Capítulo 4 Males que vem para o bem

O namoro com Rafael já rendia seis meses. Em todo esse tempo Nadine ligava o celular pela noite e enviava uma mensagem, talvez duas, desligava e chorava um bocado.

Em contraste com o que passava dentro de casa, com Rafael era até que um mar de calmarias. Ele era respeitoso e nunca lhe pediu um beijo sequer. Dizia que Nadine merecia o respeito por ser uma moça pura. Os namoros eram nas tardes de domingo, quando o pai estava estudando na sala ao lado. Rafael somente pegava na mão dela e a beijava com delicadeza.

Embora ele fosse tudo isso, Nadine sentia que era errado.

Estava frente ao espelho encarando o próprio reflexo. Começava a se parecer mais ainda com a mãe. O cabelo negro caía livre até abaixo da cintura, os olhos eram castanhos e rasgados. Nadine voltara a ganhar peso, e com isso, o corpo voltou a ter as curvas tão prematuras.

O vestido que usava era rosa bem clarinho, abaixo dos joelhos, com decote quadrado, cravejado de pedrinhas minúsculas, que brilhavam em contato com a luz. Calçou as sandálias baixas e com um suspiro de exaustão por estar sempre só, Nadine saiu do quarto.

Elizeu mais uma vez dirigiu até a igreja, e só lá vestia a máscara do bom homem e sorria para ela.

- Coloque um sorriso no rosto, é o seu dia. - A encarou, sério. A luz fazia os ossos do rosto dele ficar ainda mais saltados, como um monstro que só ela via.

Claro. Era o aniversário dela de dezesseis anos, e não podia ser pior, também era o dia que Durval escolheu para o filho ficar noivo. Nadine participou daquela celebração com a impressão de estar andando em baixo da água. Orou ao lado de Rafael e sorriu para todas as fotos. Já no fim da celebração Rafael tirou uma caixinha e a abriu, diante do povo.

- Na. Querida, essa aliança que comprei com tanto carinho e amor, irá traçar parte dos nossos planos e metas para o futuro.

Nadine sentiu os ombros murchar ao olhar para a pequena e finíssima aliança. Rafael tinha um carro, bem bonito aliás. Dizia trabalhar em um escritório bem legal e que pagava bem. Porque diabos escolheria uma aliança tão fina como aquela.

Se bem, que era mais fácil esconde-la.

Nadine estendeu a mão direita e aceitou a aliança com uma tristeza profunda. Pegou a aliança de Rafael e deslizou pelo dedo fino e cabeludo. Por fim, sorriram com as mãos juntas e fizeram pose.

Se alguém ali pudesse ler os pensamentos de Nadine, ficaria chocado com tanta melancolia.

Era assim que ela acabaria a vida. Presa a alguém com quem nunca amou, em uma idade precoce. Luciano poderia ao menos ir até ela e livra-la daquilo. Mas não, deixou o laço de sangue em casa, esquecido. Não era justo Nadine estar presa, enquanto ele vivia, provavelmente se divertindo, fazendo sexo com quem bem desejasse.

- Está tudo bem? - Rafael apertou a mão dela com delicadeza.

- Sim. Estou emocionada.

- Que bom, meu amor. Vamos ser felizes juntos e liderar esse povo aqui. O que acha?

Nadine sorriu sem vontade alguma. Estava ali, porque Rafael era cordial, mas até quando?

(***)

No mês seguinte, Durval teve um desmaio enquanto pregava, a igreja foi a loucura, chorando, pedindo por ele. Rafael e o pai foram para a Capital em busca de respostas para aquele mal. Nadine pôde então respirar um pouco. Acompanhou o pai em todos os cultos, ia para a escola e aula de piano. Conseguia até fingir que era uma pessoa normal.

Era sábado e ela estava varrendo o quintal quando começou a prestar a atenção a conversa que Elizeu mantinha com Rafael pelo celular. Ela sabia que não podia ficar ouvindo atrás de paredes. Mesmo assim ficou ali, atenta àquela conversa estranha.

- Ele está piorando? Rafael, preciso saber o que ele tem para passar para o povo.

-...

- Como assim, AIDS? - Os passos dele pararam abruptamente. - Está me dizendo que aquela menina passou essa doença suja para o meu amigo? Como ele está? Consegue se recuperar bem?

Nadine encostou a vassoura com todo o cuidado, a dor que sentiu no estômago era tamanha que ela se dobrou ao meio. Voltou para dentro de casa e se trancou no quarto e só então soltou a respiração.

