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Naquela noite, não consegui dormir. A imagem do meu rosto refletido naquela figura no corredor queimava em minha mente como um aviso. Era como se, por um instante, tivesse olhado para algo que deveria permanecer escondido.
Depois de algum tempo, Daniel retornou ao quarto. Seu olhar se suavizou ao me ver deitada na cama, fingindo dormir. Ele não parecia saber da minha escapada. Talvez o hospital não tivesse percebido a minha ausência.
Quando ele se aproximou, pude sentir o cheiro do perfume que ele sempre usava. Uma fragrância amadeirada, reconfortante, mas que agora me causava uma inexplicável repulsa. Ele se sentou na poltrona ao lado da cama e ficou em silêncio, observando-me por um longo tempo. Até que, finalmente, ele sussurrou:
- Clara, tudo o que eu faço é por você.
A voz era doce, mas havia algo forçado nela. A frase ecoou em meus pensamentos, trazendo uma lembrança difusa. Um sussurro semelhante, mas dito em outro contexto, por outra voz...
"... tudo o que eu faço é por você..."
Fechei os olhos com mais força, tentando bloquear as memórias nebulosas. Miguel. O nome veio como uma brisa gélida na minha mente, mas desapareceu antes que eu pudesse me agarrar a ele.
Na manhã seguinte, Daniel voltou com flores. Rosas vermelhas, vibrantes demais para o ambiente pálido do hospital. Ele sorriu, ajeitando o buquê em um vaso ao lado da cama.
- São lindas, não acha? Lembrei de como você gosta de flores vermelhas.
- Eu gosto? - perguntei, franzindo o cenho.
- Sim. Você sempre amou. - Ele sorriu novamente, mas era um sorriso calculado, como se estivesse tentando me convencer disso.
- Você é tão atencioso comigo... - murmurei, observando-o com cuidado. Ele parecia satisfeito com o elogio, como se estivesse ganhando pontos em um jogo invisível.
- Claro que sou. Você é minha esposa, Clara. Eu te amo mais do que tudo.
Ele pegou minha mão entre as dele. As suas mãos eram quentes, firmes demais, como uma gaiola gentil. Daniel se inclinou ligeiramente, os olhos fixos nos meus, e tocou meus lábios com um beijo leve. Não havia nada de errado com aquele gesto – carinhoso, doce – mas algo dentro de mim se revoltou. Minha pele formigou, como se meu corpo soubesse de algo que minha mente não lembrava.
- Não me deixe nunca, Clara. Vamos recomeçar. - A voz dele saiu baixa, quase uma promessa. - Esquecer o que passou.
Esquecer? Era justamente o que eu não conseguia fazer. As lacunas no meu passado me aterrorizavam. E agora as palavras dele pareciam um pedido desesperado para que eu não procurasse as respostas.
Nas horas seguintes, um cansaço esmagador me dominou. Daniel saiu para resolver algumas pendências, deixando-me sozinha no quarto. Não demorou muito para que meus olhos pesassem, e logo adormeci.
Foi quando os pesadelos vieram.
A chuva caía pesada, cada gota soando como marteladas em um vidro invisível. Eu estava dentro de um carro, a mão trêmula no volante. As luzes dos faróis refletiam em poças d'água, borradas, irreais. O som do motor rugia ao longe, mas meu coração era mais alto. Uma voz masculina gritava algo, mas estava distorcida.
- Clara, cuidado!
O carro derrapou. Meu corpo foi lançado para frente, mas o rosto do homem ao meu lado prendeu minha atenção. O cabelo escuro e bagunçado, os olhos desesperados.
Miguel.
A batida veio como um estrondo ensurdecedor, e acordei gritando. O quarto do hospital parecia girar, meus pulmões tentavam puxar o ar que teimava em faltar.
- Clara? Você está bem?
A voz me fez sobressaltar. Lúcia, uma das enfermeiras, estava parada à porta. Ela carregava uma expressão ambígua no rosto, como se soubesse algo que não queria compartilhar.
- Pesadelos - murmurei, passando a mão pela testa suada.
Ela se aproximou lentamente, com passos silenciosos demais. Havia algo estranho nela. A maneira como me olhava, como se analisasse cada detalhe.
- Está tudo bem agora. Pesadelos costumam vir quando a mente tenta... se lembrar.
Arregalei os olhos.
- Como assim? O que quer dizer com isso?
Lúcia sorriu de leve, um sorriso pequeno, quase debochado.
- Nada demais, querida. Apenas descanse. Você vai precisar de força.
- Força para quê? - insisti.
Ela ignorou a pergunta. Colocou algo no soro ao lado da cama – um remédio, talvez – e, sem dizer mais nada, saiu. A porta se fechou com um pequeno estalo, e o quarto voltou ao silêncio.
Minhas mãos tremiam. A lembrança de Miguel continuava viva, como uma centelha no escuro. Quem era ele? Por que estava no meu pesadelo? E, principalmente, por que Daniel nunca o mencionou?
Algo está errado.
Olhei para as rosas no vaso ao lado da cama. Elas pareciam ainda mais vermelhas agora, como se absorvessem algo do ambiente. Do meu medo.
Com o coração acelerado, fechei os olhos e respirei fundo. Eu precisava de respostas. Mas, para isso, teria que fingir. Teria que jogar o mesmo jogo que todos pareciam estar jogando ao meu redor.
- Miguel - sussurrei para mim mesma, enquanto a imagem do seu rosto emergia do fundo da minha mente.
E, pela primeira vez, eu soube que aquilo não era apenas um pesadelo.
Era uma memória.