Capítulo 4 O Nome Esquecido

As lembranças, como fantasmas traiçoeiros, perseguiam-me dia e noite. Desde o sonho perturbador com o acidente, Miguel parecia surgir em frestas da minha mente como um vulto que insistia em não ser esquecido. Seu nome, agora sussurrado, dançava nos meus pensamentos como um aviso velado.

Daniel, no entanto, seguia em sua rotina impecável de marido devotado. Às vezes, seus gestos atenciosos me pareciam quase forçados. Um sorriso que demorava demais no rosto. Uma resposta que vinha ligeiramente atrasada. Quando o questionei, casualmente, sobre Miguel – escondendo meu nervosismo atrás de uma fachada despreocupada – vi sua expressão endurecer por um breve instante. Foi rápido, mas não o suficiente para escapar aos meus olhos.

- Miguel? - repetiu ele, fingindo surpresa, como se fosse um nome que não deveria ter sido mencionado. - Quem é Miguel?

- Eu não sei. Acho que ouvi esse nome em algum lugar. Talvez seja um amigo... ou alguém do meu passado? - Minha voz saiu mais frágil do que eu queria. - Você conhece algum Miguel?

Daniel balbuciou uma risada nervosa.

- Clara, você anda sonhando demais. Às vezes, a mente cria coisas para preencher espaços vazios. Talvez não tenha significado nenhum.

- Nenhum? - Minha voz tremeu.

- Nenhum - respondeu ele, mais firme. - Esqueça isso. Você precisa descansar.

Não era apenas o tom de voz dele, mas a forma como desviou os olhos, como se minha pergunta fosse uma janela que ele se recusava a abrir. Ali, naquele instante, eu soube: Daniel estava escondendo algo.

Poucos dias depois, Daniel insistiu que eu voltasse para casa. "Vai te fazer bem", ele dizia, com aquele sorriso que agora me parecia uma máscara tão bem costurada que nem mesmo ele conseguia arrancar. A casa era grande demais, silenciosa demais. As paredes, mesmo pintadas de cores claras, pareciam carregar sombras.

O quarto principal era meu refúgio – ou deveria ser. Minha memória o reconhecia em flashes vagos, mas desconexos. Daniel, sempre ao meu lado, apontava objetos, como se tentar me lembrar da minha vida pudesse ser tão simples quanto catalogar uma exposição.

- Seu livro favorito. - Ele pegou um volume empoeirado da estante, mas nada em mim reagiu.

As horas se arrastaram, e logo ele precisou sair para trabalhar. Ficar sozinha me pareceu um alívio. Finalmente, poderia explorar aquele lugar que, por mais que ele insistisse, não me parecia um lar.

Foi no fim da tarde, enquanto mexia no quarto de visitas, que encontrei algo. O local era um amontoado de coisas antigas – caixas, livros, malas esquecidas. As cortinas estavam fechadas, deixando o ambiente envolto em um semiescuro fantasmagórico. Havia poeira dançando na luz que escapava pela fresta da janela.

Ao abrir um baú no canto, uma sensação estranha percorreu meu corpo, como um arrepio que sobe pela espinha. Dentro, no meio de roupas velhas e papéis amarelados, havia uma pequena caixa de madeira trancada com um cadeado enferrujado.

"Uma chave... deve haver uma chave."

Comecei a vasculhar as gavetas e outros cantos do cômodo. Meus movimentos eram apressados, mas involuntários. Como se algo me puxasse para continuar, como se meu corpo soubesse que eu precisava abrir aquilo.

Quando finalmente encontrei uma pequena chave dourada sob um lençol dobrado, meus dedos tremiam. Voltei ao baú e girei o cadeado. Um clique ecoou pelo quarto, alto demais para o silêncio opressor que me cercava.

Dentro da caixa, havia uma foto.

Meus olhos congelaram no rosto que sorria na imagem. Era eu. Ao meu lado, um homem segurava minha mão, os dois rindo como se fossem o casal mais feliz do mundo. Não era Daniel.

Era Miguel.

Um choque atravessou meu corpo, uma onda gélida que fez meu coração disparar. Miguel. A mesma pessoa que surgia nos meus sonhos, no meio do acidente. Ele não era uma criação da minha mente. Ele era real.

"Por que Daniel nunca mencionou isso? Quem é Miguel?"

Atrás da foto, havia uma carta dobrada. As mãos suadas e trêmulas, abri o papel amarelado. A caligrafia era bonita, mas apressada:

"Clara, você precisa acreditar em mim. Não confie nele. Há coisas que você ainda não sabe, e quando souber, já pode ser tarde demais.

*Com amor, Miguel."

O ar saiu dos meus pulmões. O papel tremia entre meus dedos. A sensação de que algo estava terrivelmente errado tomou conta de mim, como um peso que se instalou no meu peito.

Foi nesse momento que ouvi um barulho.

Um rangido baixo, vindo do corredor. Parecia o som de uma porta se abrindo devagar, quase arrastada. O som me fez congelar no lugar. A casa, que parecia adormecida, estava viva agora. Cada pequeno estalo soava como um passo.

"Daniel voltou?"

- Tem alguém aí? - Minha voz saiu baixa, fraca.

Nenhuma resposta. Apenas o som do vento batendo contra a janela.

Recoloquei a foto e a carta dentro da caixa, mas meu corpo ainda tremia. Quando me levantei, algo no espelho do quarto chamou minha atenção. Meu reflexo. Ele estava ali, é claro, mas... havia algo diferente. Minha imagem parecia ligeiramente fora de foco, como se meus olhos não conseguissem acompanhar o próprio rosto. Era eu, mas não era eu. Um sorrisinho leve se desenhou nos meus lábios no reflexo.

"Eu não estou sorrindo."

Virei a cabeça rápido, afastando o olhar, mas o som no corredor voltou – agora mais próximo. Passos. O piso de madeira rangendo sob alguém.

A porta do quarto de visitas estava entreaberta. E no espaço escuro do corredor, vi uma silhueta parada.

Ela não se mexia, mas estava ali. Olhando para mim.

Meus olhos ardiam. Meu peito subia e descia de maneira irregular. A silhueta deu um pequeno passo à frente, e então pude ver o contorno familiar dos ombros largos.

Era Daniel.

Ele estava parado, observando-me na penumbra. Mas seu rosto não tinha expressão alguma. Apenas o vazio.

- O que você está fazendo aqui, Clara? - Sua voz saiu baixa, mas ameaçadora.

Meu coração quase parou.

Ele sabia. Ele sabia que eu havia encontrado algo.

            
            

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