A desconfiança de que o sogro não só visitava e bancava as meninas, ex-moradoras de rua veio quando Jaqueline se levantou no meio do culto, apontou o dedo para frente e gritou que Durval carregava o demônio consigo. Primeiro disseram que ela estava com demônios no corpo. Depois, que ainda usava drogas e vivia pedindo para ele, que como um santo se negava.

Jaqueline fora levada até uma clínica, de onde nunca mais saiu. Se é que estava em uma clínica mesmo.

- Nadine, está tudo bem? - Ele se assustou ao ouvir batidas na porta.

- Sim.

- Abre a porta, então. Sabe que não mantemos portas trancadas nessa casa.

- Estou naqueles dias, me desculpa, estava varrendo o quintal quando senti... Você sabe. - fechou os olhos com força.

- Bom. Tome um banho. Está impura.

Elizeu ainda permaneceu ali por um tempo, quando ouviu o som do chuveiro sendo aberto, certificado que Nadine não o ouviria voltou a pegar o telefone, discou o número marcado como João e esperou ser atendido.

- Ela está suja. - Disse. - Você me disse que aquela vagabunda estava limpa. Durval está morrendo por culpa dela.

- Mas eu não sabia. Falei para ele não fazer nada sem proteção. Nunca se deve confiar em uma prostituta. Durval também não sabe segurar o pau nas calças.

- Ele é fraco, como qualquer ser humano. - Elizeu deu uma olhada para a porta do quarto de Nadine.

No mês seguinte Nadine fora surpreendida com a notícia da morte de Durval. A desculpa que o pai usou foi de que ele teve câncer agressivo no pulmão, já estava sofrendo, por isso a morte foi tão repentina para todos.

Rafael não voltou para casa, e não deu notícias por quase dois anos. Nadine estava no último ano do colégio, faltava apenas dois meses para se formar, já tinha uma colega de classe com quem sempre voltava para casa. A vida não era normal, mas estava bem próxima disso.

- Você vai participar da formatura?

- Acho que não. - Nadine respirou fundo. - Mesmo assim vou pedir ao meu pai.

- Na, sinceramente acho que te falta ter pulso firme. Não sei o que rola na sua casa. Mas tem que ser taxativa.

Nadine remoeu aquela conversa, ainda tinha a cicatriz da última surra que levou. Ao entrar em casa se deparou com o pai caído no chão. Havia sangue por todo lado.

- Pai! - Se ajoelhou ao lado dele. - Meu Deus. Preciso chamar por socorro!

(***)

- Não tem mais ninguém? Só você?

- Só eu. - Nadine disse ao médico. - Minha mãe faleceu quando eu era uma criança, meu irmão foi embora para nunca mais voltar. Eu já sou de maior.

- Não é pelo fato de ser maior, Nadine. É que seu pai sofreu um AVC, não sabemos se terá sequelas permanentes ainda. Você é só uma menina, precisa ter uma rede de apoio

Elizeu acordou horas depois, confuso, chorou, tentou se levantar, falar. Nadine sentou ao lado dele, esquecendo-se das surras e o ajudou. Passou dias limpando a saliva do pai, dando comida na boca. De dia, ia para a escola. Na madrugada, enquanto o pai dormia ela estudava para tentar passar em vários vestibulares. Foi assim até se formar.

Não teve formatura, mas isso não lhe fez falta.

Em uma madrugada, Nadine acessou a internet pelo celular, ao ler o resultado da prova que havia feito escondido na desculpa de ir tomar um banho e ajeitar a casa, deu um pulo na poltrona. Se arremeteu contra a porta e leu novamente o enunciado.

- Obrigada meu Deus. - Beijou a tela do celular. - Obrigada. Obrigada!

A felicidade era tamanha, que Nadine pegou o celular que o irmão lhe deu e o ligou. Mais uma vez discou o número dele. E mais uma vez, acabou enviando uma mensagem de voz.

- Luciano, não sei se realmente se importa, mas o nosso pai está no hospital, teve um AVC hemorrágico, bateu com a cabeça em algum lugar e ficou bem ruim. - Ela fechou os olhos, queria compartilhar com alguém. - Eu... Passei no vestibular. Quer dizer... é só uma faculdade de administração, nada de mais. Mesmo assim é um curso superior, não é? Bom. Se um dia sentir saudade, me liga. Ou venha até mim. Eu te amo. Ah, e essa é a última mensagem que te mando. Boa sorte na vida.

Nadine desligou o celular e o jogou na bolsa. Definitivamente, tinham males que venham para o bem maior. Com Elizeu debilitado seria mais fácil enfrenta-lo. Afinal, um metro e noventa e cinco só valiam em pé e com força nas pernas e braços.

            
            

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