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A água escura do rio se movia lentamente, carregando restos de lixo e sombras do que quer que tivesse caído ali. O vento gelado cortava minha pele, mas o que realmente fez meu corpo se arrepiar foi a visão de um homem sendo arrastado pela correnteza.
Meu primeiro instinto foi ignorar.
Aqui, nesse lugar esquecido por Deus, corpos aparecem no rio de vez em quando. E as pessoas não fazem perguntas. Quem faz, acaba sendo o próximo.
Mas algo dentro de mim se recusou a olhar para o outro lado.
Ele ainda estava vivo.
Eu vi o peito dele subir e descer, ofegante, lutando contra a morte. Um gemido fraco se misturou ao som da água, e minhas mãos se fecharam em punhos.
Isso não é problema seu, Elena. Você não é mais médica.
Mas tentei repetir isso para o coração acelerado no meu peito, para a maldita consciência que ainda gritava. Eu podia virar as costas e entrar na minha casa, ou podia salvar um estranho que provavelmente não merecia ser salvo.
A decisão veio em um suspiro frustrado.
- Merda.
Corri pela margem escorregadia, meus pés afundando na lama, e me joguei para alcançar o corpo antes que a corrente o levasse para longe. Meus dedos se agarraram a um braço molhado e pesado, e precisei de toda a força que tinha para puxá-lo para a margem.
Meu coração batia descontrolado. O que diabos estou fazendo?
Com esforço, virei o homem de costas e vi seu rosto pela primeira vez. Ele estava desacordado, os traços endurecidos mesmo na inconsciência. Tinha a pele quente sob o toque dos meus dedos trêmulos – febre? Perda de sangue?
Então, meus olhos desceram para suas roupas. Isso não é coisa de um qualquer.
O terno negro estava encharcado e sujo, mas era de corte caro. E no pulso, um relógio reluzia debaixo da luz fraca dos postes. Aquilo valia mais do que tudo que eu tinha naquela casa miserável.
Meu estômago se revirou.
Quem diabos é você?
O medo rastejou sob minha pele. Eu o ajudei sem pensar, sem avaliar o risco. Agora, tinha um homem ferido e perigoso na minha porta.
Mas não podia recuar agora.
Apoiei suas costas contra o meu peito e, com esforço, me levantei. Ele era alto, musculoso – um peso morto impossível de carregar sozinha. Com muito custo, consegui arrastá-lo até minha casa, quase tropeçando a cada passo.
Quando finalmente o soltei no chão da sala, minhas pernas tremiam de exaustão. Me inclinei sobre os joelhos, recuperando o fôlego.
- Espero que você valha a pena, desgraçado.
Mas ele não respondeu. Não podia. E talvez nunca pudesse, se eu não fizesse alguma coisa.
Me levantei e me ajoelhei ao lado dele. O cheiro de sangue impregnava o ar. Meus dedos foram até sua camisa molhada e rasgada. Precisava ver os ferimentos.
Respirei fundo e rasguei o tecido com um puxão firme.
O que vi debaixo da camisa me fez prender o ar.
Seu corpo era forte, tatuado – símbolos, frases, uma história escrita na pele. Mas era o sangue escorrendo por sua lateral que chamou minha atenção. Um buraco de bala perto das costelas. Outro no ombro. Sangramentos feios, mas não fatais, pelo menos não ainda.
Toquei sua pele quente, sentindo o pulso fraco, a respiração irregular.
Ele precisava de mim.
Mesmo que eu não soubesse quem ele era.
Corri até meu pequeno banheiro e peguei o kit de sutura que sempre mantive comigo. Um hábito dos tempos em que minha vida ainda fazia sentido.
Voltei para o lado dele e limpei a área ao redor do ferimento. O sangue continuava escorrendo, quente, vermelho, me lembrando de todas as coisas que tentei deixar para trás.
A agulha tremia entre meus dedos.
- Foco, Elena.
Eu sabia que ele precisava de anestesia, mas não tinha nada disso. Isso vai doer como o inferno.
Me preparei para o primeiro ponto, quando um gemido rouco me fez parar.
Seus olhos se abriram.
E então, a dor o puxou de volta para a inconsciência.
Bom. Pelo menos, não vai gritar.
Continuei, costurando a pele rasgada. Cada ponto me fazia lembrar que eu ainda sabia fazer isso. Que eu ainda era médica, mesmo que ninguém mais reconhecesse isso.
Quando terminei, limpei o suor da testa e joguei o sangue da minha mão na toalha ao lado.
O homem respirava fundo agora. Mais estável. Mas ainda um mistério.
E foi só então que realmente olhei para ele.
Alto. Moreno. A mandíbula marcada por uma barba rala, os lábios firmes, os cílios longos demais para alguém com um rosto tão endurecido. As tatuagens cobriam os braços e parte do peito. Um símbolo na clavícula me chamou atenção. Parecia familiar.
Meu coração apertou.
O que eu fiz?
Antes que pudesse continuar analisando, ouvi um som baixo.
Ele estava acordando.
Os cílios se mexeram, os olhos se abriram devagar, focando em mim. Castanhos. Intensos.
A tensão tomou conta do ar.
- Onde estou? – a voz dele era áspera, como se rasgasse a garganta ao sair.
Minha respiração travou por um instante.
Ele piscou algumas vezes, tentando focar. Então, ergueu os olhos para mim de novo.
- Quem é você?
Engoli em seco.
- Elena.
Ele respirou fundo. Tomando consciência. Avaliando a situação.
- Você me salvou.
- Eu te impedi de morrer. Ainda não decidi se foi um erro.
Um canto de sua boca quase se ergueu. Um sorriso?
- Sempre tão gentil com seus pacientes, doutora?
Minha coluna ficou rígida.
Ele percebeu.
- Não se preocupe. Eu não sou seu inimigo.
- Então quem é você? – perguntei, cruzando os braços.
Silêncio. Ele ponderou por um momento antes de falar.
- Tomazio.
O nome pairou entre nós. Meu coração acelerou. Eu já tinha ouvido antes. Não sabia onde, mas sabia.
Ele percebeu minha reação.
- Você já ouviu falar de mim.
Engoli em seco.
- Isso deveria me assustar?
Ele sorriu, mas seus olhos diziam algo diferente.
- Provavelmente.
E foi naquele momento que percebi: eu tinha acabado de salvar um homem muito perigoso.