Ele podia perceber uma grande nuvem negra que a rondava, ele só não sabe o porquê! Miguel ainda não entende muitas coisas, mas acha bem tedioso que padre Carras lhe faça rezar tantas vezes por dia, nem sabe porque tem de usar aquele colar todo o tempo! Mas miguel não perde muito tempo pensando nessas coisas, ele está mais interessado em atrair o morcego que paira a sua volta no porão, ele sente como se o animal pudesse ouvi-lo, e tem um pequeno esgar de prazer ao ver o animal com seus olhinhos negros, pousar em seu braço leve como uma pluma.
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Miguel está fazendo 11 anos, padre Carras e irmã Dulce lhe fizeram um pequeno bolo, o menino não cabe em si de alegria ao soprar as velas sobre o bolo. Antes de cantarem parabéns padra Carras o levou até próximo do altar dentro da grande igreja do convento, juntos os dois rezaram o terço, o menino se sentiu reconfortado com a repetição das orações que ele sabe desde criança, mas o ponto alto da noite foi o padre lhe contar mais uma vez sobre sua mãe, Miguel espera todos os anos por esses momentos a só com padre Carras, quando o religioso lhe fala sobre sua mãe em riqueza de detalhes.
O menino sabe que nasceu muito longe dali, em um convento na Itália. Ele sonha com quando puder ir sozinho até lá, ele deseja ver onde sua mãe foi sepultada.
Padre Carras nunca lhe contou quem é seu pai, na verdade Miguel teve consciência que pela primeira vez o homem que era para ele como um pai estava lhe mentindo algo.
Ele dizia não saber quem era seu pai, mas Miguel poderia jurar por todos os santos que ele sabia, o menino não sabe como chegou a essa conclusão, mas uma coisa é certa, ele sente no fundo de seu ser que padre Carras está mentindo.
Depois das orações e do parabéns eles comem o bolo compartilhando com as irmãs do convento.
Sendo Miguel a única criança a viver ali com eles mas sem ter acesso às outras crianças do orfanato gerido pelas freiras no local, o menino não entende porque não pode frequentar as aulas e porque é ensinado de maneira solo pelo padre e por irmã Dulce.
Eles estão ainda apreciando os últimos pedaços do delicioso bolo, nesse momento uma das irmãs chega de sopetão e chama irmã Dulce. A bondosa freira sai por um instante para atender uma ligação, ao voltar sua expressão é de horror e grossas lágrimas escorrem de seus olhos.
Ela cochicha algo para o padre Carras e logo os dois se encaminham para sair. Bem educado por ambos, Miguel não questiona o encerramento de sua pequena festinha de aniversário, mas observa com olhos curiosos a saída apressada dos dois.
Irmã Imaculada fica responsável por limpar tudo e tomar conta de Miguel, ele à ajuda a recolher a pequena bagunça e a freira jovem de pouco mais de dezoito anos lhe dá um abraço carinhoso dando novamente os parabéns.
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Depois de ter sido mandado para a cama, Miguel não consegue dormir! Algo o incomoda embora ele não saiba o quê!
Quando a madrugada já vai alta ele escuta o velho portão de ferro ranger, olhando pela claraboia do pequeno quarto que ocupa, Miguel vê quando o padre e irmã Dulce entram acompanhados de uma pessoa pequena.
Como se seu desejo atraísse a pessoa, Miguel vê quando o rosto antes escondido olhando para o chão, se volta diretamente para o ponto que ele está.
Ele a reconhece imediatamente, a menina de alguns anos atrás. Agora já maior parecendo ter a mesma idade que ele.
Por um segundo o olhar dos dois se cruza, mas a menina torna a abaixar a cabeça.
Miguel tenta pegar no sono, mas ele não vem! A sensação incômoda agora menos angustiante, porém ali presente.
Mais de uma hora se passa com Miguel se revirando na cama, quando derrepente uma leve batida anuncia a entrada de padre Carras.
O menino o fita com apreensão no quarto escuro, e o padre somente acende a luz quando se certifica que ele esta acordado.
- Miguel preciso ter uma conversa séria com você, por anos eu adiei, agora não é mais possível! Ele fala enquanto o menino o olha com os olhos mais curiosos do que amedrontados.
- Filho ... por todos esse anos você foi como o filho que o celibato não me permitiu ter! Mas é chegada a hora de te contar quem são seus pais... ou melhor quem você é!
Miguel sente um medo repentino, a alteração de seu corpo fazendo acontecer as coisas que ele odeia quando acontecem, a luz acesa começa a piscar e o quarto fechado é mexido por um vento, isso já aconteceu outras vezes e Miguel sempre se sente estranho quando parece que o ambiente reage as suas emoções.
Padre Carras suspira fundo antes de começar a falar, ele não desejaria precisar disso, ao menos não tão cedo! Mas o que a pequena menina relatou a sua tia o fazem ser obrigado. Ele sabe o que significa, ou melhor sabe o que esteve dentro daquela casa hoje, de alguma forma ele sente que Miguel está no cerne de tudo, só não sabe ainda onde a família de irmã Dulce se encaixava em tudo, talvez tenham sido somente um veículo pra levar a mensagem clara, que eles sabiam da existência de Miguel, que mais dia menos dia viriam pegá-lo, não para tê-lo pra si! Mas somente para destruí-lo. Padre Carras faz o sinal da cruz tentando afastar o medo, apesar de saber quem é o menino, o que ele é de verdade... Ele o ama como a um filho, independente de tudo que aprendeu, Carras não o sente um reflexo de maldade, não o seu menino! Tentando achar palavras ele inicia a história, sabendo que irá partir o coração de Miguel, mas o seu já está partido somente em saber a mágoa que irá causar na criança!
Quando ele começa sua voz falha, em um esforço de coragem ele se força a continuar...