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O sono tornou-se meu inimigo. Todas as noites, quando fechava os olhos, uma nova cena se repetia como um filme distorcido: o carro girava em meio ao asfalto molhado, o som dos pneus rangendo contra o chão, um grito ensurdecedor – meu grito – seguido pelo silêncio absoluto. A imagem seguinte era sempre a mesma: um homem de rosto borrado, parado na beira da estrada, observando-me enquanto o sangue escorria por sua testa.
Quando acordei naquela manhã, o coração martelava no peito e meu corpo estava encharcado de suor frio. O lençol parecia mais pesado, como se me prendesse, e levei um tempo para me libertar da sensação sufocante. Daniel não estava ao meu lado, mas eu não estranhei – ultimamente, ele havia se levantado mais cedo que o costume. Eu me perguntei se ele fazia isso apenas para me evitar.
Desci para a cozinha, e encontrei-o sentado à mesa, lendo o jornal com uma caneca de café à sua frente. Seu rosto estava neutro, mas havia algo nos olhos dele que me incomodava – algo que eu ainda não conseguia decifrar.
- Bom dia – murmurei, sentando-me do outro lado.
Ele ergueu os olhos por um instante, mas não sorriu.
- Dormiu bem? - perguntou, a voz baixa e controlada.
- Não muito. - Dei de ombros, tentando soar casual. - Aqueles sonhos...
O olhar dele endureceu.
- De novo?
Assenti, sem conseguir encarar seus olhos.
- Daniel, eu preciso entender o que aconteceu comigo. É como se... meu corpo estivesse tentando me mostrar algo.
A expressão dele fechou-se ainda mais. Ele deixou o jornal sobre a mesa com um gesto lento e estudado.
- Clara, você está se preocupando à toa. Esses sonhos são apenas resíduos do trauma. Ficar pensando nisso só vai piorar.
- Mas e se não forem apenas sonhos? - Minha voz saiu um pouco mais alta do que eu pretendia. - E se tiver algo que estou esquecendo?
Ele estreitou os olhos.
- Clara, esqueça o passado. É melhor para você.
- Para mim, ou para você? - As palavras escaparam antes que eu pudesse contê-las.
Daniel encarou-me com uma calma ameaçadora. Ele abriu a boca para dizer algo, mas antes que pudesse, a campainha tocou. O som pareceu mais alto do que o normal, como se rompesse um silêncio que eu nem percebera que estava ali.
Era Lúcia.
Ela estava parada na porta, com sua bolsa a tiracolo e o olhar penetrante, como sempre. Lúcia era o tipo de pessoa que fazia questão de olhar diretamente nos olhos, como se tentasse arrancar segredos sem precisar dizer uma palavra.
- Clara, como você está? - perguntou com um sorriso que não alcançava os olhos.
- Bem... tentando. Entre, por favor.
Ela entrou e sentou-se na sala, cruzando as pernas com elegância. Daniel não gostava de Lúcia – ele dizia que ela era fofoqueira, que se metia demais na vida alheia. Mas para mim, Lúcia parecia ser a única pessoa que não me tratava como uma boneca frágil prestes a quebrar.
Depois de um tempo, Daniel alegou que tinha assuntos importantes para resolver e saiu. O barulho da porta se fechando soou como um alívio.
Lúcia me observou em silêncio por um momento antes de finalmente falar.
- Clara, você parece exausta.
- Não tenho dormido bem. Os sonhos... Eles são tão reais.
Ela inclinou a cabeça para o lado.
- Sonhos ou memórias?
Engoli em seco.
- Às vezes, eu acho que são memórias. Mas então eu acordo, e tudo parece distorcido. Como se houvesse algo ali, no meio da neblina, mas eu não consigo alcançar.
Lúcia assentiu lentamente, como se esperasse exatamente essa resposta.
- Clara, você precisa ter cuidado. Às vezes, olhar para o passado pode ser perigoso.
- Por quê? - Minha voz soou tensa. - O que você sabe?
Ela abriu um sorriso leve, mas os olhos dela refletiam algo diferente, quase sombrio.
- Eu não sei de nada. Mas talvez você devesse perguntar a si mesma por que certas pessoas querem tanto que você esqueça.
Um calafrio percorreu minha espinha. Antes que eu pudesse responder, senti um movimento na janela. Virei a cabeça rapidamente, e por um instante, tive certeza de que vi uma sombra do lado de fora. Uma figura parada, olhando para mim. Meus pêlos se eriçaram, e o coração acelerou.
- Clara? - Lúcia chamou minha atenção.
- Tem alguém lá fora. - Minha voz saiu em um fio, quase inaudível.
Lúcia se levantou e foi até a janela. Ela puxou a cortina com cuidado e olhou.
- Não tem nada. Provavelmente foi apenas o vento.
Mas eu sabia que não fora o vento.
Naquela noite, Daniel chegou mais tarde do que o habitual. Quando ele entrou no quarto, eu já estava na cama, mas fingia dormir. Senti-o parar ao lado da cama, apenas me observando por um tempo. A respiração dele era lenta e controlada demais, como se calculasse cada movimento.
Por um instante, temi que ele soubesse o que eu havia conversado com Lúcia. Que ele soubesse que eu estava começando a desconfiar.
Quando ele finalmente se deitou, o colchão afundou ao meu lado, mas não me mexi. Permaneci ali, com os olhos fechados, tentando manter a respiração calma, mas meu corpo inteiro estava tenso.
Horas depois, quando a casa finalmente estava mergulhada no silêncio da madrugada, senti algo.
Uma presença.
Abri os olhos devagar e vi a sombra. No canto do quarto. Parada. Observando.
Minha respiração falhou.
Tentei me mexer, mas meu corpo não respondia. O pânico tomou conta de mim enquanto a figura se aproximava, lenta e silenciosa. Quando estava perto o suficiente, vi seu rosto sob a luz fraca da lua.
Era Miguel.
Seu rosto, pálido e coberto de sangue, sussurrou algo que não pude entender. E então, desapareceu.
Acordei de um salto, ofegante, o coração descontrolado. Olhei para o lado e vi Daniel ali, dormindo serenamente.
Mas algo estava errado.
Na minha mão, havia um pequeno pedaço de papel amarrotado. Tremendo, desdobrei-o.
"Não confie nele."