sentou ao meu lado. Abriu a sacola e tirou uma pequena marmita com frutas cortadas. - Trouxe algo leve para você comer. Ainda não deve se esforçar muito.
"Ele parece perfeito demais", pensei, enquanto aceitava um pedaço de maçã cortada.
- Você disse que sofri um acidente de carro - comecei, tentando soar casual. - Como isso aconteceu?
Daniel parou por um segundo, os olhos focados em mim como se medisse cada palavra antes de falar.
- Estávamos voltando para casa - ele respondeu, finalmente. - Foi à noite, chovia muito. Uma curva perigosa. Você perdeu o controle.
- Eu? Eu estava dirigindo? - perguntei, franzindo a testa.
- Sim. Você insistiu. Disse que estava bem para dirigir.
Aquilo não fazia sentido. Eu sentia um desconforto no estômago, uma intuição incômoda. A imagem da chuva e dos faróis voltava a me assombrar, mas havia algo errado. A voz de Daniel, por mais suave que fosse, parecia contornar alguma verdade que ele preferia não tocar.
- E você? - perguntei. - Você se machucou?
Daniel olhou para a janela por um momento, como se procurasse uma resposta no vazio.
- Não foi nada grave. Alguns cortes e hematomas. Eu tive sorte.
- Sorte - repeti, baixinho.
Por que ele não tinha nenhuma marca visível? Nenhuma cicatriz, nenhum sinal de ferimento recente. Enquanto ele falava, as peças não encaixavam. A sensação de um vazio desconfortável voltou a me consumir.
- Eu quero ver o carro - soltei de repente, surpreendendo até a mim mesma.
Daniel arregalou os olhos.
- O quê?
- O carro. Eu quero vê-lo. Talvez ajude a lembrar.
- Não, não é uma boa ideia. O carro está destruído, Clara. Isso só vai te deixar pior.
- Mas eu preciso - insisti, sentindo meu coração acelerar. - Como você sabe o que é melhor para mim? Eu nem me conheço!
Daniel pareceu se esforçar para manter a calma. Ele respirou fundo, cerrando o maxilar antes de se levantar.
- Clara, eu estou fazendo o que posso para cuidar de você. Isso é demais para agora. Preciso que você confie em mim.
Ele foi até a janela, virando-me as costas. Um silêncio pesado preencheu o quarto. Algo nele me deixava desconfortável. Não era raiva, nem dor; era como se ele estivesse... frustrado.
E escondendo algo.
- Tudo bem - murmurei, fingindo ceder. - Desculpe. Eu só... estou confusa.
Ele voltou a se virar, o rosto suavizado em um sorriso forçado.
- Eu entendo. Só descanse, ok? Vamos resolver tudo com o tempo.
Concordei com um gesto, mas já havia tomado uma decisão.
Quando Daniel saiu para buscar algo, esperei alguns minutos, observando a porta como uma prisioneira planejando a fuga. Precisava de respostas. Precisava me lembrar de mim mesma.
Com cuidado, retirei a agulha do soro presa ao meu braço, sentindo uma dor incômoda. Desci da cama, os pés tocando o chão frio. Meu corpo protestou com tontura, mas me apoiei no criado-mudo até ganhar firmeza.
Peguei um roupão que estava jogado na poltrona e abri a porta do quarto devagar. O corredor do hospital estava silencioso, com as luzes brancas piscando levemente. Respirei fundo e comecei a andar, ignorando o latejar na cabeça.
Cada passo parecia ecoar pelo lugar, como se eu pudesse ser descoberta a qualquer instante. Passei por algumas portas fechadas, olhei para as placas com nomes que não me diziam nada. Finalmente, encontrei algo que chamou minha atenção: "Pronto-Socorro – Entrada Principal".
Segui o sinal. A cada passo, minha respiração ficava mais rápida. Eu não sabia o que estava procurando, mas precisava sair dali. Precisava encontrar algo que me tirasse daquele vazio.
Foi quando a vi.
Uma mulher.
Ela estava no fim do corredor, de costas. Cabelos escuros e longos, caindo sobre um vestido branco. Sua postura era estranhamente familiar. Fiquei paralisada, observando-a por um momento.
- Ei... - chamei, a voz mais fraca do que eu gostaria.
A mulher virou o rosto apenas o suficiente para que eu visse algo que fez o sangue congelar nas minhas veias.
Era o meu rosto.
Antes que eu pudesse reagir, as luzes do corredor piscaram com mais intensidade e a figura desapareceu.
Ofegante, dei um passo para trás, as mãos trêmulas apertando o roupão contra o corpo.
- O que... o que está acontecendo? - sussurrei para o vazio.
Um barulho de passos ecoou no corredor, víndose da direção do meu quarto. Daniel? Uma enfermeira?
Não esperei para descobrir. Girei nos calcanhares e corri.
Para longe. Para qualquer lugar que não fosse ali.