A menina está absorta na linda borboleta, quando sente uma sombra bloquear a luz do sol naquela manhã de domingo. Um menino a olha curioso e em uma fração de segundos sua tia Ellen, ou melhor irmã Dulce ela se corrige mentalmente, pega o menino e o leva falando algo em um idioma que ela não entende. Lágrimas escorrem do rosto do menino e por um segundo Grace acha ter visto os olhos do menino ficarem vermelhos, mas ela pensa ser somente o reflexo do sol.
Intrigada pela pressa da tia levar o garoto para dentro das paredes de tijolos vermelhos, Grace caminha seguindo os dois.
- Eu só queria brincar com a menina!
- Quantas vezes preciso dizer que você não pode ser visto?
- Desculpe irmã, não vou mais desobedecer!
- Muito bem Miguel,você sabe que não pode estar com as outras crianças, lamento mas você sabe que é perigoso!
Grace escuta a conversa insólita e não entende nada, em sua cabeça de criança não há razão para que outra criança que parece ter mais ou menos a mesma idade que a sua, não possa brincar.
- Grace o que está fazendo aqui ? Volte para o pátio, você não quer brincar com as outras crianças? sua tia irmã Dulce pergunta um tanto quanto estranha, como se estivesse amedrontada.
- Desculpe titia, eu só queria ver o menino!
- Que menino criança? Não há nenhum menino aqui, estão todos no pátio brincando!
- O menino titia, o que estava com a senhora agora! Eu o vi , a senhora o chamou de Miguel!
- Venha menina e não conte mentiras, se não for uma mentira deve ser essa cabecinha confusa pelo sol forte.irmã Dulce fala com a voz trêmula e a menina fica ainda mais curiosa com a reação de sua tia. O que a faz obedecer e se encaminhar para o pátio repleto de crianças, no caminho ela olha uma estátua representando duas freiras de frente uma para a outra, em uma pose esquisita como se estivessem compartilhando um segredo.
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Seu aniversário de 11 anos foi incrível, sua mãe fez tudo que realmente mais gosta de comer, diversas crianças da vizinhança no Queens estavam presentes no apartamento em que Grace vive com seus pais. Mas o ponto alto de sua pequena festa foi sua tia que é freira, Grace sempre a amou muito e suas raras visitas a enchem de alegria.
A tia lhe trouxe um novo rosário de contas e uma bonita boneca Barbie.
Apesar de ser uma freira e ter abdicado de tudo em favor de seus votos, sua tia antes de se tornar freira herdou junto a sua mãe uma pequena herança dos pais quando faleceram. O suficiente para nenhuma das duas filhas precisarem trabalhar pelo resto de seus dias, contanto que vivessem uma vida modesta.
Irmã Dulce jamais usou um centavo sequer do dinheiro, a não ser para pequenos presentes para a sobrinha, todo o montante ela abriu mão em uma conta destinada a menina quando atingir a maioridade.
Grace abraça a tia com carinho, toda sua vida repleta somente de amor, embora só tenha os pais e a tia.
Ela passa as pequenas mãos no véu que cobre a cabeça da tia até seus ombros, o que a deixa parecida com uma santa. Os olhos azuis muito semelhantes aos seus, permeados por bondade enquanto olha para a menina filha de sua irmã mais jovem.
Apesar de também ser católica Suellen, diferente de irmã Dulce, escolheu se casar com George enquanto sua irmã seguia sua vocação, desde pequena Dulce sonhava com o sacerdócio e sua fé e devoção a levaram aos quatro cantos do mundo. Mas sempre retornava quando podia, sendo o amor pela irmã e a sobrinha seu único resquício da vida mundana e terrena, todo o restante dedicado ao espírito e a sua missão.
- Minha princesinha eu preciso ir, não esqueça de fazer suas orações e me incluir nelas! Ela fala tocando os cabelos negros da menina com os lábios.
Já quase dá altura da tia que era uma mulher pequena e muito magra, Grace lhe toma a benção e beija sua mão magra de veias azuladas.
Irmã Dulce sai do apartamento sentindo um aperto no peito, ela ignora o mal pressentimento rindo de si mesma por sua dificuldade de deixar para trás sua pequena família.
Atribuindo suas tribulações ao segredo que carrega e aos recentes acontecimentos, ela caminha enquanto faz uma oração a São Francisco de Assis. Quando entra no metrô a sensação de aperto no peito a sufoca um pouco mais quando dois homens cruzam seu caminho, algo na face dos dois a fez fazer o sinal da cruz de forma instantânea. Ambos lhe provocaram arrepios, não que ela tenha sentido algo humanamente mal, mas um arrepio subiu por dentro de seu hábito, e um dos homens virou o rosto em sua caminhada,algo em seus olhos azuis glaciais fez o arrepio aumentar, principalmente ao ver um arremedo de sorriso na face estranhamente límpida. Ela entra no metrô lotado se sentindo protegida pelo número de pessoas que se espremem juntas umas às outras.
Ela se senta para o trajeto longo cruzando a cidade até seu convento no Bronx. Segurando as contas de seu rosário ela passa a viagem toda rezando, sem ter explicação para a necessidade de estar ali fazendo isso, com uma certa dose de alívio ela vê sua estação chegar, quando se prepara para descer a moça ao seu lado a olha com um sorriso angelical.
Irmã Dulce devolve o sorriso que logo se congela em sua face, ao ouvir a voz da moça a chamar pelo nome :
- Uma tempestade está vindo e você Dulce, estará bem no meio dela! Nada que você aprendeu é a verdade absoluta!
Assustada ela ainda tenta falar com a estranha moça com os olhos negros. Mas a massa de pessoas descendo na concorrida estação a força a descer, ela olha para o vagão tentando ver o rosto da moça novamente, e lá está ela na janela, com os olhos completamente negros a olhando com uma expressão de piedade.
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Grace olha com terror os dois homens de olhos azuis quase glaciais, encurralada em um canto do apartamento ela sequer consegue gritar. Seus pais foram silenciados para sempre, os olhos apavorados giram dos dois corpos estendidos para os olhos de seus algozes.
Ela chora muda enquanto vê o mais forte se aproximar sorrindo de seu esconderijo, sentindo que terá o mesmo destino de seus pais ela enxuga os olhos em uma atitude de desafio, em nenhum momento a menina tentou gritar ou implorar pela sua vida. Seus pais estavam mortos e nada a amedrontava mais do que essa constatação.
- Pequena Grace, lembre-se de mim! Não esqueça jamais do meu rosto , deixe sua curiosidade levá-la, eu e meus irmãos queremos a batalha final, e o mais importante .... de um olá ao meu sobrinho por mim. O homem fala para a menina como se fosse um louco, a pequena Grace não faz ideia do que ele está falando, mas em sua cabeça murmura a oração de São Francisco, mas assim que começa ela vê os olhos do outro homem ficarem brancos, mesmo sendo inteiramente brancos os olhos expressam ódio.
Ela repete com mais força para si mesma : - Onde houver ódio que eu leve amor.... ela repete como um mantra, sentindo o ódio palpável dos dois homens que riem de seu desespero.